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Em 2022, comecei a coletar imagens de versões modificadas da bandeira do Brasil. Naquele ano, a bandeira nacional era um tema quente e estava em especial evidência por vários motivos: a Copa do Mundo no Qatar, o bicentenário da Independência do Brasil e, principalmente, a eleição presidencial. Para muitos jornalistas e analistas políticos, aquele era o ano eleitoral mais importante desde a redemocratização: a população decidiria ou pela consolidação da extrema-direita no país, ou pela vitória de uma frente ampla de resistência contra ela. Em retrospecto, percebo que toda essa tensão política que vivenciamos nos últimos oito anos faz parte de um processo de independência mais amplo, que foi descrito por Machado de Assis, em (pasmem) 1873:

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Esta citação de Machado de Assis foi encontrada no livro O sequestro da Independência: Uma história da construção do mito do Sete de Setembro, de Carlos Lima Junior, Lilia Moritz Schwarcz e Lúcia Klück Stumpf (Companhia das Letras, 2022).

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Mestrados stricto sensu no Brasil têm duração média de dois anos. [N.E.]

Esta outra independência [a cultural] não tem sete de setembro nem campo de Ipiranga; não se fará num dia, mas pausadamente, para sair mais duradoura; não será obra de uma geração nem duas; muitas trabalharão para ela até perfazê-la de todo.1

Pessoalmente falando, 2022 também era o meu primeiro ano cursando o mestrado, e contornar um tema tão grande quanto “design e política”, eixo fundamental do que eu havia proposto como projeto de pesquisa, parecia um desafio descabido. Porque, em certa medida, era mesmo. Não à toa, identificar e fazer seu próprio recorte numa pós-graduação é um aspecto vital do processo de pesquisa, especialmente num mestrado, que, contrariando as expectativas, passa voando.2 Mas o primeiro semestre do curso já se aproximava do fim, e o projeto inicial, que eu escrevi em torno de um interesse despertado por manifestações online de “design ativismo”, parecia insuficiente. Essa é uma medida que ainda acho difícil de explicar: não é preciso (nem sequer possível) prever cada passo da pesquisa, mas é importante conseguir vislumbrar minimamente um percurso que você gostaria de seguir nesse processo. Para mim, pelo menos, é. Sem essa visão inicial, ainda que turva e imprecisa, eu não consigo dar passo algum. Não exatamente por uma questão de controle, mas por uma questão de vontade: pra que eu vou sair do lugar se eu nem sei se algo ali me interessa? A vida já é trabalhosa demais. Se não pintar um interesse ou um desejo mínimo qualquer de querer descobrir qualquer coisa, eu é que não vou sair do lugar.

Em 2022, uma bandeira do Brasil avistada em local público poderia sinalizar coisas muito diferentes: uma cerimônia oficial de qualquer instância de governo, um grupo de torcedores da Seleção Brasileira de Futebol, uma manifestação de extrema-direita em defesa de valores (no mínimo) conservadores ou (no pior dos casos) evidentemente fascistas.

Essa coisa do desejo não só acompanhou a pesquisa do início ao fim, mas foi o que de fato me possibilitou fazê-la. O discurso mais comum que se ouve sobre o mestrado é que é um processo difícil, e para mim não foi diferente, por uma série de motivos. Lá no fundo, eu sei que só deu pé porque eu pude e consegui seguir as minhas vontades durante a pesquisa. E isso não é pouca coisa. Mas o que leva alguém a pesquisar, afinal? No meu caso, o motivo não era objetivamente o diploma, nem a promessa próspera e segura de um futuro profissional na área (carreira acadêmica? Nesta economia?!). Ele tinha mais a ver com uma ânsia de dar vazão à curiosidade que me acompanha desde que desenvolvi a capacidade de pensar e me questionar sobre as coisas do mundo. Essa curiosidade, que é quase um comichão no corpo, foi surgindo aos poucos lá nos meados do primeiro semestre da pós-graduação, quando eu ainda não tinha exatamente uma pergunta formulada, mas já observava de maneira atenta o cenário confuso e ambíguo que enxergava ao meu redor.

Em 2022, uma bandeira do Brasil avistada em local público poderia sinalizar coisas muito diferentes: uma cerimônia oficial de qualquer instância de governo, um grupo de torcedores da Seleção Brasileira de Futebol, uma manifestação de extrema-direita em defesa de valores (no mínimo) conservadores ou (no pior dos casos) evidentemente fascistas. O contexto, o local e quem portava a bandeira eram aspectos importantes para tentar discernir esses significados. Mais do que isso, porém, me interessava a imagem visual da bandeira em si: o fato de que, naquele período, quando penduradas em sacadas de casas e prédios de muitas cidades brasileiras, elas funcionavam como um aceno em apoio ao então presidente, Jair Messias Bolsonaro. O “todo” pela “parte”: a bandeira de um país inteiro, apropriada por um espectro político, exprimindo significado de apoio a um candidato específico.

As críticas à bandeira nacional brasileira, aliás, são tão antigas quanto sua própria criação – realizada às pressas, logo após o golpe da Proclamação da República, em 1889.

Tal apropriação provocava diferentes reações, é claro. Da revolta ao desejo de resgate, do repúdio à reivindicação. As críticas à bandeira nacional brasileira, aliás, são tão antigas quanto sua própria criação – realizada às pressas, logo após o golpe da Proclamação da República, em 1889. A maioria delas se limitava a desaprovar a inspiração imperial do projeto (que mantinha as cores verde e amarelo, tradicionais das casas de Bragança e Lorena) ou a referência positivista (o dístico “Ordem e Progresso”, adaptado do lema criado por Auguste Comte). Em 2022, porém, o que se via em pauta ia muito além das decisões estéticas e discursivas do projeto da bandeira: o que estava em disputa entre diferentes grupos políticos era o que esse símbolo nacional deveria representar e que projeto de país deveria ser defendido a partir dele. 

A pesquisa como abertura

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O perfil @designativista é o principal canal de comunicação do movimento Design Ativista, que articula iniciativas e práticas que vão além do online. A conta no Instagram foi criada em outubro de 2018, durante o período de campanha eleitoral e publica imagens de autorias diversas, previamente selecionadas e normalmente agrupadas por tema no feed da conta. Em agosto de 2024, o perfil era seguido por 260 mil usuários.

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O ensaio “Educação domesticada para criativos precarizados“, escrito por Eduardo Souza e publicado na Recorte Ano 3, questiona esse viés funcionalista que é frequentemente usado quando o assunto é educação. Para o autor, o aprendizado é uma experiência vital e complexa e não deve ser tratado exclusivamente como um meio para uma vida melhor – de acordo com os padrões impostos pelo capital. [N.E.]

Em minhas investigações iniciais pelo feed do perfil @designativista3 no Instagram, eu já notava um grande número de publicações que, de alguma forma, mobilizavam a imagem da bandeira nacional. Em algumas, ela aparecia na versão original, inalterada, mas num contexto de crítica. Em outras, uma versão modificada da bandeira era veiculada, com alterações no texto central, nas cores ou em outros elementos. Havia uma pluralidade formal nas manifestações desse símbolo nacional, feitas por diferentes grupos sociais e políticos. A curiosidade surgiu ali. Mas como abordar um tema que parece tão confuso, que tem tantos lados, sem me restringir ao mapeamento de desdobramentos e ocorrências em tempo real?

Olhando hoje, em retrospecto, me parece que não querer resolver o problema é uma boa postura para se assumir durante um processo de pesquisa. Posso dizer que, ao longo da minha educação, na vida toda, fui mais condicionada a pensar e enxergar o estudo e o conhecimento de uma forma instrumentalizada, ou seja, pensava que eles serviriam para me fazer chegar a algum lugar.4 No mestrado, finalmente compreendi que conquistas como cumprir uma expectativa bem definida, aprofundar algum tema ou descobrir qualquer coisa nova (ou nem tão nova) são igualmente valiosas, apesar de mais difíceis de mensurar. Só que, quanto mais se ganha experiência fazendo pesquisa (ou vivendo, de forma geral), mais fica evidente que não vamos resolver nada. Com muito esforço e alguma sorte, conseguimos puxar um ou mais fios de pensamento que poderão ser úteis para tecer novas ideias, reforçar malhas antigas ou aumentar um pouquinho a extensão do tecido do conhecimento. E, em qualquer um dos casos, isso já é o bastante.  Não porque estamos acomodados, ambiciosos de menos ou trabalhando pouco – mas porque produzir conhecimento não é uma tarefa simples, e a pressão por resultado é mais inimiga do que aliada nesse processo (de novo, para reforçar: dois anos passam voando).

A bandeira nacional é uma imagem de dissenso estético – isto é, não há consenso sobre o que é percebido a respeito da imagem deste símbolo nacional de pretensa representação coletiva.

Tendo como interesse de pesquisa a situação controversa da bandeira nacional brasileira, não havia sequer risco de querer resolver coisa alguma. Mas a questão de como abordar o tema permanecia em aberto. E essa hesitação acabou me levando a descobrir um aspecto da pesquisa que, a meu ver, é a maior  beleza desse processo: ter a possibilidade de pôr em questão o que quer que seja pertinente e necessário. Inclusive a dúvida, o não saber. Em outras palavras, se o meu interesse estava nos múltiplos sentidos que a bandeira brasileira adquiria ou provocava nas pessoas, o ponto de partida da minha pesquisa poderia ser exatamente esse. A bandeira nacional é uma imagem de dissenso estético – isto é, não há consenso sobre o que é percebido a respeito da imagem deste símbolo nacional de pretensa representação coletiva. Em termos formais, poderia dizer que essa era a minha hipótese. Cabia, na experiência de um mestrado, testá-la. Mas como eu poderia fazer isso?

Tive a oportunidade de cursar um programa de pós-graduação que estimula a autonomia e a iniciativa no fazer de uma pesquisa em design, no sentido de que lá é possível aplicar métodos já bem estabelecidos, mas também são encorajadas práticas que proponham novos modos de coletar, organizar, ler e interpretar as informações com as quais lidamos. E assim, o primeiro passo foi dado. Meu impulso inicial foi, de fato, começar a coletar todas as imagens que traziam a bandeira nacional brasileira com algum tipo de modificação ou intervenção. Uma vez que identifiquei meu tema de pesquisa no próprio Instagram, comecei por ali: varrendo o feed inteirinho do @designativista em busca de todo tipo de alteração e recriação da imagem da bandeira nacional. Depois, parti para a hashtag  #designativista, que contava com um número muito maior de publicações devido à liberdade de uso por qualquer usuário da rede social.

A coleta de imagens começou já nos primeiros meses do mestrado, em 2022, e seguiu-se até o fim de 2023, a menos de três meses da data em que defenderia a dissertação. Reuni algumas centenas de registros de bandeiras modificadas, mas, com alguns procedimentos de organização e estruturação do acervo, cheguei ao número de 338 imagens. Todas elas foram produzidas entre os anos de 2013 e 2023 e apresentam algum tipo de intervenção e/ou reinterpretação do estandarte nacional – ou seja, nenhuma imagem traz a bandeira em seu desenho oficial original. As fontes de pesquisa e tipos de mídias reunidas são bastante diversas: há tanto imagens ilustrativas quanto fotográficas. Dentre as fotografias, há algumas autorais, produzidas durante caminhadas e observação das ruas, especialmente no período eleitoral de 2022. Muitas outras foram encontradas em pesquisas bibliográficas, coleções digitais e redes sociais de artistas, designers e ilustradores. Com um acervo em construção, uma pesquisa sobre imagens começou a ser elaborada – ainda que sem muita certeza de para onde ela me levaria.

Coletar, ler e relacionar imagens

Uma dificuldade comum num relato de pesquisa é como descrever de forma organizada tudo que aconteceu, porque junto dessa missão vem um anseio de apresentar alguma linearidade temporal, por mais que o processo tenha sido um grande emaranhado de ações paralelas e entrelaçadas. Então, aqui eu vou precisar voltar um pouco, antes de retomar de onde parei, para falar mais sobre essa ideia de coletar imagens modificadas da bandeira.

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A ideia de livros como cestos, descrita por Ursula K. Le Guin também aparece em outro ensaio da Recorte Ano 3: “Cosmopolíticas editoriais”, de Felipe Carnevalli e Paula Lobato. [N.E.]

Em uma das disciplinas que cursei como aluna especial, antes mesmo de ingressar no mestrado, me deparei com o livro A teoria da bolsa da ficção (N-1 Edições, 2021), da conhecida autora de ficção especulativa Ursula K. Le Guin. Nesse texto, é apresentada uma formulação de Elizabeth Fisher, que supõe que o primeiro dispositivo cultural teria sido um tipo de recipiente para guardar ou carregar coisas coletadas. A partir dessa ideia de “bolsa” ou “cesta”, Le Guin elabora um argumento fundamental sobre as narrativas que chegam até nós, através dos séculos.5 As histórias que foram registradas e passadas adiante são aquelas que contam os feitos de heróis e desbravadores e quase sempre envolvem armas de dominação: “Todas nós ouvimos tudo sobre todas as lanças e espadas, as coisas para bater e perfurar e açoitar, as coisas longas e rígidas, mas ainda não ouvimos falar sobre onde se colocam essas coisas, o recipiente onde as coisas são guardadas”. O paralelo entre armas e bolsas também é interessante porque põe em evidência o artefato que faz parte das tarefas cotidianas de manutenção da vida:

“As imagens dos caçadores de mamutes ocuparam espetacularmente as paredes das cavernas e o imaginário, mas o que nós realmente fizemos para permanecer vivos e saudáveis foi coletar sementes, raízes, brotos, botões, folhas, nozes, frutos, frutas e grãos, além de insetos e moluscos e pássaros, peixes, ratos, coelhos e outros pequenos animais que provêm proteína e podem ser capturados com redes ou armadilhas simples.”

O fato de que eu estava fazendo uma coleta já seria suficiente para ter sido afetada por essa leitura, mas a verdade é que ela me ajudou a enxergar um aspecto óbvio sobre o tema da pesquisa que eu começava a construir: uma bandeira é, também, um artefato de dominação. No entanto, não é possível saber precisamente o tipo de contexto social em que as primeiras bandeiras foram criadas. O que os registros históricos nos informam é que, ainda que uma primeira versão de bandeira tenha surgido num contexto comunal pacífico, não foi preciso muito tempo até que o objeto passasse a ser usado em disputas territoriais, cumprindo a função de sinalizar posse ou  autoridade; e nas batalhas e conflitos, servindo para identificar grupos antagônicos.

Que outras tantas imagens de usos similares aos das bandeiras já surgiram, cujas histórias não foram contadas? Imagens produzidas por pessoas comuns, em vez daquelas portadas por imperadores e exércitos? Imagens efêmeras e, em certo ponto, até descartáveis – ou descartadas?
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Há muitos aspectos da formalidade universitária que eu antipatizo e, para melhor lidar com eles, prefiro rebater com o meu tipo de humor: se a dissertação é algo que eu vou ter que defender para uma banca avaliadora, nada mais natural que eu vá reunindo diferentes autores e referências para serem meus escudos. Tudo ainda bastante bélico, pois é.

Só que essa, novamente, é apenas a história oficial das bandeiras como as conhecemos hoje. O argumento que atravessa o texto de Le Guin propõe, também, uma reflexão sobre o que sempre existiu e persistiu para além da perspectiva dominante. Isto é, que outras tantas imagens de usos similares aos das bandeiras já surgiram, cujas histórias não foram contadas? Imagens produzidas por pessoas comuns, em vez daquelas portadas por imperadores e exércitos? Imagens efêmeras e, em certo ponto, até descartáveis – ou descartadas? Eram essas imagens que me interessavam. Não por acaso, foram as versões modificadas da bandeira que me despertaram a curiosidade. E assim, com o primeiro “escudo teórico”6 de Ursula K. Le Guin, segui me propondo a fazer uma coleta de imagens não oficiais da bandeira brasileira – escolhendo, assim, direcionar o olhar para o que existe e o que comunica, para além do que foi formalmente instituído e reconhecido.

Uma coleta que reúne centenas de imagens deveria desembocar em algum  tipo de análise sobre elas, certo? Sim. Esse era mais um ponto que levantava certa preocupação, porque, bem… eu não queria fazer uma análise de imagens convencional de uma pesquisa em design. O que eu quero dizer com isso? Basicamente, que eu não gostaria de fazer uma análise baseada em agrupamentos típicos da sintaxe visual – paleta de cores, composição, tipografias, linhas, texturas, escalas etc. Mas não seria esse o esperado em uma pesquisa de design?

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A Escola Superior de Desenho Industrial faz parte da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), foi fundada em 1962 e é conhecida por ser a primeira instituição de ensino superior a oferecer o curso de Desenho Industrial no Brasil. [N.E.]

Retomando o ponto sobre a abertura para autonomia e experiência de novos métodos que o Programa de Pós-Graduação em Design da Esdi7 propõe, fui entendendo que talvez eu não precisasse mesmo ter como foco principal a estrutura gráfica dessas imagens. Estudá-las pela via da semiótica ou da retórica visual eram caminhos possíveis, mas essas abordagens não me interessavam, em especial naquele momento, até porque, eu não tinha nenhuma experiência com elas.

Há algo de peculiar em imprimir e olhar por períodos estendidos de tempo imagens que foram feitas para serem observadas numa tela de celular por algumas frações ou unidades de segundo.

O que aconteceu, no fim das contas, foi o surgimento de um método a partir da própria coleta e convivência com essas imagens: aos poucos e ao longo do tempo, observando-as, comecei a perceber relações entre elas, repetições, aspectos similares sendo comunicados de diferentes formas. Há algo de peculiar em imprimir e olhar por períodos estendidos de tempo imagens que foram feitas para serem observadas numa tela de celular por algumas frações ou unidades de segundo. A expansão do tempo dedicado a elas permitiu a leitura de aspectos que muitas vezes passam despercebidos na dinâmica acelerada e efêmera das redes sociais.

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Os textos referenciados neste parágrafo são: “From Description to Correspondence: Anthropology in Real Time” que faz parte do volume Design Anthropology: Theory and Practice (Bloomsbury, 2013), de Tim Ingold e Caroline Gatt, e “Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial”, publicado no periódico Cadernos Pagu, n. 5 (Unicamp, 1995).

Com  Caroline Gatt e Tim Ingold, aprendi sobre a correspondência – uma abordagem de abertura da percepção para os fluxos de acontecimentos e materiais com os quais trabalhamos, que vai na contramão da produção de conhecimento como mero acúmulo de informações acerca do mundo. É estabelecendo relações com as coisas que observamos e investigamos que podemos pensar, de fato, sobre elas. Já com a Donna Haraway, aprendi sobre o fazer situado como critério fundamental para se pesquisar com responsabilidade. Ela critica os modos hegemônicos de fazer ciência, que recomendam abordagens distanciadas e presumidamente neutras como condição para uma suposta objetividade. Haraway, inclusive, é autora de uma frase que eu carrego sempre comigo em meus estudos, e acho que serve para muita coisa: “o único modo de encontrar uma visão mais ampla é estando em algum lugar em particular”. A objetividade e a amplitude vêm, portanto, de uma visão que está situada, não distante e despercebida.8

Dei o nome de análise relacional ao método que surgiu e se estruturou enquanto eu observava as imagens. Relacional porque ele é fruto da relação que estabeleci com essas imagens, de como escolhi ler todas elas, individualmente e em conjunto; mas relacional também, por conta dos vários tipos de relações que elas estabelecem entre si e com os fatos políticos e sociais com os quais elas dialogam. Em conjunto, as imagens coletadas narram histórias, carregam mensagens e comunicam discursos de interesse coletivo através de táticas visuais e usos da linguagem gráfica.

Um aglomerado de diferenças

A primeira coisa que percebi nas imagens modificadas da bandeira foi o tom de reprovação e protesto, frequentemente também bastante sarcástico. Na verdade, a imensa maioria das imagens que coletei cabiam nessa descrição, que acabou se tornando o critério para a criação do primeiro grupo de catalogação: denúncia e repúdio. No fim das contas, o volume dos outros dois grandes grupos – defesa e afirmação e outros futuros e comunidades –, somados, ainda era menor que o do primeiro.

As circunstâncias do próprio dissenso sobre a imagem da bandeira explicam essa desproporção: se a versão oficial da bandeira nacional brasileira, em muitos contextos, havia ocupado uma posição de identificação com o bolsonarismo, é natural pensar que ela serviria também como suporte para críticas e paródias criadas pela oposição.

“5664 Mulheres” (2014), obra de Beth Moysés, fotografada pela autora na exposição Histórias Brasileiras, realizada no Museu de Arte de São Paulo (Masp) em 2022.

“Monumento à Independência – I” (2021-2022), obra de Hal Wildson. Fotografada em 2023.

“Cobertor” (2020), obra de Jefferson Medeiros, fotografada pela autora durante a exposição “Carolina Maria de Jesus: Um Brasil para os brasileiros”, realizada no Museu de Arte do Rio de Janeiro (MAR) em 2022.

Desordem, destruição ambiental, vazio, fragilidade, apagamento, violência, autoritarismo, escassez, corrupção, retrocesso… Esses foram alguns dos temas que consegui identificar nas imagens reunidas neste grupo. Nesses casos, a bandeira simboliza o próprio problema – por vezes ela é o alvo das críticas, mas, frequentemente, também é o que o causa.

É como se, dentro de um processo de conscientização e amadurecimento político, o primeiro passo envolvesse necessariamente “dar nome aos bois”: identificar e enumerar os problemas, contabilizar e apresentar os dados, dar conta, objetiva e subjetivamente, do que destrói e do que ameaça nosso senso de coletividade.

No prefácio à obra de Frantz Fanon Os Condenados da Terra (Civilização Brasileira, 1968), Jean-Paul Sartre (1905-1980) escreve que “nós não nos tornamos o que somos senão pela negação íntima e radical do que fizeram de nós”. Embora ele esteja se referindo a um contexto social e político muito diferente do nosso, essa é uma frase que parece explicar as imagens que compõem esse primeiro grupo. É como se, dentro de um processo de conscientização e amadurecimento político, o primeiro passo envolvesse necessariamente “dar nome aos bois”: identificar e enumerar os problemas, contabilizar e apresentar os dados, dar conta, objetiva e subjetivamente, do que destrói e do que ameaça nosso senso de coletividade.

Conjunto de imagens coletadas a partir da hashtag #designativista ou da conta @colecao_bandeira no Instagram.

Aos poucos, fui percebendo que havia imagens que serviam de  contraponto  para as anteriores. Elas veiculavam, sim, versões modificadas da bandeira nacional brasileira, mas transmitiam mensagens em defesa e afirmação de valores e ideias populares. Assim nascia mais um grupo conceitual.

Registro fotográfico da bandeira “A ordem é samba”, de Juliana Joannou, usada no Samba da Volta, no Rio de Janeiro. Fotografia de Mar Muricy, 2023.

As imagens reunidas nele exaltam o legado e o patrimônio brasileiro, comunicam valores e políticas de reparação, falam sobre resistência, futuro e esperança. Há também um subgrupo expressivo exclusivamente composto por imagens produzidas durante o período eleitoral. Essa produção localizada no tempo e no território nacional demonstra um esforço do espectro político de esquerda em resgatar o estandarte como representação nacional, em reação à apropriação e uso reforçado do símbolo pela direita.

Conjunto de imagens coletadas a partir da hashtag #designativista ou da conta @colecao_bandeira no Instagram.

Acho que não é preciso dizer que o processo de convivência, observação e experimentação com essas 338 imagens envolveu muitas idas e vindas, nomeações e renomeações, aproximações e distanciamentos entre imagens e grupos. Com o tempo, comecei a perceber um terceiro tipo se sobressaindo no acervo: imagens que davam um passo além.

A esse terceiro e último grupo conceitual, dei o nome de imagens em proposição a outros futuros e comunidades. São imagens de  criação, intervenção e releitura sobre a bandeira nacional brasileira em que se observa um subtexto de denúncia e repúdio, ou de afirmação de princípios e valores – porém, nessas, é possível enxergar um tipo de abertura especulativa. São imagens que extrapolam a noção de resistência para exprimir valores de retomada, resgate e sonho.

“Bandeira brasileira” (2019), obra de Leandro Vieira, fotografada pela autora no Masp durante a exposição Histórias Brasileiras em outubro de 2022.

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O termo “estória”, e não “história”, conforme usado por Donna Haraway em seu livro Ficar com o problema: fazer parentes no chthuluceno (N-1 Edições, 2023), foi escolhido intencionalmente, como forma de diferenciar melhor as narrativas fabuladas a partir das imagens, do que são os fatos passados, parte da narrativa historiográfica oficial.

Mais do que isso, essas imagens também deixam explícita a pluralidade que compõe qualquer coletividade. De fato, uma bandeira nacional também pode ser acionada como um tipo de manto apaziguador, empregado para unir e identificar uma nação que é constituída, sobretudo, por várias comunidades diferentes. Essa afirmação da diferença nas imagens deste grupo conceitual fica mais nítida à medida que percebemos que tais bandeiras imaginadas defendem grupos sociais oprimidos, apagados ou deixados à margem da história oficial do Brasil. São bandeiras que representam pessoas indígenas, negras, quilombolas, LGBT+ e praticantes de religiões de matriz africana; ou bandeiras de discursos revolucionários, que defendem valores ou medidas pouco acolhidas na realidade atual.

Nos grupos anteriores, as imagens foram lidas por mim como registros e interpretações de fatos de um passado comum e, por isso, podem ser relacionadas a momentos históricos dos últimos anos. Dada a natureza imaginativa deste terceiro grupo, sua análise exigiu outro tipo de aproximação: essas bandeiras imaginadas servem de inspiração para estórias de um Brasil futuro, posto que experimentam com a escrita de fabulações especulativas. Por serem baseadas em análises factuais e documentais, essas narrativas ficcionais funcionam como exercícios de imaginação sobre outros futuros possíveis e refletem nossa capacidade, enquanto sociedade, de responder aos desafios do presente.

Para além do caso específico da bandeira nacional e das circunstâncias de sua criação, essa pesquisa também joga luz sobre a problemática que é projetar algo para representar uma ampla variedade de pessoas, frequentemente unidas por processos de exploração e violência, como aconteceu na fundação do Brasil e de tantos outros países.

Em diferentes partes do mundo, imagens têm sido usadas para recrutar, radicalizar e cultivar sensos de identidade e de pertencimento a doutrinas políticas específicas – especialmente entre grupos de extrema-direita, que parecem ter compreendido mais rapidamente o poder das imagens sobre o imaginário coletivo. Esses casos nos ajudam a perceber que, para querer alguma coisa, é preciso conseguir imaginá-la. No mínimo, a visualização deste outro imaginário facilita o processo de dispor forças para alcançá-lo. As imagens que compõem esse terceiro grupo parecem apontar, justamente, para essa direção. 

Ao fim da análise dos conjuntos, fica evidente que o dissenso estético em torno da imagem da bandeira nacional é apenas o reflexo de uma série de questões maiores e mais complexas, que abarcam a realidade brasileira e a própria constituição do país. O que o design tem a ver com isso? Bom, para além do caso específico da bandeira nacional e das circunstâncias de sua criação, essa pesquisa também joga luz sobre a problemática que é projetar algo para representar uma ampla variedade de pessoas, frequentemente unidas por processos de exploração e violência, como aconteceu na fundação do Brasil e de tantos outros países. Muitos projetos de design são atravessados por essas questões, frequentemente encobertas, dentro das demandas comerciais e briefings de criação. No contexto de mercado, parece ser mais palatável vender o sonho idealizado da união homogênea do que comunicar a importância e o valor das diferenças que nos atravessam.

“Fantasmas da Esperança” (2018), pintura de Marcela Cantuária fotografada por Vicente de Mello, que ilustra este ensaio.

Refundar o país, demarcar territórios” (2020), obra de Matheus Ribs.

“Bandeira afro-brasileira (em diálogo com David Hammons)”, segunda versão (2020), obra de Bruno Baptistelli fotografada pela autora no Masp durante a exposição Histórias Brasileiras” em outubro de 2022.

“Bandeira Mulamba de Ouro” (2021), obra de Mulambö, fotografada pela autora no MAR durante a exposição Carolina Maria de Jesus: Um Brasil para os brasileiros, em junho de 2023.

(In)conclusões

Existe uma linha narrativa que conduz essa pesquisa: ela vai da revolta ao sonho, da denúncia à imaginação, do repúdio à proposição. O conceito de design especulativo, apresentado a mim ainda na graduação, sempre pareceu, pelo menos para mim, ser motivado por um tipo de curiosidade típica de designers excêntricos norte-americanos ou europeus com bastante orçamento e tempo disponíveis para experimentar – em outras palavras, algo que poderia até ser interessante, mas que parecia estar fora da minha realidade. Eu era, afinal, uma jovem de Petrópolis estudando design numa universidade pública no centro do Rio de Janeiro. Reencontrar no mestrado a ideia de especulação, imaginação e sonho, portanto, foi uma surpresa tão inesperada quanto bem-vinda. Afinal, não é o design o ofício orientado a projetar e manter os produtos, serviços e comunicações que compõem nossa realidade material?

O lugar do design enquanto prática de levantamento de possibilidades, e não só de pronto atendimento de demandas comerciais, é um ponto sensível desde os tempos mais primórdios desta profissão. Neste trecho do artigo “Political Economies of Design Activism and the Public Sector”, apresentado na conferência Nordes 2011 – Making Design Matter, em Helsinque, e traduzido livremente por mim, o pesquisador Guy Julier afirma:

A história do design nos diz duas coisas. Uma delas é que a profissão de design sempre foi moldada por forças econômicas, sociais, políticas e culturais. A outra é que muitos designers e educadores de design são idealistas. Essas duas questões permanecem em conflito. A primeira sugere que o design é uma atividade passiva e pragmática destinada a responder aos fluxos e refluxos da mudança local e global. É impulsionado pelo serviço a interesses mais amplos. Mas os designers também estão interessados em melhorar o que existe.

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A exposição foi realizada de novembro de 2018 a janeiro de 2019, na galeria Periscópio Arte Contemporânea, em Belo Horizonte, Minas Gerais.

Na atual realidade de insegurança econômica e precarização do trabalho, é difícil encontrar espaços e oportunidades em que seja possível dar vazão a essas motivações idealistas. Usar as habilidades de design em prol das demandas cotidianas de causas políticas e campanhas de ativismo é um passo importante, mas me parece não ser o único. O designer deveria, também, estar aberto ao potencial do sonho. Especular, imaginar e pôr em questão como as coisas poderiam ser, ou o que poderíamos buscar é, também, uma prática fundamental para os tempos em que vivemos. Não isolados, não sozinhos, não alienados – cada um em seu home office imaginando utopias –, mas sim em diálogo com o mundo, com o que emerge no debate público, com o que diferentes grupos sociais de atuação política discutem e elaboram coletivamente sobre possíveis saídas e contornos para os problemas atuais. No texto curatorial para a exposição “República da Cobra”, de Randolpho Lamonier e Thiago Martins de Melo10, o curador Germano Dushá escreve que “a imaterialidade dos sonhos intervém sobre a materialidade da vida”, e que é no sonho que “somos capazes de pensar criticamente, quando flexionamos os limites da realidade”. Para cultivar alguma lucidez sobre os problemas que se apresentam hoje, talvez seja mesmo necessário suspender parte das restrições que a realidade nos impõe.

Desde que entreguei minha dissertação, a bandeira nacional brasileira não deixou de ser foco de debates, campanhas e eventos diversos que mobilizaram seus significados.
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Você pode baixar e ler a minha dissertação completa na Biblioteca Digital de Teses e Dissertações da Uerj.

Por fim, cabe dizer que fazer pesquisa também envolve desenvolver a valiosa habilidade de saber a hora de parar. Porque (pela última vez!) o mestrado passa rápido demais, e, quando menos se espera, você tem que escrever e finalizar um trabalho que parece que está só começando. Mas também porque o conhecimento dificilmente se esgota, e a tentação de seguir abrindo caixinhas e mais caixinhas de temas e assuntos correlacionados é grande. No mais, desde que entreguei minha dissertação11, a bandeira nacional brasileira não deixou de ser foco de debates, campanhas e eventos diversos que mobilizaram seus significados. Em maio de 2024, num show histórico na Praia de Copacabana, Madonna trouxe ao palco e balançou a bandeira brasileira, também representada nas cores do seu figurino – a bandeira não é da extrema-direita, é também de toda população LGBT+. Nos Jogos Olímpicos de Paris, a conquista do ouro por Rebeca Andrade no exercício do solo na ginástica artística fez a bandeira do Brasil ascender ao lugar mais alto do pódio – a bandeira representa o esporte nacional e o sucesso de uma atleta negra brilhante. As discordâncias persistem, mas estão em constante transformação. Por isso, conclusões sobre este símbolo nacional são sempre, necessariamente, parciais e temporárias. Pesquisar, para mim, tem a ver com expandir a visão e ganhar perspectiva sobre as coisas. A contradição, enfim, abre espaço para que a gente a observe e aprenda com ela.

Printscreen da transmissão da CazéTV dos Jogos Olímpicos de Paris em 1º de agosto de 2024.

A obra Encontro, que acompanha este ensaio, foi cedida por Nódoa (André Rodrigues) (@nodoa_ no Instagram).

É seguro dizer que Eduardo Coutinho (1933-2014) é o documentarista mais importante do Brasil. Talvez o maior marco de sua obra seja Cabra marcado para morrer (1984), documentário que ele começou a gravar em 1964, sobre um líder camponês paraibano que havia sido assassinado dois anos antes. Mas houve um golpe empresarial-militar no meio do caminho. O engenho da Galileia, base da produção, foi cercado pela polícia; parte da equipe foi presa, e o filme, suspenso. Dezessete anos depois, com o Brasil em processo de redemocratização, o trabalho pôde ser retomado, e o filme foi lançado com um hiato de vinte anos.

Não me sinto muito à vontade para falar do meu xará; sua filmografia é importante demais e eu a experimentei de menos até agora. Todavia, compreender que ele é reconhecido como um documentarista é fundamental para elaborarmos algumas ideias sobre o status da imagem a partir de Jogo de cena (2007). O que nós pressupomos quando falamos que uma produção audiovisual é um documentário? Ou ainda que é “baseada em fatos reais” ou “autobiográfica”? Minha opinião é que esses procedimentos retóricos querem imprimir certa condição de realidade às imagens a que se referem. Ou seja, quando a gente assiste a um documentário, a gente pressupõe que aquilo que a gente vai ver é de verdade

Mas não é. Ou, pelo menos, não inteiramente. É precisamente essa ambivalência intrínseca das imagens – e como elas operam – que Jogo de cena, a meu ver, explora de maneira extremamente contundente. 

Desconfiar, mas não demais: a imagem como janela e parede

No filme, uma das coisas que Coutinho faz é justamente colocar em dúvida o status de verdade da imagem. A primeira coisa que vemos é um anúncio impresso nos classificados, convocando mulheres a contarem suas histórias. Perceba que esse início desempenha uma função retórica: “o  que veremos a seguir é de verdade, até saiu no jornal”. De forma complementar, a dimensão autoral – o que o público já sabe sobre Coutinho – também desempenha um papel importante: ele é um documentarista. E documentaristas registram e difundem o que realmente ocorreu. Não é?

Cartaz de Jogo de Cena (Eduardo Coutinho, 2007)

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Pelo menos, conhecidas à época. Em uma discussão com Jovens™ no Cinefilô – um tipo de clube do filme aberto à comunidade e realizado no Campus Recife do Instituto Federal de Pernambuco (IFPE) como atividade de extensão – foi surpreendente saber que não reconheceram Marília Pêra como atriz.

Em contradição com essa premissa, no entanto, ele escala três atrizes muitíssimo conhecidas pelo público brasileiro: Andréa Beltrão, Fernanda Torres e Marília Pêra1. Além disso, ele também convida para participar do filme outras atrizes muito menos conhecidas, e a participação delas será determinante para nós, espectadores. Famosas ou disfarçadas de anônimas, elas são atrizes. Atrizes atuam,  falseiam a realidade. Para nós, no polo da recepção, o tratamento que Coutinho faz das imagens – na captura e na montagem – é crucial para que Jogo de cena faça o que faz conosco. Na superfície do filme, não há distinção entre os depoimentos pessoais das mulheres que entraram em contato com a produção por meio do anúncio nos classificados e os das atrizes que performam ali naquela austera cadeira, em um palco de teatro, de costas para um público ausente. 

Pelo menos em parte, o jogo conduzido por Coutinho serve de exemplo metonímico para uma larguíssima parte da filosofia “ocidental”, que resguarda enormes desconfianças das imagens, porque seria de sua natureza nos seduzir e nos enganar.
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Lá no livro X de A República, Platão classifica os tipos de “imitadores”: poetas, músicos e pintores. Dentre eles, os pintores seriam os mais ignorantes, pois estariam mais distantes da forma ideal: ao pintar um objeto, eles copiam a cópia da ideia perfeita daquele mesmo objeto que está em suas mentes. Vou precisar discordar de Platão: quando pintamos, não espelhamos o visível, mas extraímos algo dele para criar a representação. 

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Nessa história, os dois pintores fizeram uma competição. Zêuxis pintou uma natureza morta tão perfeita que um pássaro tentou bicar suas uvas bidimensionais. Sentindo-se orgulhoso, Zêuxis pediu então para que Parrásio revelasse sua pintura, retirando a cortina que a encobria. Para espanto geral, não havia cortina. A pintura era a representação de uma cortina. Como sugeri, Platão entendia que o objetivo da imagem era apenas enganar os sentidos.

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Vilém Flusser, “Imagem nos novos meios”, em O mundo codificado: Por uma filosofia do design e da comunicação (Ubu, 2017).

Esses procedimentos contraditórios acentuam a ambivalência das imagens e nos obrigam a pensar sobre elas. Por natureza, as imagens aparentam ser imediatas – e com i-mediatas quero dizer sem mediação. Assim, elas se confundem com a própria coisa que substituem – ou, como gostamos de dizer, representam. Nesse caso, os depoimentos substituem os fatos, mas a memória que os registra pode, ou não, ter sido ensaiada. Pelo menos em parte, o jogo conduzido por Coutinho serve de exemplo metonímico para uma larguíssima parte da filosofia “ocidental”, que resguarda enormes desconfianças das imagens, porque seria de sua natureza nos seduzir e nos enganar. Por servirem de janelas, olhamos através delas. Para resistir a isso, deve-se, defenderia Platão, utilizar a razão (logos) para chegar à verdade. Isso fica explícito no tratamento negativo imputado aos pintores em A República2 ou na rinha de pintura entre Zêuxis e Parrásio3 contada por outro grego – Plínio, o Velho. 

Até aí, tudo bem. O problema é que, como diria Flusser, “há uma tendência a se confundir a recepção das telas com a das imagens das cavernas, como se as novas imagens se precipitassem sobre nós […] porque [as recebemos de maneira] acrítica”4. Nessa longa relação que temos com as imagens, Flusser aponta que a imagem pré-histórica não precisava ser recebida criticamente, pois era produzida por uma comunidade e para ela mesma: “é um reconhecimento fixado, uma vivência fixada, uma valoração fixada, e é um modelo para o reconhecimento intersubjetivo futuro”. O curioso é pensar como e por que as imagens que circulam hoje – neste estágio avançado de capitalismo tardio, entregues por um alfaiate algorítmico diretamente na ponta de nossos dedos – operam como se ainda fossem as imagens pré-históricas. 

Nós sabemos que as imagens que perseguimos no feed são falsas. Talvez saibamos conscientemente, mas obviamente não sentimos como se fossem. Se sentíssemos, não teríamos tanta ansiedade generalizada e circulação de desejo nas plataformas proprietárias de grandes monopólios globais. Graças à natureza das imagens, é muito difícil não ser seduzido por sua aparente imediatez. Além disso, considerando o enorme fluxo com que as recebemos e as diferentes respostas emocionais suscitadas por elas, é muito cognitivamente custoso recebê-las criticamente. Por mais que elas se tornem cada vez mais irreais, cada vez mais espetaculares. 

No caso dos documentários, essa incerteza acerca do que é real se agrava quando seus códigos são apropriados e subvertidos. Há codificações específicas e procedimentos técnicos de captura e montagem dessas imagens que predispõem que elas sejam percebidas como algo de verdade. O setting de uma entrevista – com seu cenário amplo e uma pessoa comedidamente sentada e bem enquadrada – confere autoridade ao discurso que virá. Já na montagem, esse tipo de depoimento é frequentemente intercalado com outras imagens que supomos ter caráter documental ou histórico – como pinturas, livros ou cortes de telejornais –, ao som de uma trilha sonora sóbria.

Em termos da superfície do filme, toda imagem é imagem – nenhuma é mais ou menos verdadeira.

Mas, em termos da superfície do filme, toda imagem é imagem – nenhuma é mais ou menos verdadeira. Para todos os efeitos de produção, circulação e recepção, elas constituem apenas mais um gênero audiovisual e, portanto, podem ser manipuladas. É o que fazem os falsos documentários, ou em inglês mockumentaries (sabe em The Office quando os personagens falam com a câmera?), ou mesmo alguns canais de YouTube financiados por institutos e think tanks liberais que utilizam procedimentos pretensamente documentais para falsificar a história brasileira e mundial.

É essa ambivalência que Coutinho esgarça pelo seu uso da forma cinematográfica. Bem rápido, entendemos que as imagens de seu filme são e não são de verdade. Em um movimento digno de Magritte, a superfície do filme deixa de ser somente uma janela que nos puxa para um outro mundo, e passa a ser também uma parede, que nos obriga a olhar para ele. Além do surrealista francês, essa dupla valência entre janela e parede me lembra também de Bartleby, o escrivão, personagem que intitula o conto de Herman Melville (Ubu, 2017). O protagonista é famoso por ser um obstáculo na narrativa; tudo o que ele faz é ficar parado, trabalhando em frente a uma janela que dá para uma parede, e responder: “eu acho melhor não” a qualquer pergunta ou pedido.

Além de ser janela e parede, a imagem também é espelho.

Tal qual o poeta João Cabral de Melo Neto, para quem a poesia deveria ser uma superfície áspera, Coutinho não quer nos apaziguar, e sim nos inquietar. É isso que ele faz quando, lá pelos sete minutos de filme, corta o depoimento da segunda entrevistada, Gisele Alves Moura, e nos mostra Andréa Beltrão repetindo sua última fala: “eu saí um pouco do foco do casamento”. Agora, a história é de quem: Gisele ou Andréa? A partir daí, nós somos convidados a construir cada história por meio  da composição entre as falas de diferentes mulheres.

Além de ser janela e parede, a imagem também é espelho. Depois de desconfiar das imagens, devemos continuar certa aventura dialética ao admitirmos que não há modo de compreender nosso lugar no mundo, de nos colocar aqui, de socializar, de nos relacionar com outras pessoas, que não passe pela imagem.

Psicanálise, mas não muito: a imagem como reflexo e projeção

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O texto de Lacan pode ser encontrado em português na coletânea Escritos, publicada pela Zahar em 1998.

Uma contribuição fundamental para compreendermos como as imagens participam do nosso processo de subjetivação é de Jacques Lacan (1901-1981). Não vou adentrar demais na teoria  lacaniana por duas razões: a primeira é a limitação de escopo deste texto e a segunda é a minha própria limitação de conhecimento. Aqui, pretendo apenas discutir um aspecto específico de uma de suas contribuições decisivas para a psicanálise: “O estádio do espelho como formador da função do eu”5, publicado em sua versão definitiva em 1949. 

O estádio do espelho é um esquema que Lacan constrói, usando conhecimentos de diversas disciplinas, para demonstrar que a imagem é fundamental para o desenvolvimento do eu. De uma perspectiva biológica básica, nós nascemos muito prematuramente; basta comparar o ser humano recém-nascido a outras espécies de mamíferos – talvez os algoritmos já tenham te mostrado uma girafa dando a luz: a girafinha despenca do ventre da mãe e, em pouco tempo, já dá seus primeiros passos. Já um bebê é muito frágil, indefeso e dependente. Não nascemos sequer com a capacidade de separar o que distingue nós mesmos do nosso entorno; não temos a dimensão de onde termina o nosso corpo e de onde começa o mundo exterior.

No entanto, para que uma pessoa possa se constituir como alguém autônomo e coerente, ela deve primeiro se distinguir dos outros e de seu entorno. Um dos marcos desse processo, como nos dizem os psicólogos experimentais, acontece entre seis e dezoito meses, quando o ser humano começa o processo de identificação com a sua imagem no espelho. Trata-se de um processo de acertos e erros, que ocorre de maneira não linear. Mas sabemos que, inicialmente, ao ver seu próprio reflexo, a pessoa reage como se estivesse diante de um outro; ela não se reconhece na imagem. 

Com o tempo, ela passa a se reconhecer, mas também a se distinguir de seu próprio reflexo. A pessoa começa a entender que é lá, naquela imagem, que seu fluxo incessante de sensações adquire unidade. Com isso, passa a ter consciência de seu próprio corpo e de suas funções corporais, à medida que desenvolve a consciência do mundo externo para se diferenciar dele. Em alguns momentos, quando a separação falha, ela não reconhece nenhum outro; tudo é eu. Esse é um traço, inclusive, da fantasia da onipotência infantil: o mundo existiria para servir a ela.

A imagem refletida nos apresenta um dilema porque ela está intimamente conectada ao nosso senso de si e, ao mesmo tempo, é externa a cada um de nós – está lá.

O mais interessante dessa história, para mim,  é a contradição em que se fundamenta o processo descrito por Lacan. A imagem refletida nos apresenta um dilema porque ela está intimamente conectada ao nosso senso de si e, ao mesmo tempo, é externa a cada um de nós – está . Ela nos impõe, assim, um grau de alienação. Para que a pessoa entenda que ela é uma pessoa – ou seja, tenha unidade e identidade – ela precisa se ver “de fora”, como outro, como imagem. Então, pode-se dizer que a formação do eu se inicia com uma cisão contraditória: ela se dá quando começamos a nos confundir com o outro que vemos no espelho. Para sintetizar, Lacan dirá que “O Eu é um outro”. 

É a partir disso que a coisa começa a ficar complicada, porque, de maneira muito básica, nós – como muitos outros mamíferos – operamos por mimese. Todos os nossos processos de integração social funcionam por meio da identificação. Ou seja, esse processo contraditório de subjetivação não se dá apenas com espelhos empíricos; pelo contrário, qualquer imagem pode funcionar como espelho. Logo, ao nos identificarmos, também nos confundimos com o outro, e somos compelidos a agir por imitação. Naturalmente, introjetamos a imagem do outro a partir daquilo com o que nos identificamos e acabamos mimetizando os seus gestos. 

Portanto, por meio das imagens ocorre uma profunda confusão entre o eu e o outro. É essa confusão que Coutinho agrava, primeiro, pelo enquadramento: os close-ups nos prendem às microexpressões e ao olhar de cada mulher. Depois, por meio da montagem: ao justapor pessoas diferentes contando uma mesma história – com repetições, omissões, idiossincrasias –, nossa dicotomia ingênua entre atuação e verdade perde o sentido. Dá para dizer que esse é um dos sentidos de “jogo” em Jogo de cena: o filme joga com a nossa expectativa de que as atrizes conhecidas estariam atuando enquanto põe em cena a imitação que funda o próprio ofício da atuação. 

Por exemplo, quando Débora Almeida conta a sua história, faz questão de mencionar o modo como as pessoas a enxergam (“as pessoas acham que porque você se veste assim, você é uma mulher fácil”). Entretanto, para ela, o que realmente importa é estar confortável, pois “eu sei que eu me adoro tanto, que, antes de qualquer coisa, eu vou me ver”. De tão autêntico, o seu testemunho racha a frágil distinção entre “verdade” e “ficção” quando ela vira para a câmera e diz: “foi isso que ela disse”. Ou então quando Andréa Beltrão elabora sobre o esforço que é fazer uma cena “sem imitar” – e como, de alguma maneira, a emoção a domina mais do que a pessoa que ela representa: “Eu precisaria ensaiar isso muitas vezes para falar isso […] estoicamente […] [com a] serenidade dela”.

Se as imagens são espelhos em que nós nos projetamos, também olhamos para nós mesmos por meio delas.

O modo como Coutinho justapõe os planos fechados – e os mais fechados ainda – das atrizes-que-sabemos-ser-atrizes, das atrizes-que-não-sabemos-ser-atrizes e das não-atrizes simplesmente faz com que essa diferença se torne irrelevante. Se as imagens são espelhos em que nós nos projetamos, também olhamos para nós mesmos por meio delas. Dito de forma mais lacaniana, aquilo que significamos é mediado pelo Outro. 

Essa dimensão de identificação quase imediata é o que podemos chamar de Imaginário. Ele é permeado por certa cisma, dado que esse é o modo mais rudimentar que temos de nos relacionar com o mundo. Não há muita elaboração, pois a força gravitacional da imagem nos engole como se fosse um buraco negro. Afinal, é justamente pela própria imagem que Narciso se apaixona e, ingenuamente, morre. Precisamente essa natureza sedutora da imagem que é operada nos feeds que nos mantêm presos à dinâmica infinita – a menos que a gente a interrompa – de circulação de imagens.

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Karl Marx, O capital, Livro III (Boitempo, 2017). Em outras traduções, há uma menção mais direta entre aparência e essência. Eu concordo com a afirmativa, mas discordo de uma leitura mecanicista da relação entre aparência e essência; o método é dialético precisamente por dar conta da dinâmica entre elas.

A desconfiança das imagens não é infundada. Tomado de cara, o Imaginário é eficiente em se confundir com aquilo que representa e em fundar concepções rasas e excessivamente parciais da realidade. Por isso que boa parte das teorias críticas denunciam a ideologia como se ela fosse intrínseca às imagens e buscam desmistificá-las por meio da razão. Essa pulga atrás da orelha parece ter origem na ideia de que as aparências sempre escondem a essência e é frequentemente justificada pela cartada marxista de que “toda ciência seria supérflua se a forma de manifestação e a essência das coisas coincidissem imediatamente”.6 Nesse sentido, há muitas semelhanças com Platão. O que eu gostaria de fazer é apresentar a quase imediatez das imagens mais uma vez, mas agora por outra perspectiva. Uma, talvez, que dê a ver como ela pode ser de verdade.

Imitamos, mas não tudo: a imagem como humanização e programa

Mary Sheyla, a primeira entrevistada, é uma atriz que elabora sobre o próprio ofício. “O que é ser atriz?”, ela pergunta, antes de contar que está ensaiando para ser Medeia em Gota d’água, peça de Chico Buarque. A Medeia é uma figura da mitologia grega, particularmente fascinante por sua ambiguidade e seu arco narrativo dramático. Entretanto, ela é mais do que uma personagem; ela é o que o historiador da arte Georges Didi-Huberman (1953-) chamaria de uma fórmula emocional (pathosformel).

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Georges Didi-Huberman, Diante do tempo: história da arte e anacronismo das imagens (Editora UFMG, 2015).

Quando pensamos em história da arte, tendemos a pensar que o esforço dessa disciplina é ordenar cronologicamente certo tipo de produção cultural, chamada Arte. De maneira geral, seguir uma cronologia, contextualizar imagens em determinados momentos históricos, tratando-as como documentos e evidências, são estratégias para a construção de uma narrativa coesa. Podemos denominar essa atitude histórica como eucrônica: “não é nada mais que uma busca da concordância dos tempos”7.

Nessa linha da História, uma acusação de anacronismo é, para todos os efeitos, um xingamento, porque aponta certa incapacidade de compreender um fenômeno histórico a partir de seu contexto. E, de fato, a ciência da História deve trabalhar com procedimentos para assegurar que as ideias de um tempo sejam acompanhadas de seus respectivos contextos, para assim adquirirem seu pleno sentido. Apesar disso – ou talvez por isso –, nos esforçamos para ler e compreender ideias de outras épocas, de outros países, de outras pessoas. Ainda assim há, de fundo, a crença de que existe algo que se mantém, a despeito das diferenças extratextuais, e que podemos apreender esse fator essencial. Ou seja, mesmo que tentemos nos livrar dela, ainda temos, de fundo, certa atitude anacrônica.

[Fórmulas emocionais] estão presentes nas imagens que, independentemente do contexto, evocam em nós uma resposta emocional, que dão um curto-circuito em nossa suposta racionalidade e acabam nos afetando e, assim, moldando nossa subjetividade.

É em relação a essa atitude que Didi-Huberman defenderá que as imagens se prestam de maneira particularmente produtiva. A partir das contribuições de alguém que lhe antecedeu, Aby Warburg (1866-1929), Didi-Huberman chamará atenção para a natureza anacrônica das imagens, que se consolida no conceito de fórmula emocional. Essas fórmulas estão presentes nas imagens que, independentemente do contexto, evocam em nós uma resposta emocional, que dão um curto-circuito em nossa suposta racionalidade e acabam nos afetando e, assim, moldando nossa subjetividade. Segundo o historiador, as imagens carregam vitalidade a despeito de seu contexto e do tempo em que foram produzidas. Em suma, há algo que sobrevive nas formas através das quais o conteúdo nos é apresentado.

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Georges Didi-Huberman, A imagem sobrevivente: história e tempo dos fantasmas segundo Aby Warburg (Contraponto, 2013).

Para Didi-Huberman, as imagens revelam “os sintomas visíveis – corporais, gestuais, apresentados, figurados – de um tempo psíquico irredutível à simples trama de peripécias retóricas, sentimentais ou individuais”8. Perceba que a palavra sintoma tem fortes bases na psicanálise freudiana como aquilo que se expressa a despeito de nossa consciência, mas é usada por ele para explicitar a complexidade intrínseca à análise de imagens. O crucial aqui é que nós acabamos por internalizar as imagens como modelos de comportamento, graças à mimese a que elas nos submetem; à confusão entre eu e Outro mediada por elas e à sua anacronia. Irremediavelmente, são elas que fornecem as fórmulas emocionais que usamos para lidar com nossa experiência de mundo.

Dado o grau de mercantilização da vida que vivemos, a brutal maioria das imagens que circulam hoje opera em função da alienação.

Essa relação especular com a imagem é extremamente ambígua: em muitos sentidos, ela nos humaniza e nos torna capazes de nos reconhecermos no outro, enquanto, simultaneamente, nos direciona à mera imitação. De um lado, há a experiência de alteridade própria da arte; de outro, há a alienação de nós por nós mesmos a partir da mimese. Dado o grau de mercantilização da vida que vivemos, a brutal maioria das imagens que circulam hoje opera em função da alienação. Como diria, de novo, Flusser, “elas devem preencher a função descrita com programas de comportamento: têm que transformar seus receptores em objetos”.

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A noção de transviver se origina em determinada noção de arte. Dito de maneira sucinta e abrangente, uma linguagem pode ser articulada para comunicar uma experiência (essencialmente individual) para outra pessoa. Quando essa comunicação nos faz transviver – ou seja, sentirmos como se fôssemos outra – podemos considerá-la uma obra de arte. Discuti isso longamente na minha dissertação O estranhamento nos livros ilustrados de Shaun Tan (UFPE, 2016).

Em Jogo de cena, a ambiguidade entre alteridade e mimese pode ser percebida de maneira lancinante quando Fernanda Torres flutua entre sua imitação de Aleta e suas próprias emoções que a extravasam ao imitar Aleta. Registrado ali há um verdadeiro acontecimento: uma experiência transvivida9. Quando as atrizes estão contando suas histórias, elas não estão falseando ou mentindo; elas se tornam veículos para as emoções de outra pessoa. O que, por sua vez, nos obriga a confrontar certo aspecto ficcional da nossa subjetividade: tal qual as atrizes, estamos sempre agindo como se fôssemos nós. Acontece que, às vezes, nós somos nós mesmos. 

Estamos sempre encenando – o que não significa que estejamos falseando. A não ser quando, como mostra o último plano do filme, o palco se esvazia: é quando morremos. Seja a morte literal, com a parada das funções vitais de um corpo, seja uma morte simbólica, que nos transformaria em zumbis acríticos, a serviço de um sistema que nos oprime. A partir da desconfiança que precisamos ter das imagens, devemos também admitir que é impossível nos relacionarmos com o mundo se não por meio das imagens. Estamos submersos nessa dinâmica porque nunca há uma finalização do eu. “Ainda bem”, eu diria, concordando com Paulo Freire.

Bandeira do Brasil reimaginada por Bruno Lima (@oluwabrabo)

Se estamos descontentes com nosso modo de vida, como podemos atuar na construção de uma nova sociedade? Enquanto designers, será que temos um papel importante a cumprir? Quais modos de agir precisamos repensar, e em quais lutas imediatas devemos nos engajar? Quais são nossas demandas de classe? Como usar nossa expertise de formatação visual para deixar nossa comunicação revolucionária mais efetiva? Como nadar contra a corrente em uma enxurrada cada vez maior de imagens e informações que estimulam somente o sucesso individual, e não a construção coletiva?

Abro este ensaio como uma lista de perguntas, mas sugiro que você não tente encontrar aqui todas as respostas. Creio que ninguém conseguiria respondê-las de imediato, sobretudo no contexto econômico e político atual, que faz com que nossa profissão seja cada vez mais orientada pela demanda acelerada dos algoritmos das big techs. Por isso, escrevo não somente enquanto designer, mas também enquanto militante de uma organização política de esquerda, que luta pela revolução e pelo socialismo. Sei que em nosso campo isso soa como um posicionamento audacioso, e separar minha vida profissional de minha atuação política tem sido cada vez mais difícil – um impasse que, de certa forma, encaro como um privilégio.

O intuito desta publicação é incentivar o diálogo entre nós, designers insatisfeitos com o mundo, sobre questões candentes da mudança que queremos operar.
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Em outubro de 2023, publiquei “O design e a linguagem visual em nossa tarefa revolucionária”, na plataforma Em defesa do comunismo. O texto foi escrito em diálogo direto com outros militantes e serviu de base para este ensaio.

Muitas pessoas, nesse mundo capitalista desenfreado, sofreriam represálias na esfera profissional por adotar essa posição – e nós, que podemos assumi-la publicamente, não devemos desperdiçar a oportunidade. O intuito desta publicação1 é incentivar o diálogo entre nós, designers insatisfeitos com o mundo, sobre questões candentes da mudança que queremos operar. Para que isso seja possível, é importante que existam espaços acolhedores e diversos – como o Clube do Livro do Design, a própria Recorte e seus incríveis desdobramentos coletivos – em que possamos debater sobre política no design de maneira qualificada e ter certeza de que seremos bem recebidas.

Até hoje, 6 anos depois da vitória eleitoral da extrema-direita, é estarrecedor perceber como os disparos em massa nas redes sociais e aplicativos de troca de mensagens permitiram que o discurso bolsonarista se estabelecesse no senso comum. Apesar da máscara antissistêmica, ele reafirma e consolida o status quo do capitalismo e advoga a favor daqueles que já detêm o poder político e financeiro – donos de grandes empresas (principalmente da tecnologia), banqueiros, senhores do agronegócio, exploradores de recursos naturais – para garantir a manutenção de seus interesses. 

Enquanto isso, a esquerda brasileira faz as pazes com a institucionalidade, ameniza seu discurso em nome da “elegibilidade” e ecoa falas “palatáveis”, que apenas negam tudo aquilo que seus inimigos são e defendem. Esse modus operandi nos coloca sempre contra nossos opostos e fica evidente em motes como “não passarão”, “ele não” e “não vai ter golpe”. O mesmo acontece em nossas mobilizações nas ruas, que quase sempre enfatizam o caráter contrário a alguma proposta governamental em curso (contra o teto de gastos, contra a privatização, contra a jornada 6×1, contra PLs ou PECs etc.). Vejam, não é errado reivindicar essas pautas, muito pelo contrário. Somos de fato contra tudo isso. Entretanto, isso nos coloca na posição de reagir a ataques, e nunca de propor e avançar pautas. 

Nessa estratégia defensiva, falar de revolução e socialismo é “arriscado demais”, “assusta as pessoas”. E, no fim, não se reivindica um programa próprio. Mas é preciso comunicar também, senão ainda mais, aquilo de que somos a favor. Não só na organização política da qual faço parte, mas no âmbito da esquerda como um todo, se vê uma série de debates e polêmicas a respeito de como devemos nos posicionar publicamente para dialogar com uma grande quantidade de pessoas e conseguir tocá-las, estabelecer uma comunicação efetiva, despertar sua indignação, plantar ali a semente de um movimento. Isso inclui questionamentos sobre como deve ser nossa linguagem verbal e visual: que símbolos devemos e podemos usar? Que suportes e mídias queremos adotar? Quais espaços precisamos frequentar? E, por fim, como tomar essas decisões?

Devemos nos reapropriar da radicalidade e defender que o programa antissistema pressupõe dignidade para todos, já que vivemos sob o jugo do capitalismo neoliberal, que ganha força nas políticas de austeridade e aprofunda o abismo social entre ricos e pobres.

A bandeira antissistêmica deveria ser reivindicada por nós. Devemos nos reapropriar da radicalidade e defender que o programa antissistema pressupõe dignidade para todos, já que vivemos sob o jugo do capitalismo neoliberal, que ganha força nas políticas de austeridade e aprofunda o abismo social entre ricos e pobres. Porém, não é simples falar abertamente sobre fazer a revolução do lado de cá da classe trabalhadora, sobretudo nas redes sociais, que são meios desenhados para fomentar a lógica do sistema vigente. Nossa maior dificuldade prática é agir de forma consistente, disciplinada e organizada, para que nossas ações sobressaiam em meio a tantas imagens e informações que passam verticalmente por nossas telas, nos cobrando a produzir e a consumir mais e mais. 

Daí vocês poderiam me perguntar: fazer isso não é ceder à lógica de produtividade constante dos algoritmos? Ocupar as redes sociais não seria contraditório para um comunista, já que por consequência estaríamos dando lucro a grandes empresas com nossa propaganda política? Então, eu responderia: se não ocuparmos também as redes, quem vai se apossar do nosso espaço? Sim, nosso trabalho está nas ruas, nos bairros, nas escolas, nas universidades; mas na sociedade do imediatismo, devemos fazer uso de todas as ferramentas disponíveis para defender nosso projeto e levá-lo adiante. Isso inclui redes sociais, plataformas digitais e também os tão subestimados meios impressos, como jornais, panfletos, revistas, cartazes, lambe-lambes, zines e livros.

Nossa estratégia de comunicação verbal e visual deve estar atrelada não apenas ao objetivo prático do alcance e engajamento – onde o design entra como uma importante ferramenta, como já sabemos –, mas também conectada a um propósito maior: criar um terreno fértil para a construção imediata do imaginário de uma nova sociedade, genuinamente brasileira e socialista. Nossa tarefa enquanto vanguarda é fomentar o novo, tanto nas formulações e debates políticos quanto na cultura, nas práticas sociais e nas artes. 

Um exemplo muito positivo nesse aspecto é o trabalho do rapper cearense Don L, tanto em sua linguagem musical quanto em sua preocupação com a linguagem visual. Em seu último álbum, Roteiro para Aïnouz vol.2, Don rompe com a linearidade cronológica através de letras imagéticas, que mencionam nosso histórico de colonização ao mesmo tempo que prefiguram um futuro revolucionário. Ele utiliza samples de canções indígenas e de cultos; referências a clássicos do rap e ritmos atuais para convidar o público a imaginar a primavera da revolução brasileira. Para além disso, cria um universo visual singular, que compreende até mesmo uma proposta para uma nova bandeira do Brasil, desenhada por Bruno Lima. Don assume seu papel de artista no presente para trazer à tona os afetos revolucionários e a imagem de uma nova sociedade brasileira. Esse é o objetivo da atuação multipolar e ambiciosa que acredito ser necessária para a prática politizada de nossa profissão.

Don L por Bel Gandolfo (@kiddotrixx)

Meios e fins

Para atingir esse objetivo por meio da tarefa de agitação e propaganda, não só devemos ocupar todas as mídias possíveis, mas pluralizar as linguagens que usamos para veicular nossas plataformas, para que nosso trabalho como comunicadores políticos organizados se enriqueça, circule, desperte curiosidade, atraia olhares. Nesse sentido, é interessante mencionar o debate “impresso versus digital”, que vem acontecendo na organização da qual faço parte a respeito do jornal que publicaremos. Em nossa concepção, ele é um veículo primordial para a coesão e profissionalização do nosso trabalho político. 

“Por que imprimir o jornal se quase ninguém mais compra jornais impressos? Podemos publicar notícias e formulações apenas no site, não seria a mesma coisa? Jornal impresso é banheiro de pet, precisamos focar nas redes sociais.” A meu ver, a resposta para esse embate é razoavelmente simples: adotemos ambos, desde que o impresso ofereça algum diferencial em relação ao digital, não seja apenas o mesmo texto copiado e colado em outro suporte. O mercado editorial, diante dos desafios impostos pela digitalização da leitura, tem transformado o livro impresso em um objeto que também comunica pela sua materialidade, ao se valer da dimensão tátil e visual em que um e-book, por exemplo, deixa a desejar. Incluo aqui como referência a matéria “The Irregular Times — How one newspaper in India is rejuvenating print”, publicada em agosto de 2023 na revista digital WePresent (isso mesmo, a revista do WeTransfer) sobre uma experiência indiana que suscita essa questão.

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Tradução livre a partir do original em inglês.

“O que pode um jornal fazer que qualquer outro meio não pode? Vamos colocar a questão de outra forma. Por que criar um jornal na época digital atual? É uma pergunta que vem sendo feita no mundo criativo por mais de uma década, com muitos exaltando a materialidade física da impressão a despeito da fugacidade das experiências online. Mas o que também se tornou claro nos últimos anos é que o material impresso pode oferecer aos leitores uma importante dádiva – aquela da casualidade. Essa dádiva é potencialmente libertadora em um tempo em que aquilo que lemos e vemos é cada vez mais ditado por algoritmos movidos pelo lucro e filtros de bolhas.”2

Não vou entrar aqui no debate a respeito das big techs, algoritmos e segurança digital, uma preocupação extremamente válida, por sinal. Minha intenção é ressaltar que a materialidade pode sim oferecer uma experiência diferente de leitura e apreensão. Isso porque ela oferece inúmeras possibilidades que o formato digital não é capaz de abarcar. Explorar os formatos dos impressos, materiais diversos, texturas, transparências, sobreposições, formas de manuseio – todos esses são fatores que interferem e contribuem para a narrativa textual e visual, incorporando-se à própria mensagem. Bons exemplos disso são os livros Lululux e De novo de Gustavo Piqueira, ambos publicados pela editora Lote 42; e a edição da Ubu de Bartleby, o escrivão: uma história de Wall Street, de Herman Melville. Já na experiência indiana, os fundadores da The Irregular Times criaram um jornal de arte visualmente atraente, que dá visibilidade a novos artistas e é capaz de se adaptar a diversas identidades e linguagens visuais, à medida que cada dupla de páginas é totalmente diferente das outras. Ao mesmo tempo, a publicação democratiza o acesso a obras de arte fora de grandes feiras e galerias. Mas como? Através da distribuição do jornal em locais diversos e inusitados. Apesar de ser uma experiência no campo das artes, e não da política, seu resultado pode nos inspirar e fomentar futuras experiências organizadas politicamente.

É preciso pensar em estratégias transmidiáticas para promover o debate de assuntos plurais que aprofundem a consciência da classe trabalhadora.

O design, nesse tipo de iniciativa, tem o papel de tornar possível a coexistência das diferentes linguagens, sejam elas visuais, textuais, argumentativas, artísticas ou políticas. É preciso pensar em estratégias transmidiáticas para promover o debate de assuntos plurais que aprofundem a consciência da classe trabalhadora. Dessa forma, torna-se viável a produção de um universo de textos e imagens que expressem nossa sede de revolução, dialoguem com várias realidades, afetos, individualidades, estilos e gostos; enfim, que convidem o público a se apropriar desses materiais de maneiras criativas. Assim, se formos bem-sucedidos, a comunidade passa a ser um agente de divulgação. Se queremos que as pessoas se envolvam com nossas pautas, antes precisamos fazê-las se envolverem com a nossa comunicação.

A práxis e o design(er)

A prática política configura parte fundamental da formação do designer ou artista que se propõe um agitador e propagandista revolucionário – e justamente por isso ela não está circunscrita apenas à nossa atuação profissional. É preciso pensá-la para além do que conhecemos comumente como “design ativista”, que na maioria das vezes se refere a um “ativismo” que se encerra em si mesmo, no indivíduo e na produção de uma peça final, seja ela qual for. Nesse sentido, tenho acordo com Rafael Bessa e Eduardo Souza, que abordam esse tema, respectivamente, em seus textos Designers ou militantes organizados? Notas para um debate”, publicado em agosto de 2022 na Mídia Ninja, e “Ainda existe design(er) ativista?”, publicado em setembro do mesmo ano na Recorte.  

“Se as peças gráficas que criamos para comunicar estiverem divorciadas de ações de fato, nós estamos fadados a não realizar nada e, de quebra, ainda perder cada vez mais credibilidade de que algo talvez possa ser feito.”
Eduardo Souza

Veja, não há mal nenhum em produzir peças e obras com conteúdo político – inclusive, que bom que elas existem e podem ser feitas! Ainda assim, é preciso nos perguntarmos: qual é o avanço concreto quando produzimos 20 cartazes políticos individualmente em nossas casas e os espalhamos pela cidade – assim, sem nenhuma ação coletiva coordenada?

Para além de prestadores de serviços – ou “funcionários da comunicação”, como diria Flusser –, podemos e devemos ser designers militantes, que têm organicidade na sua atuação e estão inseridos em territórios.

Isolada de uma prática coletiva, organizada politicamente, com lastro na luta concreta e diária por esse horizonte revolucionário, essa produção tem consequências muito limitadas. Quando falamos de política nos círculos de designers, frequentemente nos referimos somente à esfera da institucionalidade burguesa (cargos políticos inseridos nos três poderes e suas casas, como vereanças, governos e ministérios). É claro que políticas públicas são importantes, enquanto ferramentas de cidadania e objetivos de luta, mas é preciso ir mais longe. Para além de prestadores de serviços – ou “funcionários da comunicação”, como diria Flusser –, podemos e devemos ser designers militantes, que têm organicidade na sua atuação e estão inseridos em territórios.

“Não é sobre ter cartazes na parede ou compartilhar tais e tais posts. O que devemos aprender é a essência de estarmos chafurdados na realidade social e nos tornarmos criticamente conscientes de nosso inacabamento e dispostos a criar o inédito viável, como diria Paulo Freire.”
Eduardo Souza 

A política que evoco é a da ação concreta sobre a realidade, apropriada pelos trabalhadores, que prioriza o trabalho orgânico e direto junto à nossa classe: nas escolas, universidades, bairros, ocupações, sindicatos, associações de moradores, movimentos de cultura. Afinal de contas, como vamos dialogar com nosso público-alvo se estamos distantes da compreensão de suas demandas, necessidades, preferências e características? Essa política consiste na práxis marxista, que implica a interconexão e a retroalimentação entre teoria e prática – uma não pode avançar sem a outra. Por um lado, uma elaboração teórica sem respaldo em trabalhos práticos é incompleta, anticientífica e idealista; por outro, o trabalho prático sem a guiança de uma teoria sólida que lhe provê ferramentas de avanço é apenas experimentação espontaneísta. 

Além disso, a práxis nos traz uma consequência ainda mais duradoura e profunda. A partir dela, o trabalho político produz, acumula e compartilha conhecimentos que extrapolam o design e nos compõem enquanto sujeitos coletivos. Por isso, quando digo “nós” neste texto, me refiro a quem me acompanha na luta, mas também a colegas designers e a todas as pessoas que desejam mudar o mundo radicalmente. 

Esse efeito agregador é capaz de unificar e fortalecer nossa classe rumo a uma outra vida – não aquela em que inteligências artificiais potencializam a concentração de capital dos bilionários e suas empresas, mas outra, em que temos mais tempo e qualidade de vida para criar ainda mais. Para mim, isso é a revolução. Agora, convido você a imaginar um mundo novo, a elaborar conjuntamente os caminhos a seguir e, quem sabe, a escrever mais textos em resposta.

Ilustração criada por Vienno (@vienno) especialmente para a Recorte.

Fui colocado na creche ainda bebê para que minha mãe – em sua condição de maternidade solo – pudesse trabalhar. Ela me conta que, quando chegavam os finais de semana, eu chorava para ir à escola. Sempre fui o aluno com menos faltas e não entendia a resistência de outras crianças ao ambiente de ensino. Claro que havia adversidades, ainda mais nas instituições públicas de bairro que frequentei a vida toda. Ainda assim, me deleitava com as possibilidades de estar numa sala com meus pares. Minha euforia era tanta que os ouvidos da minha mãe estavam cansados de escutar a mesma frase nas reuniões de pais e professores: “seu filho é muito inteligente, porém usa todo o seu potencial para o ‘mal’”. Com “mal” eles queriam dizer: eu conversava demais, liderava a turma com ideias subversivas, fazia o resto dos colegas perder o foco. Desde pequeno fui uma pessoa extrovertida com um forte ímpeto de compartilhar minhas ideias, mas as formas como me comunicava geravam certo conflito com a disciplina normativa que os professores tentavam impor.

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O sucesso “Another Brick in the Wall (Pt. 2)”, da banda britânica Pink Floyd, faz parte do álbum The Wall, lançado em 1979, mesmo ano em que Margaret Thatcher foi eleita primeira-ministra do Reino Unido. Um de seus versos mais famosos diz: “Ei! Professores! Deixem as crianças em paz!” (N.E.).

Ainda que a sala de aula estivesse sob esse clima de guerra, me recordo com carinho desses professores. Eles reconheciam minhas capacidades, ao mesmo tempo que também repreendiam certos comportamentos. Dentro do sistema de trincheiras disfarçadas de carteiras escolares, alguns parecem nunca encontrar espaço. Se essa afirmação soa como a música “Another Brick in the Wall (Pt. 2)” do Pink Floyd1, é porque é uma realidade: muitas crianças e adolescentes criativos atravessam seus anos formativos à margem, até que, com sorte, entram na faculdade certa e finalmente se encontram. Nela podemos expandir ou reinventar nossa identidade e usar nosso próprio idioma. O desenho do mundo ganha novos contornos.

Em minha produção, faço uso de técnicas como colagem, pintura, desenho e gravura para relatar os desafios de viver em uma sociedade que tanto preza pela obediência e convocar à luz a criança ferida que deseja ter sua natureza legitimada.
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Minha primeira autopublicação é justamente sobre essa selvageria: COISA FEIA, lançado em 2023 na Feira Miolos em São Paulo. O livro, produzido em parceria com a Costuradus, fala sobre os anos de criança insurgente e espontânea.

Digo isso por experiência própria, já que o curso de artes visuais teve esse papel em minha vida. Na Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas) encontrei um lugar onde instrumentalizar a criatividade “maléfica” dos anos anteriores. A pesquisa incentivada pelo ambiente acadêmico me deu conhecimento teórico e refinamento técnico para acolher aquela selvageria infantil2 – assim, me tornei autor e ilustrador de livros de infância. Em minha produção, faço uso de técnicas como colagem, pintura, desenho e gravura para relatar os desafios de viver em uma sociedade que tanto preza pela obediência e convocar à luz a criança ferida que deseja ter sua natureza legitimada – tópico recorrente nas sessões de terapia.

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Trecho de Poder, voz e subjetividade na literatura infantil, de Maria Nikolajeva (Perspectiva, 2023).

A literatura infantil pode, entretanto, subverter sua própria função opressora, pois pode descrever situações nas quais as estruturas de poder estabelecidas são questionadas sem necessariamente serem derrubadas.3

Num dos encontros com Angelina – a terapeuta que me acompanha desde 2019 –, comento sobre a saudade que sinto do espaço acadêmico, onde eu podia me debruçar sobre questões pessoais e pesquisar por dias o mesmo objeto. Mas quem conhece o meio acadêmico bem sabe da exigência para entrar e, principalmente, se manter ali. A escrita de um projeto de pesquisa, as provas e entrevistas são etapas criteriosas que tornam o processo um pouco estressante e fazem o ingresso parecer inalcançável. Já as políticas de permanência – moradia, alimentação e locomoção – para bolsistas ou estudantes de baixa renda parecem insuficientes. Essas circunstâncias me faziam ponderar: será que tento um mestrado? Essa reflexão, a princípio, soou como um sonho distante – possível, porém distante. Angelina me abriu os olhos: ao invés de ser um aluno, por que não ser professor? De repente, contemplei a chegada da minha vida adulta. Depois dessa epifânia, foi como se a criança que se debulhava em lágrimas para ir à creche até nos fins de semana se transformasse no jovem que se esforça para atender o anseio criativo de outras crianças. Numa série de coincidências, no fim de 2023, fui entrevistado em uma escola a 8 minutos de casa. A vaga era minha: me tornei professor de iniciação artística de crianças de 3 a 10 anos.

Em janeiro de 2024, as aulas começaram e foram um tremendo desafio. Se até então eu vinha nadando raso no mundo da infância produzindo livros somente a partir das minhas próprias experiências, agora era convocado a um mergulho mais profundo, em que segurava o ar em busca de uma linguagem primal e comportamentos despidos das amarras às quais nós, adultos, estamos presos para melhor caber na sociedade. Uma das minhas grandes preocupações iniciais era não estabelecer uma hierarquia definida que apagasse as subjetividades das crianças em prol da norma de uma sala de aula – afinal de contas, quando eu estava no lugar delas, foi pelas brechas de poder que me desenvolvi como artista. Com o passar das semanas, compreendi minha função de mediar conflitos, negociar desejos, trazê-las para soluções realistas e incentivar não necessariamente um aprimoramento técnico e estético, mas sim o desenvolvimento motor e a aprendizagem de noções fundamentais a respeito de materiais para que elas possam aplicar os próprios interesses e linguagem aos seus trabalhos.

Na primeira semana de aula, levei na mochila meus melhores cadernos cheios de desenhos dos quais me orgulho. A ideia era mostrá-los às crianças para cativá-las de modo a estabelecer certo respeito e despertar nelas a vontade de aprender. Os planos, claro, foram por água abaixo. Elas até folhearam e acharam algumas ilustrações engraçadas, mas a leitura foi completamente oposta à que estou acostumado quando as compartilho com editores, diretores e colegas profissionais: essas pessoas entendem a dificuldade e o labor por trás dos trabalhos e, por se tratar de adultos com experiência no ramo, esse partilhar acaba gerando trocas mais polidas. A reação um tanto quanto desinteressada das crianças atravessou meu ego, que, felizmente, se esfarelou, me estimulando a exercitar uma versão de mim menos carregada de vaidade e convicção estética.

Tudo [nas crianças] me parece estrangeiro. Seus assuntos, ânimo, combinação de palavras, linguagem corporal são diferentes do que me é socialmente familiar, e, na posição de adulto, é fácil cair em um preconceito adultocêntrico que julga essa diversidade como uma natureza a que se impor ordem.

As crianças são como pássaros livres, donas de plumagens infinitas e de cores distintas entre si. Tudo nelas me parece estrangeiro. Seus assuntos, ânimo, combinação de palavras, linguagem corporal são diferentes do que me é socialmente familiar, e, na posição de adulto, é fácil cair em um preconceito adultocêntrico que julga essa diversidade como uma natureza a que se impor ordem. Esse preconceito se expressa principalmente no abafamento das ideias que os pequenos trazem, na indisponibilidade de ouvi-las com seus gaguejos e buscas prolongadas por palavras, na resistência em fazer uma leitura gentil das reações intensas de quem chegou há pouco tempo nessa Terra tão cheia de regras. Nós adultos não estamos isentos de praticar esse tipo específico de discriminação – afinal, fomos vítimas da mesma cultura. Mas o ambiente de sala de aula me faz rever ações que podem obstruir o crescimento de novas gerações.

A motivação que me levou a ser professor de faixas etárias mais jovens é justamente esse ecossistema raro e cheio de potencial, que infelizmente tende a ser perseguido e muitas vezes torna-se alvo de violências verbais, psicológicas, físicas e sexuais pouco questionadas e combatidas pela sociedade. Comentários como “não gosto de crianças”, “gosto de crianças boazinhas” e “crianças não deveriam estar em qualquer espaço público” (como cinemas, restaurantes etc.) me incomodam profundamente, porque são hostis a um grupo social. Trocar “crianças” por etnias marginalizadas, mulheres, pessoas queer nos aproxima da compreensão do quanto é ridícula a normalização dessas falas que podem acabar legitimando comportamentos agressivos. 

Discordo da visão contemporânea excludente praticada contra as infâncias – em especial contra crianças neurodivergentes. Vejo que os responsáveis, professores e outros adultos que cercam essas crianças também tendem a subestimá-las. Mas logo entendo que isso é resultado de uma cultura intolerante. Os pais, em especial, imediatamente receiam que nós, educadores neurotípicos, possamos reagir de forma truculenta e estigmatizante a um perfil autista, por exemplo. Essa preocupação serve como um convite desesperado à paciência. Reconheço o medo do que um filho aluno pode vir a sofrer. No entanto, na sala de aula, essas crianças se mesclam à turma – às vezes com dificuldade, às vezes de forma fluida. Um dos meus alunos, por exemplo, está no espectro autista. No começo, ele se aproximou da turma com timidez, mas, por meio de atividades como o desenho, as outras crianças o acolheram e tiveram trocas significativas (sem necessariamente utilizar a fala, ainda que ele seja muito comunicativo). 

Esse ambiente, regido pelo respeito mútuo, funciona independentemente das pluralidades (ou exatamente graças a elas), porque encoraja cada criança a manter sua liberdade e espontaneidade. Entendo minha presença adulta como possibilitadora de confluências, estou ali para catalisar e reunir as produções artísticas da turma para que elas sejam vislumbradas coletivamente. Quando surgem comentários que perturbam a harmonia e reforçam as diferenças como negativas, refaço o caminho tentando incentivá-las a olhar por outro ângulo, que os permita enxergar o potencial do colega através de palavras gentis e empoderadoras.

Enquanto adulto, é minha responsabilidade resgatar a diversidade de contatos e relações que tive ao longo da vida e usá-la como recurso para incentivar a criatividade daqueles que estão em seus anos formativos.

Nós que ocupamos posições de autoridade é que devemos aprender a cuidar e a ensinar sem tolher distinções em favor de paridades. Enquanto adulto, é minha responsabilidade resgatar a diversidade de contatos e relações que tive ao longo da vida e usá-la como recurso para incentivar a criatividade daqueles que estão em seus anos formativos. Quando crescemos, somos mal-acostumados a frequentar grupos que seguem padrões comportamentais enraizados no senso comum. Essa busca por relações sempre convenientes é um dos tédios da vida adulta. Poucas são as surpresas. A atenção é um grande presente que podemos dar às crianças.

Sou eu quem mais aprende. Desde o momento em que ingresso na sala de aula, sinto que estou aprendendo. Em meu íntimo, alcanço a continuidade da criança artista que desafiava a norma para obter espaço em seus primeiros anos escolares. Hoje entendo melhor toda a complexidade de uma instituição de ensino. Estar nos bastidores me põe diante do sistema de planejamento de aulas, manutenção de salas e materiais, demandas dos pais e da coordenação – são linhas regulamentadoras que estruturam esse ambiente permeado de sensibilidades e miudezas. No fim dessa cadeia está a prática artística coletiva em si, na qual as crianças podem riscar, se sujar de tinta e serem habilitadas para desenvolver novos idiomas visuais. No início dos semestres, traço como objetivo principal a criação de um terreno fértil, capaz de receber variadas espécies. 

Sobretudo, essa experiência pedagógica vem surtindo um enorme efeito em meu processo artístico, no qual substituo pouco a pouco as métricas de qualidade instauradas pelas redes sociais e pela academia – enquanto a primeira se baseia em números, a segunda se apoia na adequação a certas convenções que podem enrijecer as etapas criativas – e concebo um novo modelo pessoal inspirado pelas crianças. Para elas, o resultado final e o reconhecimento que ele traz não são os fatores que validam a criação, mas sim o processo, o jogo, a diversão, os contrastes e as descobertas. 

Descobrir é a palavra. Experimentar e sobreviver ao descontentamento estético em que nós, adultos, muitas vezes caímos por sermos cheios de expectativas e autocrítica. Exercitar a humildade e admitir outros caminhos, que nem sempre trarão o mesmo “sucesso” que fórmulas trariam, mas que nos apresentarão ao novo. Aprendo com as crianças a tirar os pés do chão para ver mais alto. Esquecemos da habilidade do voo porque passamos a acreditar que carregar pesos é sinônimo de ser adulto. Bobagem, dá para ser leve e ainda assim levar a sério o equilíbrio entre a vida adulta e a infância resgatada através de práticas criativas que nos instigam a voar. A porta da minha gaiola sempre esteve aberta e são vozes em alfabetização que me empoderam a sair dela.

A ilustração que acompanha este ensaio foi cedida por Felipe Mayerle (@felipemayerle no Instagram).

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Esse e outros relatos clássicos da filosofia podem ser conferidos no compêndio Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres (Editora UnB, 1988), uma coleção de dez livros escrita por Diógenes Laércio (século III d.C.). A tradução brasileira é de Mário da Gama Kury.

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A principal referência usada nesta introdução é o livro Metaphysics: A Contemporary Introduction (Routledge, 2001), de Michael J. Loux. O livro faz parte da coleção Routledge Contemporary Introductions to Philosophy.

Parece uma cena de boteco suburbano brasileiro, mas se trata de uma famosa anedota da filosofia clássica: ao ficar sabendo que Platão define o homem como “um animal, bípede e desprovido de penas”, Diógenes teria saltado de seu barril e corrido até o auditório onde o sábio proferia suas lições. “Pois aí está o Homem de Platão”, teria dito, perante todos os seus alunos, enquanto arremessava uma pobre galinha depenada em direção ao seu rival1.

Essa historinha é um exemplo grosseiro de como, mais ou menos, se desenrola a dinâmica de uma das grandes áreas de estudo da filosofia. A metafísica compreende, segundo o filósofo norte-americano Michael J. Loux2, uma longa série de tentativas de examinar objetos com base nas considerações daquilo que compõe sua existência. É um exercício intelectual que busca especificar as propriedades e aspectos que são demonstrados a nós, conforme entramos em contato com o mundo que nos cerca.

Dessa forma, discussões da metafísica resumem-se principalmente aos delineamentos filosóficos sobre as estruturas em atuação, no nosso pensamento, quando tentamos definir ou diferenciar as coisas. Engloba, consequentemente, questões sobre identidade, causalidade, livre-arbítrio e determinismo, a natureza do tempo, e assim por diante. Ainda segundo Loux, quando nos propomos a adotar alguma teoria geral para a metafísica, mesmo que inconscientemente, estamos empregando o que o autor chama de “ontologia”, isto é, um posicionamento complexo e abrangente para os fenômenos que atingem nossa percepção. Dizer, por exemplo, que não existem gnomos é um posicionamento ontológico que nega que qualquer encontro com pequenos seres humanos esverdeados, nas florestas, tenha acontecido de fato.

É possível localizar um problema de ordem ontológica no design a partir do momento em que começamos a questionar a natureza da atividade.

Em resumo, a ontologia se forma em torno das discussões sobre as possibilidades do ser, ou seja, sobre os questionamentos em torno das condições e do comportamento de tudo aquilo que “é”. Debates ontológicos parecem complicados à primeira vista, mas é possível encontrar alguns desdobramentos divertidos. Discutir sobre a natureza da pizza pode nos levar a diferentes conclusões e até mesmo a desavenças: a esfirra aberta pode ser considerada uma pizza? Sim, se você não for conservador em relação ao tamanho ou ao tipo de cobertura. Talvez uma esfirra possa ser considerada uma pizza se tal salgado não for definido pelos ingredientes que estão em seu topo, mas pelo formato circular de sua massa? Para resumir, elaborei uma pequena tabela de alinhamento ontológico: é possível se posicionar tanto como purista quanto como rebelde, tanto em relação à estrutura da pizza quanto aos ingredientes:

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O livro de Parsons é uma referência introdutória para quem deseja investigar o design por um viés filosófico. Nele, o autor sistematiza tópicos de design a partir das grandes áreas da filosofia enquanto disciplina: o design e a metafísica; a epistemologia do design; e as questões éticas e estéticas do design. Porém, essa não é a única forma de se dirigir à filosofia. Um convite para abrir esse horizonte de possibilidades vem sendo feito por Lourenço Fernandes em seu podcast “Questão de Método”, que aborda o assunto por uma linha um pouco menos acadêmica.

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Essa coletânea de ensaios organizada por Victor Margolin traz alguns textos selecionados a partir das primeiras edições do periódico acadêmico Design Issues, gerido pelo selo editorial MIT Press Direct. Outro texto que chama a atenção no volume é um curioso artigo da aclamada autora Ellen Lupton sobre a Isotype e a retórica do design da informação, intitulado “Reading Isotype”.

Precisamos, infelizmente, deixar esse importante exemplo de lado para focar no tema deste ensaio. Glenn Parsons, em sua tese The Philosophy of Design (John Wiley & Sons, 2015)3, usa longos parágrafos introdutórios para cercar o objeto do seu livro de maneira satisfatória. Segundo o autor, há, por um lado, uma tendência em localizar o design em objetos específicos, como as poltronas dos Eames ou os cartazes de Saul Bass. O efeito colateral é óbvio: aparentemente, existem objetos que têm mais design do que outros. Pior: seria possível, dessa forma, eleger uma espécie de “cânone” do design — uma curadoria excludente que privilegia autores e objetos famosos em detrimento de outras formas de expressão. 

Porém, há um contra-argumento que joga o entendimento do design para o extremo oposto: não mais restrito a uma gama específica de artefatos, o design estaria em todas as coisas. Nesse cenário, todas as atividades humanas são design por implicarem alguma forma de planejamento, projeto mental ou processo de execução para criar novas coisas que nos ajudam a atingir objetivos. Essa amplitude ontológica também é problematizada por Parsons: um cozinheiro precisa selecionar ingredientes e o mise en place, executar uma série de processos até chegar no prato desejado. Mas não chamamos esse indivíduo de designer de alimentos — ele é um cozinheiro (um chef), embora esteja executando tarefas que, por essa definição abrangente, poderiam se enquadrar como design. E agora? Será que não existe um meio-termo, alguma forma filosófica que concilie os extremos do cânone e dos designs marginalizados?

Victor Margolin, na introdução de seu livro Design Discourse: History, Theory, Criticism (The University of Chicago Press, 1989)4, propõe que o problema ontológico do design não pode ser tão facilmente resolvido. Para ele, a formalização de qualquer estudo sério deve passar por duas constatações: a primeira é que estamos cercados pelo design – objetos e formas que participam do nosso cotidiano constituem uma artificialidade que orienta profundamente nossas decisões e modos de vida. Como consequência, indagações teóricas sobre esse mundo artificial demandam posicionamentos sobre o que é o design e quem são os designers. O segundo ponto, entretanto, deixa as coisas mais complicadas: para Margolin, o design é uma atividade definida sobretudo pelo entorno social no qual ela opera. Isso significa que não é possível conceber qualquer teoria sobre o design que seja independente de alguma teoria sobre a sociedade. E como não há acordo a respeito de uma teoria única para a sociedade, é igualmente impossível postular apenas uma teoria para o design.

Por que o design, ao contrário de tantas outras áreas do conhecimento, se permite tão abertamente abraçar debates sobre as definições acerca de si?

A primeira conclusão que tiramos do que Margolin quis dizer com isso, de maneira geral, é a de que diferentes definições para o design são possíveis. Não que o desdobramento dessa constatação seja sempre positivo: qualquer estudante de design já foi confrontado, na faculdade, com algum destes debates clássicos: como diferenciar, em poucas palavras, o design da arte; como explicar por que design não é desenho; ou, ainda, como pontuar o que o designer faz que o diferencia de um publicitário ou de um diretor de arte. Todas essas questões, apesar de parecerem clichês, carregam um pouco dessa turbulência ontológica. Por mais tentador que seja se engalfinhar em busca de respostas para essas perguntas, a sugestão que faço é que, por ora, tentemos deslocar o eixo de análise para a seguinte proposta: por que o design, ao contrário de tantas outras áreas do conhecimento, se permite tão abertamente abraçar debates sobre as definições acerca de si?

***

Dizer que o design sofre de um problema de ordem ontológica é uma maneira filosófica de resumir constantes negociações pelas quais alguém precisa passar até chegar a uma definição para a área. De fato, é muito comum encontrar ensaios que fazem isso: tentam explicar o que é o design como um exercício imaginativo para conciliar tendências mercadológicas emergentes, ou para compreender formas de expressão possibilitadas por novas tecnologias. Esse problema ontológico é geralmente abordado também em livros e manuais, cujos autores se encontram no delicado papel de propor uma definição temporária, de modo a situar o leitor sobre o que o espera nas próximas páginas. Há também uma extensa lista de manifestos, desabafos e proclamações acerca do mesmo imbróglio, geralmente com o objetivo de apresentar novas perspectivas para o entendimento de algo que, até então, já estava esclarecido.

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Escolhemos começar por esse título por constatar sua ampla circulação em currículos e ementas de história do design em instituições brasileiras. Rafael Cardoso é uma presença marcante na literatura e um ponto de partida convidativo para investigações teóricas.

O presente ensaio, entretanto, não é uma tentativa de resolução desse problema. Mais interessante, por enquanto, é observar algumas definições populares e conversar sobre as estratégias que cada pessoa autora adotou para conseguir percorrer terrenos menos movediços. Iniciemos por uma abordagem clássica: a que Rafael Cardoso usa para definir a área, em sua Uma Introdução à História do Design (Blucher, 2000)5. Nela, o autor alerta que o substantivo “design”

se refere tanto à ideia de plano, desígnio, intenção, quanto à de configuração, arranjo, estrutura. […] o termo já contém nas suas origens uma ambiguidade, uma tensão dinâmica, entre um aspecto abstrato de conceber/projetar/atribuir e outro concreto, de registrar/configurar/formar. […] A maioria das definições concorda em que o design opera a junção desses dois níveis, atribuindo forma material a conceitos intelectuais.

Essa definição, em linhas gerais, enquadra o design tanto como o processo pelo qual um artefato é criado quanto como o conjunto de características sensoriais desse artefato. Podemos partir da constatação de sua ambiguidade como um prelúdio para uma problematização de ordem metafísica: como definir precisamente algo que é, por natureza, passível de dupla interpretação? Voltemos nossa atenção para outro ponto crucial da definição de Cardoso que poderia até passar despercebido: a estreita relação que o design tem com a materialidade.

Acreditar que a prática se revela em todas as coisas é tão desnorteante quanto tentar localizá-la precisamente em manifestações da nossa cultura material.

Definir o design como uma atividade diretamente relacionada ao aspecto material dos artefatos abre um panorama de caminhos possíveis. O mundo material e sua infinidade de objetos, sejam eles físicos, visuais, vestíveis, decorativos, digitais, sejam de qualquer outra categoria, nos leva a questionar, mais uma vez, a natureza do design. Acreditar que a prática se revela em todas as coisas é tão desnorteante quanto tentar localizá-la precisamente em manifestações da nossa cultura material. Existem definições, consequentemente, que optam por estratégias um tanto eliminativistas: o design não está disperso entre toda a materialidade, mas encerrado em artefatos que satisfazem processos próprios de design. A definição elaborada pelo designer e pesquisador holandês Koos Looijesteijn no ensaio “What is design?”, publicado no blog de seu site em 2019, assume uma estratégia subtrativa para chegar a uma síntese. Ele define de forma precisa o que não é design primeiro (engenharia, arte, gerenciamento) e então formula o seguinte:

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A menos que a referência tenha sido descrita em português, os trechos citados neste ensaio foram traduzidos livremente pelo autor. [N.E.]

Um design é um planejamento para fazer alguma coisa nova para as pessoas, algo que elas percebam como benéfico.6

Note que para o nosso colega dos Países Baixos, o ponto fundamental para uma ontologia do design não está localizado na materialidade, mas em uma espécie de moral: se um objeto sugere uma percepção de que sua existência traz um benefício, então podemos dizer que existe uma intenção de design por trás dele. 

Seria possível, porém, projetar coisas que são o oposto, isto é, que trazem malefícios em vez de benefícios? Pegando um exemplo da indústria bélica, é possível afirmar que havia uma clara intenção de matar milhares de pessoas com a bomba atômica projetada por Robert Oppenheimer e sua equipe de físicos. A questão é que o resultado benéfico esperado era que ela trouxesse a vitória da Segunda Guerra Mundial para os Aliados. Há certo relativismo na noção de “benefício” que deixa a definição proposta por Looijesteijn em um terreno pouco estável — o mesmo objeto pode ser percebido como design, por um lado, e como catástrofe genocida, por outro.

Deixemos de lado, por um momento, o aspecto moral dessa definição e vejamos outra palavra que carrega grande peso dentro da frase: “nova”. Para o autor, o design está intrinsecamente ligado à inovação, ao ato de criar coisas inéditas. É interessante observar como esse caráter inovador do design é citado em várias outras tentativas de definição, reforçando uma espécie de essência orientada para o futuro. Fazer design, para Looijesteijn, é mirar em algo que ainda não existe, mas que precisa ser elaborado e colocado em prática mediante um planejamento capaz de traçar diretrizes precisas para a produção desse artefato. Discurso semelhante está na definição a qual chega o anteriormente mencionado autor Glenn Parsons. O filósofo concorda que é importante que o design compreenda formas de conceber novos objetos, desde que eles carreguem consigo a moral benevolente que Looijesteijn tentou expressar. Entretanto, é necessário propor um artifício para assegurar o aspecto benéfico. O design, portanto,

[…] é a solução intencional para um problema por meio da criação de planos para um novo tipo de coisa, de modo que tais planos não sejam imediatamente vistos, por uma pessoa razoável, como uma solução inadequada.

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 Reasonable person, no original em inglês.

O que chama atenção, de imediato, é a presença dessa “pessoa razoável”7 capaz de validar que os planos apresentados são identificáveis como “bom” design. Parsons busca, primeiro, excluir de sua definição aquilo que existe por acidente: o design é sempre intencional, racional, pensado com um objetivo em mente. Problemas exigem soluções planejadas, que sejam respaldadas por terceiros. A “pessoa razoável” de Parsons é, portanto, um dispositivo genérico que aproxima o design de uma atividade coletiva, cujos resultados precisam de múltiplos olhares que atestem sua validade.

É interessante constatar, portanto, a necessidade de dois elementos cruciais para o design. O primeiro é a coletividade inerente à prática que diferencia um produto do design de um mero acidente ou, quiçá, de alguma maluquice sem aplicação prática. Por isso, a validação vem de uma pessoa ou grupo “razoável”, capaz de identificar se requisitos de projeto estão sendo saciados pela solução proposta. Todo design, então, deve ser voltado às pessoas às quais a solução se aplica — deve ser “centrado no usuário”, se preferirem.

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Essa definição é proposta pela dupla de autores no texto “Science and design: identical twins?”, publicado em 2014 no 35º volume do periódico Design Studies, como parte de uma resposta a um artigo que tenta aproximar o design da ciência como se fossem conceitos “gêmeos”. Galle e Kroes discordam: a ciência, assim como o design, sugere a replicabilidade. Porém, ao contrário do design, gera também alguma previsibilidade. Mas isso é assunto para outro texto.

O segundo elemento diz respeito, mais uma vez, à inovação: o design não é uma imitação. Ele não reproduz soluções já existentes, mas trabalha conceitos de forma a aplicá-los sob novas circunstâncias. Encontramos esse mesmo atributo na definição de design usada por Per Galle e Peter Kroes, dois pensadores da área da filosofia da ciência e da tecnologia8. Para eles,

[…] o design é uma ação inteligente que consiste em propor uma ideia original para um artefato, visando habilitar ao próprio designer (ou a outras pessoas) produzir um ou mais desses artefatos de acordo com tal ideia. 

Assim como Looijesteijn, a dupla de filósofos encara o design como esse ato de chegar a um plano de execução para produzir artefatos originais, que até então não haviam sido pensados. Mas acrescentam a curiosa noção de que outra condição fundamental para a existência do design é a possibilidade de tais planos serem executados por outras pessoas: devem ser inteligíveis, portanto. São planos que satisfazem a terceiros, capazes de viabilizar a materialização de artefatos replicáveis.

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É curioso descobrir como engenheiros e demais profissionais da tecnologia se referem ao design. No fundo, minha impressão é que suas definições geralmente se referem à origem industrial do design, que, por sua vez, o difere do artesanato: se o artesanato segue uma tradição comunitária, o design precisa estar calcado na inovação.

Essa linha de raciocínio nos leva a uma conclusão divertida: o design só pode ser definido por não designers. Se chegar a um plano original para um novo produto depende, antes de mais nada, que esse produto seja compreendido por pares e/ou validado por pessoas razoáveis, então não há como saber se estamos fazendo design até que o elemento coletivo-social entre em cena. Nessa ontologia, o design encontra-se disperso entre várias pessoas e pressupõe um processo de validação. O mesmo Peter Kroes, no artigo “Rationality and design”, coescrito por Maarten Franssen e Louis Bucciarelli e publicado no volume Philosophy of technology and engineering sciences (North-Holland, 2009), sintetiza esse aspecto ao sugerir que o design é uma espécie de dispositivo que encoraja o exercício social da razão9.

Tentemos localizar o que há em comum nas estratégias analisadas até aqui para propor definições para o design: trata-se de tentativas de reduzir ao máximo a ambiguidade, sobretudo quando o design se aproxima de outras áreas projetuais, como a engenharia e a arquitetura. De fato, um grande problema ao tentar definir o design é acabar chegando à conclusão de que todas essas práticas voltadas ao mundo material são a mesma coisa, ou seja, maneiras de pensar semelhantes, mas que se concretizam por meio de materiais e ferramentas diferentes.

Autores como o próprio Parsons, perante esse impasse, sugerem que partamos do seguinte pressuposto: existe um “design-como-prática” e existe um “design-como-profissão”. Esse design-como-prática, doravante denominado apenas como “design”, é uma espécie de faculdade mental dos seres vivos; a capacidade de transformar o mundo para atingir objetivos práticos. Já o design-como-profissão, o qual chamaremos de “Design” (com D maiúsculo), é uma versão institucionalizada do design, posto que depende de uma série de formalizações: um vocabulário próprio, instituições de ensino, títulos, cargos e assim por diante. 

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O impacto das publicações de Bonsiepe, no Brasil, é algo que demanda maior compreensão. Também pudera: o designer alemão que frequentou a Escola de Ulm escreveu muito, sobre muitas coisas, por um bocado de tempo.

Podemos detectar a presença do design com “d” minúsculo nas entrelinhas de  posicionamentos como o de Gui Bonsiepe10 no livro Design, Cultura e Sociedade (Blucher, 2011), que considera o design uma forma global de se referir ao exercício destas 

[…] capacidades projetuais para interpretar as necessidades de grupos sociais e elaborar propostas viáveis, emancipatórias, em forma de artefatos instrumentais e artefatos semióticos.

A tal divisão entre design e Design nos permite identificar a prática projetual a partir de uma mesma perspectiva “humanista”, isto é, como se o ser humano estivesse ontologicamente posicionado como um “ser designer”. O grande problema de encarar o design por essa perspectiva totalizante é que acabamos retornando ao nosso ponto de partida: estamos fazendo design em tudo, em todo lugar, ao mesmo tempo? O que diferencia o design do Design?

Se as definições interpretadas até o momento operam pelo campo da lógica reducionista, tentando encontrar um terreno não ambíguo para o design, vamos conferir como são as definições de autores e autoras que não estão necessariamente preocupados com isso. Alina Wheeler, autora de Designing Brand Identity (John Wiley & Sons, 2003), referência na área do branding, gosta de pensar que

[…] o Design é a inteligência tornada visível.

Esse tipo de definição se pretende mais simbólica e metafórica do que filosófica. Não que isso seja um problema: de fato, é o tipo de saída pela tangente encontrada em tantos discursos, palestras ou atividades de divulgação da profissão que não necessariamente desejam tornar o design menos ambíguo ou mais bem localizado enquanto área de atuação, mas que com certeza o fazem parecer mais importante. Associar Design e inteligência, nesse caso, é uma estratégia de validação. Ao definir a inteligência como o elemento que diferencia o Design do design, a pessoa que o pratica é elevada do ponto de vista profissional. Para o designer, o design não é apenas uma atividade naturalmente humana ou uma mera prática cotidiana, mas um fruto de seu trabalho intelectual.

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 O artista italiano é um dos mais resilientes nomes a figurar em ementas e currículos de cursos de design brasileiros.

A definição de Bruno Munari11, no clássico Design como arte (Cobogó, 2024) é um pouco mais modesta:

É um projetista com senso estético. Dele depende, em boa parte, o sucesso de alguns produtos industriais. […] O designer é, portanto, o artista da nossa época. Não por ser um gênio, mas por restabelecer, com seu método de trabalho, o contato entre a arte e o público, por encarar com humildade e competência qualquer pedido que lhe seja feito pela sociedade na qual vive, porque domina seu ofício e as técnicas e os meios mais adequados para resolver quaisquer problemas relacionados a design.

Diferenciar o design da arte é um instigante exercício imaginativo. Munari deixa claro que entende a proximidade entre as duas áreas: sua definição dá a entender que o designer é uma espécie de adaptação do artista para um contexto contemporâneo. O que os separa não são as práticas, ferramentas ou processos, mas uma distinção precisa entre os seus propósitos: um artista cria obras para refletir sua própria sensibilidade ou gênio, enquanto o designer presta um serviço para a sociedade.

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Com alguma chance de ter sido a primeira leitura “séria” de muitos designers gráficos, o livro de Strunck é uma tentativa de demarcar um território profissional. Ele surge em um momento propício, no qual a profissão, já estabelecida após uma onda de transformações motivada pelos computadores pessoais e pela popularização da internet, passa a dominar um conjunto de conhecimentos e técnicas que pode, inclusive, tornar o designer um empreendedor da área. Viver de design faz parte da série Oficina, organizada pela 2AB (uma das várias coletâneas de títulos da editora voltadas ao design).

Tentar localizar com precisão as distinções entre arte e design suscita insatisfações. Se levarmos ao pé da letra a ontologia proposta por Munari, estamos aceitando que cabe ao artista encontrar no terreno subjetivo da autoexpressão algo que valide suas obras. Ao designer, para validar-se enquanto Designer, resta servir a propósitos sociais ou comerciais que não digam respeito às suas emoções ou gostos pessoais — um compositor musical não é um designer de partituras, afinal, mas faz parte do senso comum chamá-lo de artista. Gilberto Strunck, autor brasileiro do livro Viver de design (2AB, 2007)12, não dá o braço a torcer: o aspecto artístico é tão importante para o design quanto a capacidade de resolver problemas. Ele diz o seguinte:

Nossa missão relaciona-se à concepção, à criação de conceitos que, formalizados, possam fazer a informação circular com a maior eficácia possível, e isto sem abrir mão do prazer estético que é próprio dos seres humanos. 

Está implicada na ontologia de Strunck, portanto, a máxima de que não é possível fazer design abrindo mão da boa forma, dos aspectos sensoriais e do prazer estético que o ser humano obtém ao usar produtos e interagir com artefatos. Isso deixa uma pequena pedra no sapato dos artistas, pois se o que eles fazem define-se pela expressão estética, então onde começa uma coisa e onde termina outra?

Esse potencial conciliatório do design é uma proposta recorrente. Podemos observar, nas palavras de Flusser, que o design une diferentes universos em suas manifestações materiais.
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A primeira edição brasileira de O mundo codificado foi publicada nos tempos áureos da Cosac Naify. A coletânea de ensaios do filósofo checo-brasileiro foi organizada por Rafael Cardoso e traduzida por Raquel Abi-Sâmara. Seu tom menos aplicado e mais especulativo fez com que o livro logo conquistasse a atenção de designers e artistas visuais ansiosos por algum tipo de aprofundamento filosófico.

Vilém Flusser, famoso filósofo das visualidades, apresenta uma sugestão em seu ensaio “Sobre a palavra design”, que faz parte do livro O mundo codificado: por uma filosofia do design e da comunicação (Ubu, 2017)13. Em vez de separar arte e design, ele propõe um posicionamento intermediário, que amarra extremos e une pontas soltas:

Design significa aproximadamente aquele lugar em que arte e técnica (e, consequentemente, pensamentos valorativo e científico) caminham juntas, com pesos equivalentes, tornando possível uma nova forma de cultura.

Esse potencial conciliatório do design é uma proposta recorrente. Podemos observar, nas palavras de Flusser, que o design une diferentes universos em suas manifestações materiais. É um pouco arte, mas também é ciência. É técnica, mas também é expressão. É criatividade, mas também é responsabilidade. 

Embora bem-intencionada, essa abordagem estilo frente-ampla pode acarretar uma complicada demanda por um profissional “aventureiro”, capaz de explorar mundos desconhecidos, aprender coisas novas constantemente e incorporar diferentes valores e perspectivas aos seus planos. Tal demanda vai se concretizando em um vocabulário específico: no ensaio “O design: obstáculo para a remoção de obstáculos?”, que também faz parte de O mundo codificado, Flusser disserta sobre a etimologia comum entre as palavras “objeto” e “objeção”. O ponto é embasar um argumento de que objetos projetados de maneira irresponsável tornam-se obstáculos. O autor decide adotar uma palavra para se referir a esse fenômeno conciliatório do design:

No caso dos objetos de uso, esbarro nos projetos de outras pessoas. (No caso de outros objetos, esbarro com outra coisa qualquer, talvez com o absolutamente Outro). Os objetos de uso representam, portanto, mediações entre mim e as outras pessoas, não só objetos. 

A ideia de que o design é um mediador é amplamente investigada por Parsons (de novo), que identifica nesse termo uma oportunidade de fugir do que ele chama de “paradigma funcionalista” do design. Para o autor, sugerir que o design está sempre por trás das funções dos objetos de uso é uma forma de passar ao largo das inúmeras vezes em que precisamos improvisar, adaptar e ressignificar artefatos. Se um objeto é usado de maneira diferente daquela para a qual foi projetado, ele não deixa de pertencer ao domínio do design, porque o design, por meio de sua materialidade, também provoca mediações e estabelece novas relações de significado.

A coletânea de ensaios Existe design? Indagações filosóficas em três vozes (2AB, 2013), de Ivan Mizanzuk, Marcos Beccari e Daniel Portugal, é um provocante convite para reflexões acerca da metafísica da nossa profissão. Em “Design como mediação”, Portugal sintetiza que o design é

[…] uma atividade que atua sobre as formas (ou aparências) das coisas, com o objetivo de trabalhar seu papel de mediadoras das relações entre humanos e coisas, e das relações dos humanos entre si e consigo mesmos através das coisas.

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Esse excelente artigo de Lees-Maffei é uma parada obrigatória para quem estuda os entrelaces do design e da cultura material em investigações históricas.

O que seria, nesse sentido, “mediar”? Esse é um conceito-chave para muitos historiadores do design. A professora britânica Grace Lees-Maffei14 defende em “The Production–consumption–mediation paradigm”, publicado no 22º volume de Journal of Design History (2009), por exemplo, que entender o design como mediação abre caminhos para acessar as diferentes formas pelas quais um objeto, ao longo de seu ciclo de vida, pode definir relações entre os seres humanos e a sociedade. Em resumo, o design enquanto mediação refere-se ao impacto dos artefatos nos padrões de vida, mas também estende-se para as esferas político-econômicas implicadas em sua produção, uso e descarte.

Seria uma estratégia ontológica segura, portanto, concluir que o design encontra uma definição precisa no conceito de mediação? Há controvérsias.
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Encontramos essa interpretação ao longo da obra de Paulo Freire elaborada de diversas formas, mas acredito que ela seja mais imediatamente expressa no livro Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa (Paz e Terra, 1996).

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Essa linha do tempo da filosofia da técnica e da tecnologia é proposta por Don Ihde em uma série de palestras ministradas na Universidade de Pequim em conjunto com outros pensadores da área, entre 2007 e 2009. As transcrições de suas falas estão no livro Postphenomenology and Technoscience: The Peking University Lectures (State University of New York Press, 2009).

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A filosofia da técnica e da tecnologia encontra muito espaço para falar de design e uma das mais interessantes linhas de pensamento é a que parte dos estudos pós-fenomenológicos alavancada por autores como Ihde e Verbeek. Como obra introdutória, recomendo What Things Do: Philosophical Reflections on Technology, Agency, and Design, de Peter-Paul Verbeek (Penn State University Press, 2005).

Seria uma estratégia ontológica segura, portanto, concluir que o design encontra uma definição precisa no conceito de mediação? Há controvérsias. De certa forma, mediar a relação do ser humano com o mundo é uma definição reivindicada também por outras áreas, como a educação. Encontramos na doutrina de Paulo Freire, por exemplo, a ideia de que o papel do professor é mediar a relação do estudante com o seu contexto social, fornecendo ferramentas de emancipação ao longo do processo de ensino para uma apreensão da própria realidade15. Mas seria, no mínimo, estranho condecorar professores com um diploma de Design graças ao seu papel de mediador. 

Outro grupo que deposita uma considerável carga de esperança no conceito de mediação são os filósofos da técnica e da tecnologia alinhados à corrente pós-fenomenológica de pensamento. Calma, vou explicar: a história da investigação dos artefatos tecnológicos passa por “fases”; há um longo movimento para trazer o entendimento da tecnologia para uma arena social de interpretação. Se, no início, os primeiros filósofos encarregados dessa tarefa eram insiders (físicos e matemáticos), ao longo do século XX tal campo de estudos passou a atrair também interesse de sociólogos e historiadores com vieses menos tecnocêntricos. Nas palavras de Don Ihde, a abordagem pós-fenomenológica busca continuar uma tradição de estudos que considera a experiência como um elemento central de análise. Nas palavras do próprio, “encontra-se uma maneira de analisar o papel das tecnologias na vida social, pessoal e cultural por meio de estudos concretos — empíricos — de tecnologias (no plural)”16.

 Segundo autores como Peter-Paul Verbeek17, para entender o que significa mediação, é necessário aceitar dois fatos: o primeiro é que estamos inseridos em um modo de vida tecnológico. O ser humano se cerca de artefatos e estruturas que alteram o mundo a favor de uma lógica civilizacional que permeia nossas escolhas, desejos, relações etc. Por exemplo: quero ir até o centro da cidade onde moro, às duas da tarde, para comprar uma calça nova. Nessa tomada de decisão, há uma série de tecnologias implícitas: os modos de locomoção, os dispositivos de compra e venda, o controle do tempo, a indústria do vestuário e assim por diante. Como consequência, o segundo fato é que essa mediação tecnológica gera a coconstrução simultânea entre sujeitos e objetos em um mundo tecnologicamente saturado.

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O pensamento de Herbert Simon gerou muitos desdobramentos para a compreensão do design como abordagem científica para a resolução de problemas. Uma reflexão atualizada e com uma contextualização histórica muito cuidadosa pode ser conferida no excelente artigo “Science of Design” escrito por Daniel Huppatz e publicado na 31ª edição do periódico Design Issues, de 2015.

Pensemos, portanto, o quanto a mediação refere-se à capacidade do design de produzir objetos não neutros — artefatos cuja configuração, forma ou função de fato tenham o poder de desempenhar um papel de resolvedores dos problemas. Nesse sentido, quando estamos diante do design, estamos diante de algo que consegue transformar situações “problemáticas” em caminhos, até certo ponto, desobstruídos. Essa tradição interpretativa ganha força considerável com as teses elaboradas por Herbert Simon na década de 1960. Descrito não necessariamente como uma prática ou profissão, o design é tratado, no livro The Sciences of the Artificial (MIT Press, 1969), como uma mentalidade voltada à formulação e resolução de problemas genéricos.18 A área passa a ser definida, então, como uma “ciência do artificial”, capaz de projetar interfaces entre os mundos internos dos artefatos tecnológicos, restritos ao seu funcionamento, e os mundos externos, ou seja, interações entre objetos e seus usuários. Para Simon,

[…] o processo de design é uma investigação criativa para transformar uma situação existente em uma situação almejada, por meio da seleção de uma solução satisfatória a partir de um conjunto de potenciais alternativas.

No cerne dessa linha de pensamento está a definição do que seria um “problema de design”. Kees Dorst, professor de design na Universidade de Tecnologia de Sydney, segue na esteira de Simon e sugere em “Design problems and design paradoxes, publicado em 2006 na revista Design Issues, que problemas se tornam complexos quando são “mal estruturados” e precisam de um processo de redimensionamento. O clássico “Dilemmas in a General Theory of Planning, de Rittel e Webber, publicado na revista acadêmica Policy Sciences em 1973, é geralmente o ponto de partida para que o design se insira nesse entendimento interpretativo, como método para elucidar aspectos que precisam ser mais bem descritos em cada situação-problema. A lógica das ciências aplicadas e do desenvolvimento de produtos e serviços assume, dessa forma, uma configuração iterativa: a linearidade de um passo a passo objetivo dá lugar ao famigerado design-test-repeat. No fim das contas, ser um designer significa não necessariamente ser capaz de resolver problemas, mas de observar tais problemas por diferentes pontos de vista à procura de soluções plausíveis. A dimensão coletiva é novamente um pressuposto, visto que alguém deverá apontar qual dessas alternativas será escolhida.

Assim como, nas palavras de Dorst, um arquiteto transforma um problema em requisitos ao representar uma casa por meio de uma maquete, o designer aparece como esse investigador capaz de transformar um problema sem limites claros em uma série de requisitos de projeto. Segundo os já citados Galle e Kroes, esse processo pressupõe a criação de artefatos cujo objetivo é circular entre esferas de conhecimento distintas, comunicando padrões, atributos e requisitos de projeto. Trata-se dos bem conhecidos protótipos, visualizações, diagramas, mock-ups etc. Encontramos, quase que de forma poética, uma síntese desse processo nas palavras de Dorst, que explica:

O design é a resolução dos paradoxos entre discursos em uma situação de projeto. 

Essa divertida proposta ontológica para o design se sustenta, primeiro, na ideia de que o design opera em um nível discursivo. Vamos supor que uma empresa de calçados decida lançar um novo produto: uma linha exclusiva, assinada por um famoso jogador de futebol. Acordos são assinados, contratos trocam de mãos e logo as cláusulas principais são apontadas: o jogador aceita ter sua imagem associada à marca, desde que a empresa se comprometa com algumas questões ambientais. Pela definição de Dorst, há um paradoxo em jogo: a produção industrial de calçados é uma atividade poluente, demanda insumos e decorre de processos que geram resíduos. Para se tornar sustentável, é necessário resolver esse impasse. Designers são capazes de atenuar esse paradoxo, mesmo que não seja possível solucioná-lo totalmente: é possível criar um novo produto composto por pedaços reciclados de outros objetos? De que outras formas poderíamos intervir para apaziguar os danos ambientais causados pela fábrica? Por outro lado, será que designers, ao tentarem atenuar paradoxos, estão apenas perpetuando situações fatalmente indesejáveis? Se nosso papel é intervir em paradoxos, limites éticos também precisam ser considerados?

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Essa “necessidade” descrita pelo autor é um dos sintomas mais sensíveis e cruéis da precarização do trabalho a qual designers e outros profissionais criativos estão submetidos. A lógica empreendedorialista exige uma performance multitarefas constante, que acaba sobrecarregando trabalhadores e, muitas vezes, esgotando suas capacidades mentais e criativas. [N.E.]

Por essa perspectiva, o design se configura como um elemento discursivo que norteia a elaboração de novos e melhores artefatos, a partir da constatação do que é indesejável em uma situação do presente. Surgem, assim, novos pressupostos para o ferramental da prática. É preciso conhecer dinâmicas de gerenciamento de projeto, cultivar soft skills para traçar parcerias e desenhar novos serviços. Já não somos designers: a necessidade19 nos transforma praticamente em sofistas modernos, que precisam traçar planos recheados de retórica em níveis profundos, ou seja, fazer muito mais do que apenas definir a forma ou a aparência das coisas.

Retornemos, porém, para a definição de Dorst. Embora a palavra “paradoxo” chame atenção, há outro termo que causa certo desconforto. O autor pressupõe que haja design em qualquer “situação de projeto”. É preciso, então, perguntar: o que é uma situação de projeto?

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Encontramos essa definição de Alberti no clássico The Logic of Architecture: Design, Computation, and Cognition, um livro de William Mitchell (MIT Press, 1990) sobre a transferência dos conceitos básicos do projeto arquitetônico à linguagem dos softwares.

Essa questão é tão antiga que suas origens são difíceis de localizar. Encontramos, por exemplo, uma interessante menção ao ato de projetar na obra do arquiteto genovês Leon Battista Alberti, que se tornou referência na literatura renascentista por elaborar generalizações comuns aos processos criativos. Em sua obra De re aedificatoria20, um conjunto de manuais sobre arquitetura escrito em Florença entre 1443 e 1452, o autor propõe que

[…] um projeto é a elegante pré-ordenação das linhas e dos ângulos, concebidos na mente, planejados por um engenheiro ou artista.

A pré-ordenação elegante de Alberti ecoa uma mentalidade renascentista que separava o ofício intelectual do trabalho mecânico. Nas palavras do historiador Paolo Rossi, o que se desenhava não era um pressuposto ético que indica um eixo de importância entre as duas coisas, mas a sinalização de formas irmãs de produzir conhecimento sobre a natureza.

Evidentemente, esse exemplo não é um indício de que o que conhecemos hoje como “design” tenha sua origem nos tratados arquitetônicos renascentistas. Mas, já que estamos aqui casualmente conversando sobre ontologia, podemos nos permitir apontar a um sutil paralelo entre esse processo de ordenação mental elaborado por Alberti e a prática do design com “d” minúsculo. 

Até agora, parece que estamos andando em círculos. Iniciamos com a constatação da dupla natureza da palavra design, para enfim chegar a um conceito renascentista que alude para uma duplicidade semelhante — algo elaborado na mente antes de ser transferido ao mundo físico. Há uma espécie de tragédia pairando no ar, como se a ontologia do design dependesse de táticas recorrentes para descrever atividades criativas, as quais, muitas vezes, são reivindicadas por outras áreas, ou a termos genéricos o suficiente para se confundirem com qualquer prática de resolução de problemas.

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O pessoal da SBDI deixa a definição periodicamente atualizada disponível no site oficial da instituição. A versão citada aqui é de 2020.

Não desistiremos. Quem sabe ainda resta alguma carta na manga. Propostas encontradas a rodo na literatura sugerem dividir o design, essa esfinge indecifrável, em subáreas, facilitando a tarefa de localizar as práticas distintas em torno dos objetos e artefatos que por ela são produzidos. Tomemos como exemplo a definição que a Sociedade Brasileira de Design da Informação (SBDI)21 estabelece em seu site:

Design da Informação é uma área do Design cujo propósito é a definição, planejamento e configuração do conteúdo de uma mensagem e dos ambientes em que ela é apresentada, com a intenção de satisfazer as necessidades informacionais dos destinatários pretendidos e de promover eficiência comunicativa.

Essa sagaz estratégia isenta-se imediatamente de complicações maiores. É uma demarcação: o Design da Informação é uma “área do design”, isto é, uma prática que não pretende abarcar a totalidade do fenômeno, mas apenas as situações específicas nas quais fatores como necessidades de usuários e eficiência comunicativa são os elementos centrais das situações de projeto.

Estamos diante de uma metafísica separatista, que encontra na delimitação de subáreas a tão sonhada identidade ontológica para o design, ou de uma evidência de que as identidades históricas do design são retratos dos modos de produção em vigência em cada época?

De fato, encontrar especificações entre os designs possíveis deixa a tarefa ontológica bem mais confortável. A consequência direta é que transpor o design para o Design demanda sua fragmentação em subáreas, cada qual com uma linha de especialização e expectativas técnicas próprias. Existe agora o Design Gráfico, o Design de Produto, o UX Design, o Product Design (que é diferente do Design de Produto, porque diz respeito a produtos digitais), o Design de Serviços e assim por diante. Minha provocação é de ordem dialética: estamos diante de uma metafísica separatista, que encontra na delimitação de subáreas a tão sonhada identidade ontológica para o design, ou de uma evidência de que as identidades históricas do design são retratos dos modos de produção em vigência em cada época? Afinal, separar e delimitar o design em subdisciplinas parece um reflexo de uma exigência capitalista pela especialização da mão de obra (e, consequentemente, da alienação dos trabalhadores).

***

Chegamos ao ponto, enfim, de questionar se a validade da empreitada metafísica é, de fato, necessária. Por que precisamos discutir definições para o design? Embates filosóficos parecem tão distantes da prática. Fazemos design no dia a dia e somos pagos (ainda que mal) para isso. De que vale, portanto, ficar girando por solilóquios, tentando definir o que nunca precisou de definições formais para se estabelecer?

Embora pareça distante do fantasma das contas, mensalidades e boletos que nos perseguem e aparecem nos nossos sonhos à noite, para profissionais e estudantes de design é importante compreender que as definições em disputa, muitas vezes, afetam nossas vidas gerando consequências não totalmente visíveis, mas, ainda assim, persistentes. Peguemos um exemplo brasileiro recente. Entre 2011 e 2014, José Luiz Penna e sua equipe (Partido Verde, São Paulo) apresentaram o projeto de lei n. 1.391/2011 na Câmara dos Deputados para regulamentar a profissão de designer. Oras, não se propõe algo assim sem, antes, pagar um pedágio filosófico e incluir, no texto do projeto, o que seus autores entendem por “designer”: 

[…] o profissional que desempenha atividade especializada na elaboração de projetos de sistemas e/ou produtos e mensagens visuais que podem ser produzidas em série. 

É interessante observar que a proposta ontológica do deputado localiza o design como uma prática voltada às técnicas de produção em série: processos de impressão, manufatura e fabricação. Caso o projeto de lei fosse aprovado, profissionais contratados como designers poderiam passar a responder a um órgão regulador, da mesma forma como psicólogos pertencem ao Conselho Federal de Psicologia. Também ganhariam respaldo para discutir progressão de carreira, piso salarial e outras demandas trabalhistas. A definição adotada, no entanto, gerou questionamentos típicos de qualquer exercício ontológico, porque inclui alguns e exclui outros. Por exemplo, profissionais de design que atuam na área de serviços, como pesquisadores, hoje chamados de “UX designers” ou “UX researchers” provavelmente ficariam de fora dessa formalização, por não se encaixarem no método produtivo especificado. É difícil formular uma proposta que abarque todo o espectro que hoje se reúne sob o signo do design no mercado de trabalho sem que isso saia pela culatra e acarrete novas estratégias de informalização. 

De todo modo, o projeto de lei não avançou. Em 2015, sofreu uma canetada da então presidenta Dilma Rousseff, cujo argumento para o veto foi que a profissão do Design não representa risco de dano à sociedade.

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Vide relato de desenvolvimento de uma vacina anticoncepcional incluído no livro de ensaios Technology, Modernity and Democracy editado por Eduardo Beira e Andrew Feenberg (Rowman & Littlefield Publishers, 2018).

Definições acerca do design orientam projetos de lei, delimitam orçamentos e ementas educacionais. Uma simples escolha de palavras pode deslocar o design entre campos. Se ele está próximo das engenharias, é tratado como um ferramental para a resolução de problemas empíricos. Quando se avizinha das ciências humanas ou da arte, atua como mediador entre nós e esse estranho mudo ao qual somos arremessados no nascimento. Mas esse privilégio não se restringe somente ao design. Andrew Feenberg, ao avaliar o papel da política na relação entre ciência e tecnologia, chama atenção para a ironia que permeia as estratégias de diferenciação entre esses dois campos: em projetos de desenvolvimento, o padrão é descrever o plano de ação como “ciência” se os atores buscam autonomia; e como “tecnologia” se o objetivo é atrair verba e financiamento22

Se não descrevem objetivamente o fazer da nossa profissão, o que as definições institucionais revelam, contudo, é um interessante potencial como documento histórico. Elas retratam não necessariamente o design pelo que ele é, mas pelas formas como pode ser acessado, do ponto de vista linguístico, em determinados contextos temporais.

Vamos enveredar por um estudo de caso da World Design Organization (WDO), fundada em 1957, em Londres — então denominada International Council of Societies of Industrial Design (ICSID). Essa organização visava alinhar iniciativas de ensino e divulgação profissional do design através do financiamento de projetos e da criação de dispositivos de legitimação para as associações envolvidas. Na ocasião do seu estabelecimento, a ICSID propunha a seguinte definição:

O designer é o profissional qualificado pelo conhecimento técnico, experiência e sensibilidade visual para determinar os materiais, mecanismos, formas, cores, superfícies e decorações de objetos reproduzidos por processos industriais. É também o profissional qualificado para resolver problemas de embalagens, publicidade e propaganda, exibição e marketing de produtos, por meio da apreciação visual.

É claro que o que salta aos olhos é o termo “processos industriais”, aproximando quase que de forma íntima o design ao modo de produção industrialista. Qualquer semelhança com a definição adotada no finado projeto de formalização brasileiro não é mera coincidência. Estabelece-se, de tal forma, uma relação direta entre o design e um esquema organizacional desejado para a sociedade, no qual a indústria representa o elemento central das economias.

23

Os desdobramentos das instituições internacionais voltadas ao design (WDO, ICOGRADA etc.) são explorados amplamente em estudos historiográficos. Para esse ponto em particular, recomendamos a leitura de “Globalization and Design Institutionalization: ICSID’s XIth Congress and the Formation of ALADI”, de Tania Messell, publicado em 1979 no primeiro número do 32º volume da Journal of Design History.

24

Acaba de sair do forno uma tentativa de genealogia para as definições de design da WDO: “Por uma definição satisfatória a partir de um conjunto de definições potenciais: uma análise dos arquivos online da World Design Organization”. O texto, escrito por mim, Bolívar Escobar, e meus colegas Marcos Beccari e Maurício Perin, foi publicado no segundo número do terceiro volume do periódico Pensamentos em Design, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

A definição original da ICSID persistiu por certo tempo, até que desavenças internas começaram a despontar entre os membros da instituição. Estando a instituição cada vez mais presente em países do Sul global, os proponentes dessa definição tecnicista do design viram-se, de certa forma, implicados em uma rede de contradições resultantes dos avanços das políticas expansionistas do Norte23.

Após sucessivas reformas, em 2017, a organização ressurge com o novo nome, WDO, e adota a seguinte definição para o design:

Design é um processo estratégico para solucionar problemas que impulsiona a inovação, constrói o sucesso em negócios e leva a uma melhor qualidade de vida por meio de produtos inovadores, sistemas de serviço e experiências. É uma profissão transdisciplinar que utiliza da criatividade para resolver problemas e cocriar soluções. A essência do design é criar uma maneira otimista de olhar para o futuro, ao reenquadrar problemas como oportunidades. Ele liga inovação, tecnologia, pesquisa, negócios e clientes para fornecer novos valores e vantagem competitiva através das esferas econômicas, sociais e ambientais.

Como um paciente que acaba de revelar um novo rosto após um processo de harmonização facial, o design reaparece transformado. Como um fenômeno distanciado da indústria, ele agora se posiciona estrategicamente entre as diversas disciplinas modernas para conectar tecnologia, pesquisa, negócios e clientes em soluções focadas para sistemas de serviço e experiências. Como exercício, cotejamos as duas definições em busca de paralelos semânticos entre a versão de 1959 e a de 201524.

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Essas definições da World Design Organization podem ser conferidas em seu site oficial: wdo.org/about/definition.

Condizente com os valores do novo milênio, a definição da WDO aproxima o design dos problemas da sociedade e persiste em sua ontologia generalista. É justamente por se associar a termos complementares — inovação, empreendedorismo, sustentabilidade — que o design expande seus significados, atingindo cada vez mais áreas do conhecimento humano que, por sua vez, só teriam a ganhar ao adotarem a “visão do design” em suas operações25.

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Não seria justo concluir este ensaio metafísico sem fazer justiça a um dos debates mais antigos da filosofia, que compreende a disputa entre duas facções rivais: os realistas e os nominalistas. 

Os realistas acreditam que as entidades existentes dividem-se em duas categorias: os seres particulares, que podem ser localizados precisamente no mundo, e os universais, que se referem aos atributos e características compartilhados por todos. Quando digo que estou usando o meu chapéu azul, por exemplo, estou falando de um objeto em particular, mas também me refiro a atributos universais: trata-se de um chapéu e esse chapéu é da cor azul. 

O principal problema do realismo é que precisamos, para satisfazer essa visão, delimitar se os seres universais são anteriores à existência do ser particular — o meu chapéu — ou não. Isto é, eu poderia conceber a existência desse chapéu azul antes de saber o que é um chapéu e de conhecer a cor azul? Provavelmente não. Para essa linha ontológica, portanto, o mundo real é uma lista de seres universais que se manifestam conforme nossos sentidos se adaptam para percebê-los.

Já os nominalistas propõem uma teoria mais simples: as propostas ontológicas precisam pressupor apenas a existência de particulares. Qualquer elemento identificado como universal não passa de um particular disfarçado. Grosso modo, para os nominalistas, o meu chapéu azul não corresponde a uma manifestação de seres universais, mas a um dispositivo linguístico que nomeia um item em sua particularidade detectável. O maior argumento dos nominalistas é a impossibilidade de se propor condições de identidade para universais: não existe a “chapelidade” do meu chapéu no mundo físico, pois ela se manifesta circunstancialmente na relação entre o objeto e a minha cabeça.

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Esse conceito é delineado brevemente por Tony Fry, Clive Dilnot e Susan C. Stewart em Design and the Question of History (Bloomsbury Publishing, 2015).

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O livro O design brasileiro antes do design: aspectos da história gráfica, 1870-1960 (Cosac Naify, 2005), organizado por Rafael Cardoso, é uma boa leitura para quem tem interesse em memória gráfica e nos processos e técnicas usados para criar os rótulos e embalagens de antigamente.

O debate filosófico realismo versus nominalismo se traduz, na questão ontológica do design, em duas maneiras diferentes de compreender a atividade. Do lado realista, é possível defender que o design é uma atividade que se manifesta de diferentes formas ao longo da história, assumindo aspectos que carregam uma mesma característica universal. Ela é qualificada por autores como Fry e Parsons como “prefiguração”, ou seja, a manifestação do pensamento projetual como algo inerente à condição humana26. Reflexos desse posicionamento podem ser identificados em discursos como o do próprio Rafael Cardoso, o autor da primeira definição citada aqui no nosso texto, que chama de “design antes do design” as atividades projetuais gráficas anteriores ao reconhecimento formal do design enquanto disciplina no Brasil27.

Do lado nominalista, entretanto, o mais coerente seria negar que tais atividades podem ser chamadas de “design”, já que o termo tem uma conotação histórica rastreável. Ele estaria relacionado não às atividades projetuais como um todo, mas a um espectro de condições de projeto circunstancialmente viabilizadas graças a certo enclave sociopolítico, o qual departe da industrialização, dos movimentos modernizantes e dos racionalismos recentes. O design seria, portanto, uma prática precisamente localizada, historicamente circunscrita e não necessariamente relacionada a um conceito universal, no sentido metafísico do termo. 

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Para saber mais sobre a história da Bauhaus, indico a leitura de uma das mais populares referências sobre assunto, o livro Bauhaus: 1919-1933, de Magdalena Droste (Bauhaus Archiv Museum, 1990).

Evidências favoráveis à posição nominalista não faltam: o termo “design” não era sequer usado na Alemanha da Bauhaus antes do fim da Segunda Guerra Mundial28. A instituição de ensino, que simboliza o design moderno, empregava termos diversos para as práticas de projeto ensinadas por lá: marcenaria, pintura, tecelagem, Gestaltung (para as composições artísticas interdisciplinares). Em resumo, para os nominalistas, o design passa a existir somente quando o termo “design” é usado para identificá-lo.

Em síntese, nossa presente tentativa de edificação reside, pois, em não tentar resolver tal questão ou bater o martelo. Em seu lugar, propomos esses exercícios de investigação de premissas, objetivos, intencionalidades.
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A principal referência sobre o pensamento de Richard Rorty é o seu livro A filosofia e o espelho da natureza, publicado originalmente em 1979 e editado no Brasil em 1995 pela Relume Dumará, com tradução de Antonio Trânsito.

Não precisamos adotar pareceres categóricos, porém. Escolher de pronto uma dessas duas vertentes seria ignorar o que Richard Rorty29 chama de potencial “edificante” da filosofia, que, segundo ele, trata-se de um posicionamento reativo, um protesto contra qualquer tentativa de declarar uma discussão como encerrada. Trazer a filosofia para o design, como neste debate ontológico, é uma tarefa que, ao invés de buscar conclusões, parece nos permitir a dizer “mas”. Abrimos este texto constatando que o design é uma atividade que se deixa investigar ontologicamente, que se abre facilmente para esse tipo de discussão. Por quê? Talvez pela natureza ambígua da palavra “design”, ou por sua história estar tão entrelaçada à da cultura material, ou, quem sabe, por essa “abrangência teórica” detectada nas definições que se estabelecem em sua literatura. O efeito colateral, para o bem ou para o mal, é essa inclinação insistente para olhar para nós mesmos em busca de novos entendimentos, novas pistas para criar o lugar do design no mundo — criar, e não o encaixar nos espaços que sobram.  

Em síntese, nossa presente tentativa de edificação reside, pois, em não tentar resolver tal questão ou bater o martelo. Em seu lugar, propomos esses exercícios de investigação de  premissas, objetivos, intencionalidades. Nas palavras do próprio Rorty, empenhar-se pela verdade em vez de buscar “toda a Verdade”. Vimos, no exemplo da ICSID-WDO, como uma definição pode instrumentalizar políticas desenvolvimentistas pelo simples fato de estabelecer conexões entre práticas produtivas e sistemas políticos. “O que define o design” já não é mais uma pergunta tão interessante quanto o que está em jogo quando uma definição é aceita? Que espaços se abrem — e como podemos usar a filosofia para construir questionamentos? Querendo ou não, seria no mínimo estranho entrar numa pizzaria e se deparar com um cardápio de esfirras.

Este texto é o resultado de uma aula ministrada pelo autor no curso de Design Gráfico da Universidade Federal do Paraná, como parte da disciplina de Teoria e História do Design a convite do professor Marcos Beccari. Na atividade lúdica proposta por Bolívar Escobar, os alunos deveriam adivinhar a palavra que estava faltando em algumas definições de design selecionadas. O autor também gostaria de agradecer à editora da Recorte, Flora de Carvalho, por sua leitura crítica e comentários que ajudaram a deixar estes parágrafos mais bem construídos.

27 de junho de 2024

Isto não é uma carta de amor ao Carnaval

por Lívia Gianini Victoria

A ilustração que acompanha este ensaio foi cedida por Herbert Loureiro (@herbbbbie no Instagram).

Todo mundo tem uma história de amor pelo Carnaval. Ou de ódio. A minha serve para os dois. Eu poderia tecer uma tese sobre a importância dessa festa para a cultura popular brasileira, mas este texto não é sobre isso. Ele é sobre como uma arquiteta metida a designer com menos de 1,60 m, que abomina aglomeração e, ao mesmo tempo, se encanta com as vivências de um bom bloco, encontrou algum tipo de equilíbrio nesse paradoxo, graças a um clássico e velho conhecido dos grandes bailes: os estandartes.

Não que eu venha de uma família tradicionalmente festiva e tenha pulado por bailes desde a barriga da minha mãe – se eu somar dez carnavais no currículo já seria muito. Essa muvuca começou a ficar interessante, no entanto, quando encontrei um grupo de amigos que também enxerga beleza numa meia arrastão rasgada e no glitter escorrendo pela cara suada.

Mas vamos aos fatos. O carinho que cultivo por essa festa vem das imprevisibilidades que vivenciamos ao longo de quatro dias. Aprendi que a única variável possível de controlar em um dia de bloco é o horário de sair de casa e, ainda assim, coloco aqui algumas ressalvas: a ressaca do dia anterior, a complexidade da fantasia da vez. Os encontros, a espontaneidade, a falta de seriedade perante si e à vida, a sensualidade e até mesmo a sacanagem – sem julgamentos, ela tem seu valor – são alguns dos elementos que, misturados à exaustão que reprimimos no corpo e na mente ao longo do ano, vêm à tona como um dilúvio para limpar tudo antes do começo de mais uma temporada.

Por outro lado, vários dos motivos para amar o Carnaval já citados poderiam ser interpretados negativamente: espontaneidade é o mesmo que desorganização? Mas como sou eu que dou este relato, me reservo o direito de eleger a pior característica da festa mais amada do Brasil: a multidão. Boa parte das tragédias carnavalescas derivam do excesso de gente na rua – da escassez de comida e bebida, dos banheiros transbordando, da dificuldade de locomoção, além do desespero de transitar no meio de tanta gente.

Ah, um ponto importante desta narrativa é que eu já passei por um arrastão (do tipo traumático, não estou mais falando da meia). Na hora, o ocorrido não me causou muito impacto. Era ano-novo, minhas faculdades mentais já não estavam em sua capacidade máxima, e a agonia generalizada da aglomeração camuflava a seriedade da situação em uma catarse coletiva. O tumulto aconteceu em cima de uma ponte e foi daqueles que não só tornava impossível encostar o pé no chão, mas também engolia, puxava para baixo.

Com o tempo, no entanto, percebi que esse episódio tinha agravado – e muito – o meu medo de aglomerações, o que transformou o Carnaval num dilema para mim – estar entre muitas pessoas ocupando o mesmo lugar ao mesmo tempo (explica o túnel no Boi Tolo, Sr. Newton) tinha deixado de ser só alegria. Nesses dias, eu vivo o céu e o inferno na Terra, o “credo, que delícia” e o “Deus me livre, mas quem me dera”. Porém, contudo, todavia, de tanto insistir nesse furdunço, uma luz começou a brilhar no fim do túnel.

O bloco eu não lembro qual era, o dia da semana muito menos, mas se para você fizer alguma diferença, posso dizer que ou era o último dia de festa, ou já tinha passado a hora de ser. De qualquer forma, a essa altura do campeonato, a exaustão tomava o lugar da simpatia e não deixava muita margem para paciência. O fato é que eu e minha gangue entusiasmada, cansados de nos perdermos, elegemos um dos muitos estandartes como ponto de encontro. Seja pela minha estatura ou pela minha formação em arquitetura e design, aquela escolha mudou a dinâmica do dia. De repente, não era tão assustador me afastar dos amigos para comprar um sacolé, ou me aprofundar em uma troca de olhares. O estandarte ainda estaria lá, a alguns foliões de distância, junto com um grupo de pessoas que me acolheria. Esse, sem dúvida, acabou sendo o melhor dia.

Onde a paisagem não é reservada às grandes marcas, [os estandartes] são expressões visuais populares que, quando reunidos, resultam numa explosão estética e criativa

Aquela sensação de segurança e liberdade me levou a concluir que não é por acaso que os estandartes estampam o horizonte do Carnaval. Onde a paisagem não é reservada às grandes marcas, eles são expressões visuais populares que, quando reunidos, resultam numa explosão estética e criativa. Vale abrir um parênteses para especificar que não me refiro tanto aos estandartes oficiais, mas aos efêmeros, empunhados por comerciantes, grupos de amigos, grêmios recreativos minúsculos, movimentos políticos em festa – mesmo que tenham sido improvisados 15 minutos antes do cortejo começar.

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O ensaio-manifesto Ornamento e crime (Cotovia, 2014) foi publicado pelo arquiteto austríaco Adolf Loos (1870-1933) em 1908 e logo tornou-se um cânone modernista frequentemente associado a Bauhaus e à Escola de Ulm, ambas alemãs. Já a Lei Cidade Limpa proíbe a utilização de espaços públicos para fixação de propagandas e regulamenta letreiros e outras intervenções em fachadas. Entrou em vigor em 2006 em São Paulo e sua versão carioca é válida desde 2017. [N.E.]

Esses dispositivos realizam um dos papéis mais triviais do design moderno: comunicar e orientar. Como no Carnaval todos estamos mais dispostos a decodificar símbolos e mensagens (essa sua fantasia é de quê?), não há restrições para o uso e abuso de cores, tecidos, lantejoulas e bordões. Ironicamente, quanto mais maximalista for seu apetrecho, melhor ele cumpre a função de guiar e debochar, ao mesmo tempo, do design europeu do século 20 e da Lei Cidade Limpa1.

O seguinte parecer vem da minha compreensão de profissional foliona, não de foliona profissional: práticas artísticas como essa influenciam nas maneiras como vemos e entendemos nós mesmos e os contextos nos quais estamos inseridos. Em uma escala maior, também intervêm em como interpretamos a dinâmica das massas e, portanto, como navegamos por elas. Através dessa partilha sensível, revogamos a comunicação verbal em proveito da leitura dos signos para absorvermos seus efeitos em nossos corpos.

Graças à elaboração dessa realidade temporária, mais visceral, pode-se dizer que visitar uma cidade durante o Carnaval e visitá-la em outra época do ano é como conhecer dois lugares muito diferentes. Já até ouvi uma pessoa comentar: “o [bloco] Eu acho é pouco eu conheço bem, agora preciso voltar pra conhecer Olinda”. Esses locais se tornam versões mais coloridas de si mesmos; a funcionalidade de suas ruas é alterada, abrigando e aproximando uma pequena, mas potente amostra da existência humana, que celebra sua complexidade.

O Carnaval também é uma época em que as regras são reinventadas. Personagens que criamos tornam-se quem realmente somos por aquele recorte de tempo.

O Carnaval também é uma época em que as regras são reinventadas. Personagens que criamos tornam-se quem realmente somos por aquele recorte de tempo. Não apenas simulamos novos papéis, mas nos transformamos em nossas fantasias. Se somos capazes de expressar essa face subjetiva, radicalmente criativa, ela também não deveria fazer parte de nós nos outros 361 dias do ano?

Nosso mundo interno é rico em imaginação e desejo. Carregamos nossos pierrôs e colombinas escondidos debaixo dos papéis cívicos que interpretamos no cotidiano e por isso utopias coletivas, como o Carnaval, são tão importantes para revelarmos nossos eus mais inventivos e menos rígidos.

Retomo aqui o título deste relato: isto não é uma carta de amor ao Carnaval, mas sim às pessoas que o amam e o recriam em cada oportunidade. Às que se enxergam como parte de um todo e fazem o exercício de estar juntas entre muitas. Se no dicionário uma festa é definida pela junção de música, comida, bebida, dança e pessoas com fins recreativos, tudo pode ser resumido a este último item: às pessoas, uma vez que os demais são invenções humanas. Por isso, qualquer iniciativa com a finalidade de reforçar o bem-estar de qualquer pessoa merece reconhecimento. Em suma, artefatos carregam o poder de mudar um enredo e desbloqueiam novas alegorias do sentir para que a fantasia seja eterna e viver seja só festejar.

21 de dezembro de 2023

Mulheres na Tipografia – Parte 2

por Flavia Zimbardi

Para ler a introdução e conhecer outras designers de tipos, acesse a Parte 1.

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Leluja Regular foi selecionada para a bienal latino-americana de tipografia (Tipos Latinos) em 2016, e os dingbats (conjunto de caracteres ilustrativos) que a acompanha entrou na seleção de 2022.

Leluja por Andrea Kulpas1

A cereja do bolo da minha última viagem a São Paulo, em dezembro de 2022, foi estar1 perto da minha querida amiga Deia no lançamento da Leluja, seu trabalho de conclusão de curso no mestrado em tipografia da Universidade de Buenos Aires (UBA). Depois de 9 anos em desenvolvimento, este tipo para textos, inspirado na arte popular de recorte de papel Wycinanki, brilha com traços rústicos em quatro estilos e um grande conjunto de ornamentos (mais de 40 no momento, mas um passarinho me contou que vem mais por aí)! Desenhada por uma brasileira de herança húngara, estoniana e lituana, e produzida/lançada por uma fundição argentina, Leluja prova mais uma vez que identidades culturais podem e devem inspirar desenhos de letras e também parcerias. Agora a melhor parte: seu código é aberto e disponível gratuitamente pela Omnibus Type.

Zangezi por Daria Cohen

Amo como a Daria se inspira no macabro para desenhar fontes elegantes e selvagens, que suportam tanto o alfabeto latino quanto o cirílico. A robusta e avant-garde Zloy (palavra russa para “raiva”, “perverso” e “cruel”) é absolutamente fascinante, mas Zangezi é provavelmente minha favorita (até agora). Proporções incomuns, espaçamento apertado, contraformas saltitantes e serifas triangulares agressivas podem soar como muitas características marcantes é o que torna esta homenagem à fonte Salem (Keystone Type Foundry, 1901) tão especial e excêntrica. Além de três pesos (Light, SemiLight e Regular) e respectivos itálicos, a família inclui versões Condensada e Sans. Para apimentar ainda mais as coisas e manter o clima sinistro, Daria promete licenças gratuitas para projetos de lápides.

Carta Nueva por My-Lan Thuong

Carta Nueva é mais do que deslumbrante – com 1.380 glifos, também é inteligente e complexa! Para certifica-se de que cada combinação de letras tivesse a melhor apresentação, My-Lan adicionou muitos caracteres alternativos e linhas de programação OpenType à sua interpretação de um modelo caligráfico em bico de pena datado de 1851 e original da cidade de  Barcelona, Espanha. Além do elaborado sistema de substituições contextuais automáticas, a família permite composições em cinco tamanhos ópticos e tem grande potencial de evolução — parece que ela já está explorando outros eixos de variação multidirecionais. E se você me conhece bem, pode imaginar o quanto eu amaria que ela acrescentasse ainda mais pássaros caligráficos.

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Silvana recebeu o Certificate of Excellence in Typeface Design (TDC11) em 2023.

Silvana by Siri Lee2

Com uma pegada afiada, mas charmosa, Silvana é uma tipografia serifada contemporânea que reflete a admiração da designer por fontes transicionais do século XIX, em especial a Pennsylvania, publicada pela Schelter & Gieseckehe. Ao inspecionar specimens de 1912, Siri notou um erro sutil na impressão: uma mancha escura no lado direito superior do “a” minúsculo, e, então, decidiu incorporar este fluxo de tinta como um detalhe peculiar em seu design. A família possui 5 pesos (Light, Regular, Medium, Bold e Black) com respectivos itálicos, um grande conjunto de caracteres alternativos e ligaturas como www e xxx. Também disponível como fonte variável pela fundição Blaze Type.

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Pilot recebeu o Certificate of Excellence in Typeface Design (TDC5) em 2017 e o primeiro prêmio pela Fine Press Book Association’s Student Type Design Competition em 2013.

Pilot por Aleksandra Samuļenkova3

Condensada por conceito, Pilot é uma fonte display angulosa e expressiva com qualidades de “pintada à mão” que transmitem uma sensação nostálgica. Os primeiros esboços foram criados em 2012, enquanto Aleksandra cursava o mestrado Type and Media (sim, mais uma aluna da KABK!), e a família completa, com dez estilos, foi lançada pela Bold Monday em 2017. Pilot fornece um sublinhado inteligente que não interfere em elementos posicionados sob a linha de base (como a cedilha, por exemplo), e ainda conta com dois conjuntos de versaletes, que evocam composições analógicas. Fechando o círculo, é um dos poucos designs contemporâneos disponíveis em tipos de metal produzidos pela Swamp Press (uma honra que também compartilho por ter as letras do meu projeto Joschmi em madeira).

Cardone por Fátima Lázaro

Em maio de 2022, Elizabeth Goodspeed tuitou a pergunta: “Are we entering a Scotch Roman revival?” [Será que está na moda reviver a Scotch Roman (fonte do começo do século XIX)?] depois de perceber diversos usos recentes desse estilo em projetos de branding. Se você curte essa tendência e está procurando a combinação perfeita de vigor e sofisticação, Cardone pode ser a resposta. Com nome inspirado pela flor nacional da Escócia (“cardo” vem de “cardŭus” em latim), a primeira tipografia de Fátima foi iniciada na EsadType em 2016 e publicada pela 205TF em 2021. Mas apesar da referência histórica, a designer não estava tentando criar uma releitura purista ou fiel, seu objetivo era desenhar uma família otimizada para usos editoriais, de excelente funcionalidade e legibilidade. Com cinco pesos (de Thin a Bold) e itálicos delicados, Cardone também está disponível em versão Micro, mais radical e mecânica, destinada a textos compostos em corpo 8 pt ou menor.

Rezak por Anya Danilova

Rezak explora o processo de esculpir materiais em busca de formas de letras. Poderia ser pedra ou madeira, mas Anya escolheu o linóleo para entender a lógica: poucos cortes = escuro e simples, mais cortes = claro e definido. O resultado é uma família mista com serifas quadradas irregulares que desaparecem no peso Black. A versão Incised veio por último e utiliza um script para gerar os entalhes internos a partir de funções trigonométricas— insira aqui o meme da Nazaré Tedesco fazendo contas! Esse estilo, isoladamente, pode facilmente ser usado de forma ornamental. Rezak destaca a relação entre claro e escuro como presença e ausência, o que é removido versus o que permanece. Somando os dois estilos para títulos, os quatro pesos de texto (Regular, Semibold, Bold, Extrabold) e seus itálicos, temos um total de dez fontes, que, abrangem os alfabetos latino e cirílico estendido, com suporte a idiomas negligenciados, como abecácio, itelmene e koryaque.

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LiebeHeide recebeu o Certificate of Excellence in Typeface Design (TDC9), Lápis Grafite do D&AD, Cubo de Bronze pelo ADC, ouro pelo German Design Award e foi premiada pela Communication Arts em 2021.

LiebeHeide por Ulrike Rausch4

LiebeHeide é provavelmente a fonte manuscrita mais realista que existe. Ela usa uma tecnologia recente, que atribui cor a desenhos tipográficos (color fonts), e recursos de programação para reproduzir fielmente a aparência de textos escritos com uma caneta esferográfica. Claro, nada disso seria possível sem a experiência de Ulrike e sua obsessiva atenção aos detalhes. Direi publicamente que eu jamais embarcaria na loucura de digitalizar em alta resolução e programar mais de quinhentos glifos exclusivos, incluindo símbolos, rabiscos, sublinhados, tachados e tudo mais que dá charme a LiebeHeide. Sim, esta fonte é baseada em imagens bitmap, não em desenhos vetoriais, portanto sua cor não pode ser alterada em editores de texto, apenas com filtros do Photoshop. Já mencionei que há três resoluções diferentes, para que os aplicativos carreguem apenas o tamanho necessário? Louco! Eu sei. Se você está curioso sobre o making of, Ulrike explica tudo neste vídeo.

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Tomasa foi premiada na categoria latina pelo ADC/10th Founder Type Design Competition, ganhou Sello Buen Diseño Argentino em sua 10ª edição e foi uma das vencedoras do Cirílico Moderno em 2021.

Tomasa por Fer Cozzi5

Esta rainha do rebolado, xará da cantora chilena Tomasa del Real, é uma homenagem ao movimento de dança neo-perreo (fusão de reggaeton, techno, cumbia e trap) e traduz perfeitamente esta estética singular em formas expressivas e fluidas. Enraizada em sons e visuais latinos urbanos, esta tipografia de estilo único remete a peculiaridades do graffiti ao oferecer quatro variações de cada letra dos alfabetos latino e cirílico, além de ligaturas para evitar que as formas se repitam excessivamente. Como a própria Fer Cozzi (a quem tive o prazer de conhecer no DiaTipo SP 2022), posso ver a Tomasa dando tudo de si na pista!

Alfarn2 por Céline Hurka

Em 2018 fui convidada pela Adobe para participar da celebração dos 100 anos da Bauhaus e reviver uma das obras menos conhecidas de seu mestre Joost Schmidt, trabalho que deu origem à fonte Joschmi. A Céline também fez parte dessa equipe, e nos divertimos muito no painel de lançamento do projeto em Nova York. No ano seguinte, ela ingressou no Type and Media e desenhou uma das fontes mais inovadoras produzidas nesse programa, a Version — que, aliás, lhe rendeu o prêmio de melhor tese em 2020. Apesar de amar a Version, estou aqui para falar da Alfarn2, sua reinterpretação de letras desenhadas por Alfred Arndt (1898-1976) para um pôster famoso de 1923. Alfarn2 saiu em 2022, depois que Céline aprimorou a versão lançada no tal evento da Adobe,  adicionando minúsculas e um suporte de idiomas mais extenso (incluindo os clássicos acentos aninhados alemães), dois conjuntos de pontuação e três variações de largura para as maiúsculas. Ajustes que capturaram perfeitamente o estilo geométrico da Bauhaus que se tornou atemporal.

Por trás da Acerca sempre existiu um cérebro, que no caso é o meu. E, tão importante quanto o cérebro, eram meus braços e pernas que faziam a coisa acontecer. A Acerca foi o veículo que construí para guiar numa estrada que eu nem sabia aonde ia dar.

Em 2013, morava em Guarulhos e estava me formando em desenho industrial, com uma monografia sobre fanzines. Desde criança, com papel sulfite, caneta, máquina de xerox ou o que estivesse disponível, eu fazia meus gibis. Sempre me senti meio desajustado e queria ter uma voz. Antes de ter um nome para chamar esse impulso criativo – Acerca – , já eram os zines que me ajudavam a pertencer. Meu irmão mais velho participava ativamente do rolê punk e me deu acesso a esse universo de forma precoce. Foi assim que fui parar no design.

Antes de ter um nome para chamar esse impulso criativo – Acerca – , já eram os zines que me ajudavam a pertencer.
Tem A em tudo – Fotos de letras A encontradas pelo autor em São Paulo

Enquanto fazia minha monografia, já trampava em São Paulo e sabia que lá existia uma cena de publicação independente e o que mais queria era fazer parte dela. Todo dia passava cerca de 2 horas no trajeto até o trabalho, mas a distância parecia ainda maior. Me sentia desconectado do lugar onde deveria estar. Estava começando e ninguém me conhecia. Precisava mostrar minha potência de trabalho e me conectar com as pessoas que já viviam essa realidade. Minha solução foi criar meu próprio fanzine.

Projetei meus primeiros zines coletivos para serem agentes virais – para se espalharem. A ideia inicial era fazer edições temáticas colaborativas, daí o nome Acerca. O primeiro foi Acerca de Cronologia, depois Ambiguidade, Distorção e encerrei a quarta edição, com um recorde de participações, com o tema Lixo. Naquela época, fazia mais sentido me camuflar por trás de um projeto em vez de usar meu próprio nome, para passar credibilidade. Comecei a publicar chamadas abertas nas redes sociais e fiquei surpreso quando recebi contribuições de diversos artistas independentes. Editei tudo o que a Acerca publicou sozinho e grande parte dos fanzines saíram (sigilosamente) das impressoras laser dos lugares em que trabalhei. Às vezes dobrava  o miolo, folha por folha no transporte para Guarulhos, usando grampeador de escritório com borracha para uni-lo à capa e distribuía os zines gratuitamente entre os participantes e amigos.

Esta foto e as seguintes foram clicadas por Thomas Teixeira (@_t.thomas no Instagram).

Assim que acumulei um material mais consistente, tinha uma via de acesso para as feiras gráficas. A primeira coisa que fiz com o lucro da Feira Plana de 2014 foi comprar um grampeador de brochura, papel e guilhotina. Me apaixonei pela autopublicação e pretendia continuar conhecendo e veiculando artistas, e foi isso o que aconteceu. Por anos o projeto teve esse formato de editora. Naquela época, a Acerca publicava principalmente fanzines gráficos, fotozines, cartazes e adesivos. Percebi que não podia perder o gás. Não é fácil manter um volume consistente de publicações quando se produz de forma independente.

Por 7 dos 10 anos de projeto, mantive a Acerca em paralelo ao trabalho CLT, criando material para feiras gráficas depois do expediente. Por isso, não conseguia viajar com frequência para participar de feiras em outros lugares do Brasil. Foi em 2016 que resolvi criar minha primeira loja virtual. Usava uma plataforma brasileira de iniciativa independente e, no plano gratuito, só pagava taxa caso vendesse. Me pareceu um bom começo, e foi assim que conheci muita gente de fora do estado com quem colaborei em projetos posteriormente. Então, comecei a perceber que os fanzines já não eram o que tinha maior saída, e que as feiras gráficas não eram mais as mesmas.

Em janeiro de 2020, já morando em São Paulo, transformei a Acerca de editora em marca, ao lançar roupas, acessórios e outras bugigangas, mas sem nunca deixar de publicar fanzines – afinal essa era a essência do projeto, algo que eu fazia por mim. Logo na sequência, a pandemia de covid-19 fechou a porta de alguns negócios físicos, mas abriu janelas online, principalmente para os pequenos produtores. Eu moro em frente a uma agência dos Correios, que é a conexão física do meu trabalho com o Brasil e o resto do mundo. Durante a pandemia, saía de casa semanalmente e despachava pacotes o suficiente para que no ano seguinte eu conseguisse lançar uma coleção mais séria – digo séria em relação à estrutura e à qualidade dos produtos, porque os temas em si, quase sempre, eram bem-humorados. A sensação era parecida com a de quando investia o lucro das feiras na compra de novas ferramentas de trabalho: a cada ciclo precisava encher o tanque de novo, e isso significava arriscar o que ganhei para bancar o próximo passo.

Desde o início eu estava rodeado de pessoas: quando falava com fornecedores, fazia reuniões com artistas, no balcão dos Correios, respondendo aos e-mails dos compradores.

Desde o início eu estava rodeado de pessoas: quando falava com fornecedores, fazia reuniões com artistas, no balcão dos Correios, respondendo aos e-mails dos compradores. Mas também era verdade que dependia só de mim a concepção, produção, marketing, finanças, atendimento, expedição e mesmo algumas entregas, que eu fazia de bicicleta. Para alguém tão calcado no “faça você mesmo”, parecia quase impossível delegar tarefas.

A essa altura, a Acerca tinha abraçado (ou sido abraçada por) uma comunidade. Eram pessoas que se identificavam com o mesmo sentimento de não pertencimento que eu tinha no início e que estavam conectadas pela cultura da autonomia criativa, da diversão e de uma estética brasileira autêntica. É o que sempre falo, o papo era juntar fãs. A Acerca nunca parou de crescer, mas se tornou muito pesada para que eu continuasse a tocando sozinho.

10 anos depois dos primeiros fanzines, percebi que a Acerca já tinha cumprido o seu propósito. Eu mesmo tinha chegado ao limite, estava totalmente esgotado, física e mentalmente. Por vários meses, me senti muito frustrado com o que parecia um fracasso: o fim de um projeto ao qual dediquei tantos anos de esforço. Era difícil contar a história desse fim, tanto que eu quase desisti de escrever sobre ele. Mas foi contando a história da Acerca que percebi que, mais do que me tornar conhecido no círculo do qual eu queria fazer parte lá atrás, ela me proporcionou conexões e experiências para que eu me conhecesse. Cresci com a Acerca, e a “morte” de um projeto tão importante também é como um renascimento. 

As coisas têm começo, meio e fim.

Para que serve a educação? Pode parecer uma pergunta retórica, mas juro que não é. Eu faço essa pergunta quase todos os dias para mim mesmo – o que dá um cansaço danado. Eu sou professor. Responder para que serve a educação está intimamente relacionado ao que eu vou fazer, como eu vou fazer e quais resultados eu posso esperar daquilo que eu faço. 

Eu não tenho como saber a sua resposta, infelizmente, porque isto é só um texto, não um diálogo. Mas, em uma sociedade que deposita muito valor simbólico no grau de escolaridade – e, com o crescente desinvestimento em educação, esse valor é só simbólico mesmo –, aposto que, se você está lendo este texto, já tem alguma experiência com o sistema educacional. Posso dar um passo adiante e estipular que você tem, pelo menos, uns treze anos nesse sistema: isto aqui é um texto de uma revista sobre design. Você provavelmente está no ensino superior, ou se preparando para entrar na faculdade, ou pode até já ter terminado essa etapa da sua formação. 

Treze anos ou mais fazendo alguma coisa durante tantas horas de um dia, em pelo menos cinco dias da semana, é bastante tempo. Eu espero que você já tenha parado para se perguntar “para que serve isso a que eu dedico tanto tempo?”. É uma pergunta saudável. Muito frequentemente, aquele valor simbólico da educação formal é presumido como um processo natural: eu passo pelo sistema educacional porque tenho que passar, assim como os triglicerídeos são quebrados em ácidos graxos e glicerol pela lipase lipoproteica (vê que a aula de química serve para a vida?). Entretanto, essa não é uma pergunta que vem ficando mais fácil de responder. Muito pelo contrário.

Até muito pouco tempo atrás, havia uma fé inabalável na educação, de que ela melhoraria a nossa vida. Estudava-se porque isso garantiria uma vida melhor.

Até muito pouco tempo atrás, havia uma fé inabalável na educação, de que ela melhoraria a nossa vida. Estudava-se porque isso garantiria uma vida melhor. Nas aulas de geografia, vários gráficos demonstravam como o nível de escolaridade estava correlacionado aos maiores números de IDH em países como França, Alemanha e Finlândia. Para mim, isso era muito natural. Até me tornar professor, em 2018, não questionava esse senso comum. Mas, uma vez que me vi inserido na produção de capital humano, essa função começou a me incomodar.

A ideia de “capital humano” é uma evidência curiosa – assim como sua antecessora, menos descolada, a de “recursos humanos” – de como as empresas chamam a exploração da força de trabalho. Na anterior, o extrativismo era explícito: os humanos são recursos para serem explorados assim como uma seringueira é para a borracha ou uma salina é para o lítio. Já o mais recente indica o processo de financeirização e autorreferência que o capitalismo passou nos anos 1970, quando a moeda mais forte do mundo, o dólar, deixou de ter lastro material – antes era o ouro –, e o capital passou a ser lastreado apenas por si mesmo.

Formar-se significa acumular mais capital em si mesmo para que seu trabalho seja mais bem remunerado. Você virou um fundo de investimento de você mesmo.

A partir daí, tudo passou a ser “investimento”. Tudo mesmo, inclusive a educação. Formar-se significa acumular mais capital em si mesmo para que seu trabalho seja mais bem remunerado. Você virou um fundo de investimento de você mesmo: quanto mais investimento de tempo (formação), mais capital humano, e quanto maior o capital, maior o rendimento (salário). Com um salário maior, a vida é melhor. Essa é a lógica básica da educação neoliberal. De acordo com ela, basta aumentar o acesso à acumulação de capital humano – ou seja, colocar mais gente para se formar – que os problemas do mundo estariam resolvidos. Pelo menos essa era a promessa. 

Há algum tempo, as demandas do novo mercado de trabalho jogaram isso tudo pela janela. O crescimento da automatização na esfera produtiva forçou boa parte das pessoas a migrar para a esfera de serviços, que, por sua vez, se tornou cada vez mais volátil. A tecnologia tem a ver com esse processo de volatilização de, pelo menos, duas maneiras: pela facilidade de circulação de capital ao redor do mundo e pela crescente exploração cognitiva dos trabalhadores. E essas duas se relacionam: tal como o capital pode sair de um fundo de investimento imobiliário de baixo risco para uma criptomoeda em um clique, você também precisa ter capacidade de fazer um bom questionário de UX e, na próxima reunião, desenvolver sua competência empreendedora para assumir riscos para o endomarketing.

Cada vez mais pessoas com ensino superior ou pós-graduação precisam recorrer a trabalhos precarizados e quase sempre plataformizados.
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Há variadas definições e sinônimos para economia de plataforma. De qualquer modo, as características recorrentes entre eles passam pela flexibilização, atomização e precarização do trabalho, quase sempre construído sobre a ideia de fazer um bico.

Mas o velho ditado diz que promessa não é dívida. O que vemos hoje, de fato, é que a formação não garante mais nada. Cada vez mais pessoas com ensino superior ou pós-graduação precisam recorrer a trabalhos precarizados e quase sempre plataformizados1. Na verdade, parece que nada garante mais nada: desempenho não garante que você não será descartado no próximo layoff. Individualmente, a sensação de angústia que vem dessa incerteza é mais paralisante do que revoltante. 

Ainda assim, tentamos nos agarrar a alguma coisa que nos dê o mínimo de segurança e a educação emerge com o seu valor simbólico, como promessa no fundo de um baú. “Se eu continuar com a minha formação, vou ter mais capital humano, meu trabalho vai ter mais valor e isso vai me garantir melhores condições e até mais estabilidade”. Então, você vai procurar algum curso para rechear o currículo. Quando você disser nas entrevistas que tem muita curiosidade e não cansa de querer aprender, haverá evidências. Mas, com tanta coisa para fazer, tanto cansaço, tanto trabalho (e ainda tem que ir à academia, sair com os amigos, seu autocuidado…), você precisa de um curso mais flexível; on-line, claro, e, de preferência, com aulas gravadas para ver quando estiver a fim. Leia-se: quando você não estiver exausto.

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Foi um personagem que fez muito sucesso no Brasil entre o fim dos anos 1990 e o começo dos anos 2000. Com um quadro no Fantástico, esse ilusionista fazia um truque de mágica e, logo depois, desvelava-o, revelando como era feito por trás das câmeras.

Você encontra a solução perfeita: um curso com uma grande referência naquilo que você adoraria aprender a fazer. Pintar retratos realistas em aquarela ou gerar visualização de dados com Processing, ou ainda fazer seus próprios personagens com vasos de cerâmica. Como em uma performance do Mister M2, aquela pessoa brilhante revelará todos os seus segredos. Assistindo àqueles vídeos, você vai, magicamente, saber como fazer todas aquelas coisas – e mais: ser tão bem-sucedido naquilo quanto aquela pessoa. Melhor ainda que, por tempo limitado, você terá a chance de pagar apenas R$ 19 para ter acesso a 200 cursos com 200 profissionais igualmente invejáveis, e, ainda por cima, na mesma plataforma de ensino. 

Quase sempre, a educação pública é retratada como uma coisa ultrapassada, com professores que só sabem falar, mas não têm experiência prática, enquanto as instituições particulares são dinâmicas, flexíveis e contam com os profissionais mais quentes do mercado para mostrar aos estudantes os truques de mágica acontecendo.

Às vezes, isso não é o suficiente; às vezes, você quer se formar em uma instituição de ensino mais consolidada, uma faculdade mesmo, com mais nome. Então, você procura um curso em uma instituição privada que provavelmente pertence a uma rede global e que tem um currículo altamente padronizado. Para essas escolas, é de grande vantagem que o discurso de “falar é uma coisa, fazer é outra” seja repetido à exaustão, sobretudo quando ele é uma indireta – bem direta –  para as instituições de ensino públicas. Isso se torna ainda mais agudo quando orientado às  indústrias criativas. Quase sempre, a educação pública é retratada como uma coisa ultrapassada, com professores que só sabem falar, mas não têm experiência prática, enquanto as instituições particulares são dinâmicas, flexíveis e contam com os profissionais mais quentes do mercado para mostrar aos estudantes os truques de mágica acontecendo. 

Nos dois casos, o sucesso de vendas não só explora o trabalho dos professores, mas vampiriza o capital cultural construído por eles ao longo de suas carreiras. Assimilar profissionais “do mercado” tem como lógica subjacente: não basta aprender a fazer, é necessário tornar-se tão bem-sucedido quanto aquela pessoa. Não por acaso, boa parte dos anúncios desse tipo de mercadoria se apoia na ideia de “aprender com quem faz”. Isso se articula ao fato de que, no paradigma da educação neoliberal, a formação precisa estar submetida às demandas do mercado de trabalho. 

A educação é, então, uma instância preliminar, subjugada à economia, que deve mimetizar e reproduzir suas dinâmicas. Passa a ser um espaço para “preparar” pessoas para sobreviver a um mercado de trabalho altamente competitivo, cheio de intempéries e relações tóxicas, mas, como num reality show, tudo vai valer a pena pelo prêmio final, o sucesso. Por isso tantos professores mimetizam clientes, utilizam metodologias (duvidosamente) ativas, gestores reforçam a ideia de que a escola é uma empresa e se orgulham de cases de sucesso: projetos estudantis produzidos “de verdade”. A dinâmica disciplinar, no entanto, é diferente daquela de décadas atrás; já que o mercado hoje é brutalmente inovador (leia-se precarizado), segundo a lógica neoliberal, a educação também deve ser.  Como Catherine Dixon mencionou brilhantemente em seu texto O detalhe na tipografia”, produzido pelo Clube do Livro do Design e publicado na Recorte Ano 1 – 2021, “uma educação do século 21 deve formar trabalhadores que sejam matéria-prima igualmente indeterminada e disruptível. Quanto menos situados, melhor”.

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Vale a pena citar o texto de Maria Carvalho, “O designer enquanto anônimo”, na Recorte Ano 1 – 2021, em que ela discorre sobre a ideia de alienação hiperaproximada no trabalho criativo.

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Capital fictícia da Terra de Oz, descrita por L. Frank Baum em O Mágico de Oz.

Não é por acaso que a maior parte das plataformas de ensino são especializadas no trabalho criativo. Essa teia é engenhosamente construída para capturar nosso desejo de realizar trabalhos menos alienados e sonho de viver uma vida mais confortável. A lógica funciona em um moto-contínuo nefasto. Em uma situação angustiante de precariedade, brutal alienação de trabalho criativo3 e profunda ansiedade oriunda da flexibilização, essa armadilha escópica cria a ilusão de que basta consumir esses cursos para se chegar “lá” – a Cidade das Esmeraldas4 do capitalismo tardio.

A realização do trabalho criativo não se dá pela assimilação de informação, mas, sim, pela transformação proporcionada por uma experiência.
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Notas sobre experiência e o saber da experiência, palestra proferida no 13º Congresso de Leitura do Brasil, em 2001. Publicado também no livro Tremores: escritos sobre experiência, publicado pela Autêntica em 2014.

Mas não é. A realização do trabalho criativo não se dá pela assimilação de informação, mas, sim, pela transformação proporcionada por uma experiência. Essas duas coisas, inclusive, são quase contrárias: “a informação não faz outra coisa que cancelar nossas possibilidades de experiência”5, aponta Jorge Larrosa, importante filósofo da educação. A ação de informar – en-formar, pôr em uma forma – evidencia paralelos significativos com o mero processamento e reprodução de dados; se somos en-formados, nossa cognição é concebida como um recipiente vazio que será programado por alguém. Ao assistir videoaulas, frequentemente estamos na posição do espectador passivo, sendo informados.

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Falei sobre esse processo em um outro artigo publicado na Recorte Ano 1 – 2021, “Isso não é uma autonomia”.

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Para um tratamento teórico rigoroso sobre esse assunto, recomendo a tese de Fabiana Oliveira Heinrich, Crítica da experiência como mercadoria no Campo do Design, defendida em 2018 na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ).

A experiência, por outro lado, é radicalmente diferente. No livro mesmo livro, Tremores (Autêntica, 2014), Larossa afique que “a experiência seria o modo de habitar o mundo de um ser que existe (…) que não tem outro ser, outra essência, além da sua própria existência corporal, finita, encarnada, no tempo e no espaço, com outros”. Ao passar por um processo criativo, você compreende, de forma visceral, que falar de experiência só faz sentido quando afundamos nela. Infelizmente, a experiência vem sendo codificada e mercantilizada como todas as outras coisas no capitalismo tardio – tal qual a autonomia6. Em larga medida, graças ao nosso trabalho de design. Há um quê de autoritarismo no pressuposto de que é possível “projetar uma experiência”, ou seja, induzir ou controlar como outros devem se comportar e se sentir em uma determinada situação7.

Quando não há tempo, ter experiências e se deixar afetar pelo que nos cerca se torna impossível. A matéria-prima para criarmos vínculos uns com os outros é o tempo; quando estamos todos no corre, tudo passa por nós, sem nem sequer nos tocar.
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Como falei no texto “Ainda há sentido se tudo está em todo lugar ao mesmo tempo?, publicado na Recorte em junho de 2023, o uso do dispositivo narrativo do multiverso reflete sobre a nossa atenção precária.

Além disso, as condições de espaço-tempo para termos experiências verdadeiras têm se tornado cada vez mais escassas devido ao crescente ritmo com que as mercadorias e informações circulam e com que precisamos reagir a elas. Parece que está tudo em todo lugar ao mesmo tempo8. Você sabe muito bem disso, porque você sente isso na pele todos os dias. Quando não há tempo, ter experiências e se deixar afetar pelo que nos cerca se torna impossível. A matéria-prima para criarmos vínculos uns com os outros é o tempo; quando estamos todos no corre, tudo passa por nós, sem nem sequer nos tocar.

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“Nossa escola”, em Pós-história: vinte instantâneos e um modo de usar (É Realizações, 2019).

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Trecho retirado do livro Esperando não se sabe o quê: sobre o ofício do professor (Autêntica, 2019).

O espaço social tradicionalmente reservado para se viver experiências é a escola. Vilém Flusser aponta que, em sua origem etimológica, scholé significa lazer. “O oposto, ascholia (ausência de lazer)”, ele continua, “significa ‘negócio’ (negação de ócio)”9. Por isso, Larrosa complementa, “não são os economistas e os políticos os que têm a dizer o que é preciso fazer na escola, mas sim são os escolares que têm que dizer à sociedade o que é que eles têm que fazer para que a escola continue sendo escola”10. Esse paradigma, fundado na Antiguidade Clássica, via o pensamento, a teoria e a contemplação como privilégios para quem está livre das amarras do trabalho necessário para a sobrevivência.

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Outra citação do Esperando não se sabe o quê de Larrosa.

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Mais um trecho do Nossa escola, de Flusser.

Ou seja, a escola era o lugar para “se dedicar às mais altas, mais sérias e mais sagradas atividades (…) que consistem, precisamente, em fazer-se por si mesmas, em suspender qualquer finalidade ou qualquer função”11. Entretanto, o que acontece na virada moderna é que “a Revolução Industrial deformou a escola”, diz Flusser. “A escola passou a ser lugar de um saber a serviço do poder (…) passou a ser o lugar da elaboração da ciência e da técnica, e funcionava em prol da indústria, isto é, em prol dos donos das máquinas e das decisões políticas”12. Trocando em miúdos, Flusser está dizendo que a escola passou a se submeter à demanda econômica da burguesia e da demanda política dos estados nacionais – que, no fundo, são muito semelhantes.

Se algum dia foi importante para as democracias burguesas garantir que a educação fosse um direito fundamental, a sua transmutação para mercadoria só demonstra o quanto mais excludente é a exploração neoliberal.
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Em A escola não é uma empresa: o neoliberalismo em ataque ao ensino público (Boitempo, 2019), publicado pela primeira vez em 2003, Christian Laval detalha as características do modelo do neoliberalismo escolar. Para uma análise mais recente no contexto brasileiro, ver Neoliberalismo escolar e processos de subjetivação: como a educação “inovadora” opera?, tese defendida em 2023 por Giuliana Mordente (@andancaseducativas) na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

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Emprecariado: todo mundo é empreendedor. Ninguém está a salvo (Clube do Livro do Design, 2023).

A nova virada neoliberal implica sua privatização e mercantilização. Esse é um passo que a deteriora e a submete ainda mais às demandas econômicas do capitalismo cognitivo. Se algum dia foi importante para as democracias burguesas garantir que a educação fosse um direito fundamental, a sua transmutação para mercadoria só demonstra o quanto mais excludente é a exploração neoliberal13. De lá para cá, a julgar pelas declarações de figuras ultraliberais – como um de nossos últimos ministros da Educação, Milton Ribeiro –, parece que, nos países de capitalismo dependente como o nosso, ela tende a se tornar um item de luxo; basta lembrar que, em 2021, ele manifestou abertamente que “a universidade deveria ser para poucos”.

Como Flusser aponta, desde a Revolução Industrial, a escola não é mais um lugar para ter experiências, contemplar ou celebrar, mas para receber en-formação. Na verdade, em muitos casos, a escola não é sequer um lugar. Ao se misturar cada vez mais com trabalho, a escola reproduz as tendências de precarização que Silvio Lorusso aponta no Emprecariado: “o trabalho pode não ser um lugar, mas os locais de trabalho se multiplicaram e a lógica que os organiza é mais uma vez ditada pelo tempo: o espaço precarizado é o espaço organizado pelo tempo que o empreendedorialismo vivisseccionou”14. Substitua trabalho por escola e a frase funciona do mesmo jeito. O problema é que isso não só destrói um tipo de escola, mas sim que aniquila toda possibilidade de educação emancipadora.

Nem tudo o que é novo é bom e nem toda memória é nostálgica. Precisamos aprender criticamente com o velho a construir o novo. Evoquei a noção clássica de scholé para defender a educação como um lugar próprio, orientado pela curiosidade e pelo aprendizado, não pelas demandas econômicas. Acontece que, no berço dessa ideia, na Grécia Antiga, esse privilégio não era democratizado: a separação entre quem tinha e quem não tinha o tempo para contemplar corresponde à divisão social entre os aristoi – os virtuosos – e o demos – o povo. O ócio e a contemplação eram privilégios de classe. E ainda são.

A igualdade não é atingida quando a colocamos como um objetivo a ser alcançado. Ela é um princípio a ser verificado.
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O mestre ignorante: dez lições para a emancipação intelectual (Autêntica, 2022).

O filósofo Jacques Rancière aponta como essa divisão é reproduzida na educação moderna. A escola, concebida como um lugar onde se transfere conhecimento, na verdade, apenas tende a reiterar a distribuição das pessoas em suas posições sociais e apaziguar as desigualdades: “um meio de conceder aos pobres a possibilidade de melhorar individualmente sua condição e de dar a todos o sentimento de pertencer, cada um em seu lugar, a uma mesma comunidade”15. A igualdade não é atingida quando a colocamos como um objetivo a ser alcançado. Ela é um princípio a ser verificado. Essa, para ele, é a diferença entre uma educação embrutecedora – poderíamos chamar de domesticada – e uma educação emancipadora. O princípio emancipador é o da igualdade das inteligências.

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Esperando não se sabe o quê.

Como sabemos, nossas condições produtivas são radicalmente diferentes daquelas da Antiguidade grega. Mais do que suprir nossas necessidades de sobrevivência, a tecnologia já nos permite superar a escassez e a própria ideia de trabalho remunerado, como Aaron Bastani argumenta em Comunismo de luxo totalmente automatizado (Autonomia Literária, 2023). Todos nós poderíamos viver permanentemente na fruição autônoma da scholé, ou seja, parar de trabalhar: “o que se faz na escola não tem nada a ver com o trabalho (na escola não se trabalha, mas se estuda, e o estudo é ‘aprender por aprender’)”16. Já temos, agora, as condições necessárias para democratizar um espaço que nos permite exercer nosso potencial criativo, nossa autonomia e nossas relações de cuidado através da convivência, do diálogo, da reflexão, da leitura, do descanso e também da diversão. Já deu para sacar – através da experiência.

Então, por que não estamos? É uma pergunta saudável, mas nada simples. Para tentar responder a ela, é preciso tempo livre, disposição e saúde mental – e não temos muito disso só porque o sistema em que vivemos impede que tenhamos. Há uma única certeza: a resposta – a resposta emancipadora – nunca está em menos democracia, mas sempre em mais democracia. Aqui, não me refiro ao sistema representativo e às eleições; me refiro ao acesso universal à saúde e à educação, pleno emprego, jornadas de trabalho menores, cultura e lazer, trabalho de cuidado compartilhado, políticas afirmativas, proteção de dados, dessecuritização da vida, entre outras coisas.

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Recomendo muito o curto e impactante livro Por que os ricos não fazem greve?, de Álvaro Vieira Pinto (Civilização Brasileira, 1962).

Um lema conhecido da luta dos trabalhadores diz: “Trabalhar menos, trabalhar todos, produzir o necessário, distribuir tudo”. Vivemos o contrário disso: trabalhamos muito (muito mesmo!), nem todos trabalham (alguns vivem de explorar o trabalho dos que trabalham17), produzimos coisas insuportavelmente desnecessárias e o resultado do trabalho é brutalmente privatizado. Mudar isso não é uma questão de ter mais formação, com uma educação que apenas prepara para o mercado e transfere conhecimentos em via de mão única. Mudar isso é uma questão de princípio.

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As ilustrações que acompanham este ensaio são de Walter Crane (1845–1915), uma figura fundamental do movimento inglês Arts & Crafts [Artes e Ofícios], em geral atrelado à liderança de William Morris (1834-1896). Além de suas contribuições teóricas e visuais, essa corrente coloca o designer como agente político desde os primeiros impactos da Revolução Industrial.

Walter Crane estava vinculado a diversas iniciativas socialistas e anarquistas – como a Liga Socialista e a Guilda dos Trabalhadores de Arte –, produzindo inúmeras ilustrações para difundir suas ideias políticas. Em especial, há algumas imagens feitas em comemoração ao Dia do Trabalhador, uma data importantíssima e de caráter explicitamente internacionalista. Por conta disso, suas ilustrações, quase sempre integradas a mensagens verbais, foram traduzidas para outras línguas e circularam pela Europa.

Em “Uma guirlanda para o 1º de Maio”, do ano de 1895, a figura de cabelos esvoaçantes à frente da composição veste um barrete frígio, chapéu que se tornou símbolo da luta pela liberdade na Revolução Francesa. A guirlanda de flores é entrelaçada por uma fita inscrita com palavras de ordem como “Produção para o uso, não para o lucro” e “Esperança no trabalho e alegria no lazer”.

Várias das ilustrações políticas de Crane consistem em alegorias – uma solução típica das belas-artes, da qual os artistas gráficos começaram a se autonomizar em fins do século XIX. “O vampiro capitalista”, de 1885, é um excelente exemplo desse recurso e retrata uma criatura monstruosa – composta pela hipocrisia religiosa, capitalismo e política partidária – rapinando um homem; as ferramentas caídas ao seu lado indicam que ele representa o trabalho. Empunhando uma tocha e soprando uma trombeta adornada com a bandeira socialista, uma figura alada parece querer livrar o trabalho das garras do monstro para que, assim, ele possa realizar seu verdadeiro potencial humanista.

Vale contextualizar que estas ilustrações sucedem O Capital, de Karl Marx, publicado em 1867, e antecedem a Revolução Russa de 1917.

As ilustrações que acompanham esse ensaio foram criadas por Laura Morgado (@laura.morgad no Instagram) especialmente para a Recorte.

Talvez por falta de compreensão ou por anseio de mudança, é comum que designers se dediquem à reflexão sobre a natureza de sua atividade. Para constatar tal fenômeno, é suficiente observar, ainda que de forma superficial, os debates que ocorreram ao longo da história do design. O campo é um dos que, com uma curiosa frequência, se coloca como seu próprio objeto de estudo. Faça um teste: abra dois ou três livros de design, mesmo que de assuntos diferentes, e perceba que muitos deles definem o “design” logo em suas introduções. Ora, isso é um sintoma. Pode-se encarar, por um lado, como um sinal de que seus teóricos possuem certa fixação por definições acabadas e dicionaristas – o que é verdade –, mas também é possível que indique uma busca por sua própria identidade, uma forma de se reconhecer enquanto campo. Trata-se de uma área que ainda procura descortinar seus limites, relações e determinações mais gerais. Talvez – e é importante ressaltar que isso não é uma conclusão definitiva – seja porque a teoria do design ainda não tem consensos sólidos que permitam seu avanço científico – exceto, é claro, o fato de que o debate em torno da distinção entre forma e função precisa ser atualizado.

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Importante salientar que por reflexões considero tanto aquelas registradas nos debates teóricos quanto as que surgem espontaneamente nos espaços de formação, trabalho e mesmo nos projetos dos designers.

Outros campos também refletem1 sobre sua própria natureza com frequência. A filosofia, por exemplo, possui uma longa tradição nesse sentido, assim como a arte em suas diversas expressões. No entanto, com a atividade projetual, parece haver uma diferença significativa. Os designers continuamente se importam com a utilidade e o sentido “social” de suas criações. Embora acredite que essa inquietação reflita uma dificuldade em compreender suas próprias potencialidades e limitações, penso que há outro elemento interessante e até mais relevante para o nosso debate: os designers possuem preocupações eminentemente éticas e práticas: “devo escolher este material de menor custo ou aquele mais caro, mas ecologicamente mais sustentável?”; “devo projetar um produto que seja honesto com o usuário ou lucrativo para a empresa?”; “será que o conteúdo para o qual estou dando forma está alinhado com minhas convicções pessoais?” e assim por diante.

Se consideramos que a teoria deve servir como um guia para a ação, também devemos compreender que os problemas teóricos, por mais abstratos que sejam, sempre estão enraizados em problemas materiais. E, como sabemos, não são as palavras, mas sim as ações que dão conta de resolver os problemas com os quais nos defrontamos.
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Reformulação de uma frase de Lênin, teórico e líder da Revolução de Outubro na Rússia, para quem o marxismo deveria ser entendido como um guia para ação, e não um dogma.

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Marx ponderou a esse respeito na segunda tese sobre Feuerbach, publicada no livro ​​A ideologia alemã (Boitempo, 2007): “A questão de saber se ao pensamento humano cabe alguma verdade objetiva [gegenständliche Wahrheit] não é uma questão da teoria, mas uma questão prá- tica. É na prática que o homem tem de provar a verdade, isto é, a realidade e o poder, a natureza citerior [Diesseitigkeit] de seu pensamento. A disputa acerca da realidade ou não realidade do pensamento – que é isolado da prática – é uma questão puramente escolástica”.

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A questão da indiferença política como apologia à ordem dominante está presente na obra de vários teóricos. Paulo Freire, por exemplo, nos diz que “toda neutralidade afirmada é uma opção escondida” (Diálogo com Paulo Freire, de Carlos Alberto Torres, publicado por Edições Loyola, 2003). Já Gramsci, parafraseando um poeta italiano em texto publicado em 1917, acredita que “[…] ‘viver significa tomar partido’. Não podem existir apenas homens, estranhos à cidade. Quem verdadeiramente vive não pode deixar de ser cidadão, e partidário. Indiferença é abulia, parasitismo, covardia, não é vida. Por isso odeio os indiferentes”.

Este é o ponto ao qual quero chegar nesta introdução: as inquietações éticas e teóricas que afligem os designers surgem, com respeitosa frequência, a partir de problemas práticos do seu cotidiano. E isso não poderia ser diferente. Se consideramos que a teoria deve servir como um guia para a ação2, também devemos compreender que os problemas teóricos, por mais abstratos que sejam, sempre estão enraizados em problemas materiais. E, como sabemos, não são as palavras, mas sim as ações que dão conta de resolver os problemas com os quais nos defrontamos. As ideias, do mesmo modo, não gracejam apartadas da realidade. Pelo contrário, em muitos casos, independentemente das intenções de seus autores, elas se defrontam com a realidade das formas mais imprevisíveis3. Portanto, se a ética e as lacunas na definição do que é design vão de encontro à prática, nos são impostas as seguintes questões: como deve ser a ação política dos designers e quais são os seus limites?

O designer que questiona a sustentabilidade de seu trabalho, a honestidade de seu produto ou os propósitos de sua atividade se vê, de uma maneira ou de outra, compelido a adotar uma posição diante do estado das coisas. Na vida social estamos todos implicados, mesmo quando nos omitimos. Afinal, não assumir uma posição já é, por si só, uma posição – talvez uma das mais odiosas, aliás4

Nesse contexto, se a tomada de posição é inevitável, temos de considerar também como ela deve ocorrer. Surge, então, a questão da ação política consciente, que nos leva a mais uma pergunta: quais princípios devem orientar essa ação? Somente a partir dessas reflexões é possível compreender o debate que travamos sobre o reformismo e o liberalismo como conjuntos de ideias e práticas amplamente presentes na ação política dos designers.

Parto da ética em minha exposição tão somente porque é o que muitos de nós fazemos quando decidimos agir politicamente. Além dos nossos interesses de classe, muitas vezes somos movidos por uma inquietação subjetiva diante das injustiças do cotidiano, sejam elas direcionadas a nós ou não. Entretanto, que fique bem claro: considero que a posição ética de cada indivíduo é insuficiente para explicar suas ideologias e, ainda mais, os conflitos sociais. Nesse sentido, ao levantar questões sobre reformismo e liberalismo, não estou falando da ética do design propriamente dita – embora invariavelmente a atravesse. Para nós, marxistas, os dilemas acerca da ação política não são meramente éticos, mas de organização política.

Organização dos designers: um panorama nada positivo

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Trecho extraído do ensaio “Designers ou Militantes Organizados? Notas para um debate, publicado em agosto de 2022 na plataforma Mídia Ninja (midianinja.org).

Sempre que tratamos da ação política consciente, estamos falando de táticas, estratégias, espaços de disputa e debates de ideias. É comum que os designers interessados em atribuir uma “função social” às suas habilidades procurem realizá-la em espaços que lhes pareçam mais adequados ou confortáveis. Nesse sentido, há um aumento de iniciativas na internet que buscam pensar alternativas ao design hegemônico. Páginas de redes sociais voltadas para o tema, grupos de estudo, podcasts, coletivos e uma variedade de produções e projetos estão empenhados nessa empreitada. Embora essas iniciativas sejam importantes, em muitas delas faltam coesão e princípios ideológicos comuns que possibilitem o avanço de seus trabalhos além dos espaços já consagrados da crítica do design. Por isso, coaduno com as provocações feitas por Rafael Bessa: “a criação de peças gráficas com mensagens políticas é, por si só, um design ativista? Pode o design gráfico causar uma mudança positiva na sociedade?”5.

Devido às fragilidades do conteúdo político e à falta de formas organizativas coesas, iniciativas nas redes sociais podem facilmente se transformar em ações políticas meramente performáticas, ou seja, quando o conteúdo se subordina à forma.

Por mais importante que seja a produção de conteúdo digital, considero problemático enxergá-la como o melhor exemplo de como designers podem praticar uma ação política eficaz. Não menosprezo de forma alguma iniciativas que direcionam seus esforços nas redes sociais, pelo contrário, acredito que elas servem como um estímulo importante para que os designers possam produzir de maneira mais inventiva e combativa. No entanto, é necessário questionar: qual é o projeto político subjacente a um design ativista? Devido às fragilidades do conteúdo político e à falta de formas organizativas coesas, essas iniciativas podem facilmente se transformar em ações políticas meramente performáticas, ou seja, quando o conteúdo se subordina à forma.

Em que isso resulta? Justamente na “sinalização de virtude”, que Eduardo Souza aborda em seu texto “Ainda existe design(er) ativista?“, publicado na Recorte Ano 2 – 2022, a partir das reflexões de Jia Tolentino no livro Falso espelho (Todavia, 2020). Com a licença da hipérbole, esse tipo de ação é comparável à Paolla Oliveira pintando uma unha de branco pela paz, só que, em vez da unha, são os cards para redes sociais e, em vez da paz, é convocada a “responsabilidade social” do designer. Acredito que as debilidades dessas iniciativas decorrem principalmente da ausência de uma cultura política organizativa no design. Simplesmente não existem grandes referências de luta, organizações que amparem ações mais combativas ou tradição teórica crítica.

A despeito da ausência da referida cultura política, pode-se argumentar que essas iniciativas promovem um importante avanço na organização e conscientização política. Mas será mesmo? Em que medida essa intenção se concretiza? Quais foram, por exemplo, as grandes pautas unificadas levantadas por designers nos últimos 10 anos? Me recordo apenas da luta pela regulamentação da profissão. O problema é que, sem sindicatos, associações, entidades nem organizações de base, fica difícil saber. A estruturação das pautas da categoria fica à mercê do espontaneísmo dos designers por meio de pequenas iniciativas individuais. Ou, então, do trabalho realizado pelas Associações de Design, que, por sua natureza, possuem um caráter mais institucional e que em muito pouco se constituem como órgãos de classe. Como resultado, não há um trabalho de mobilização ou divulgação em torno de demandas comuns, como melhores salários, condições de trabalho mais dignas, redução do trabalho informal, sindicalização, entre outras.

Poderia ser diferente? Evidentemente que sim. Podemos considerar, por exemplo, as lutas travadas pelos enfermeiros em busca do estabelecimento de um piso salarial no início de 2023. Encampada em nível nacional, houve protestos em várias capitais do país, além de ações de propaganda junto à base da categoria, promovidas pelos sindicatos. Apesar de o STF ter vetado o piso salarial e de os planos de saúde continuarem pressionando para que ele não seja aplicado, a mobilização constante resultou em importantes ganhos políticos.

Compreendo o alerta de Virgínia Fontes, rememorado por Bessa em seu texto, de que “organizações corporativas (que representam uma categoria profissional específica) também são limitadas por sua própria natureza”. No entanto, no campo do design, a situação é de quase completa anomia. Não existem sequer estatísticas que apresentem a condição atual, além disso, pesquisas sobre a situação dos designers são escassas. A maioria dos dados aos quais temos acesso provém de levantamentos realizados por institutos e empresas privadas, que enfrentam problemas de amostragem e confiabilidade. Na verdade, quando se trata de analisar a situação do designer brasileiro, estamos às escuras. Além disso, a teoria do campo carece de uma literatura crítica abrangente que possa orientar a ação política dos profissionais da área. Nesse sentido, iniciativas de pequenas editoras e revistas, como a Recorte, desempenham um papel importante na efervescência do debate crítico entre designers.

O design se coloca como objeto de estudo, mas esquece de estudar a situação dos próprios designers. A produção teórica do campo ainda mantém certa distância dos debates em torno de temas fundamentais, como organização política, processo produtivo, exploração e capitalismo.
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Os motivos para tal distanciamento? Talvez medo, ojeriza, apologia… Embora essa seja uma questão ideológica instigante, ela foge às linhas de nosso debate e por isso não será trabalhada aqui.

O que se depreende desses aspectos é um fenômeno um tanto curioso: o design se coloca como objeto de estudo, mas esquece de estudar a situação dos próprios designers. A produção teórica do campo ainda mantém certa distância dos debates em torno de temas fundamentais, como organização política, processo produtivo, exploração e capitalismo6.

No movimento estudantil de design, a situação não é muito diferente. Trata-se de uma frente de luta que possui uma longa tradição encontrista. O Encontro Nacional dos Estudantes de Design (N Design), por exemplo, já foi considerado o maior evento de design da América Latina e, por 30 anos, reuniu designers de todo o país em um estado diferente a cada edição. Um aspecto muito importante a destacar sobre o N Design é que seu financiamento e organização eram feitos pelos próprios estudantes, assim como os Encontros Regionais (R Design), versões compactas dos eventos nacionais realizados em diferentes regiões do país. Esse fato demonstra um alto grau de maturidade organizacional por parte das entidades de base, capazes de levantar recursos suficientes para realizar grandes atividades. Todos esses eventos eram realizados sob a orientação do Conselho Nacional dos Estudantes de Design (CoNE), que, embora já tenha sido uma entidade deliberativa de nível nacional, hoje funciona como fórum – fato que indica um descenso do movimento estudantil de design –, onde são debatidas as questões mais candentes da universidade pública e do design brasileiro.

Apesar de o movimento estudantil de design ter uma tradição de décadas, ele ainda enfrenta os mesmos desafios de continuidade do trabalho sindical. Existem Diretórios Acadêmicos (DA) de design nas principais universidades do país, muitos dos quais desenvolvem um trabalho exemplar ao organizar semanas acadêmicas, atividades formativas e participar das lutas estudantis. No entanto, devido a diversos fatores, como a pandemia de covid-19 e certa distinção e distanciamento entre o movimento estudantil “comum”, promovido por coletivos, partidos e organizações estudantis e o movimento estudantil de design, essas entidades sofrem com uma capacidade reduzida de mobilização, formação e capilaridade entre os estudantes. Como resultado em médio prazo, o que se desenha é a descontinuidade do trabalho, problema comum ao movimento estudantil devido à sua própria natureza: estudantes se formam, fazem estágios, deixam a universidade. Por exemplo, o N Design, apesar de sua tradição de décadas, já não é realizado presencialmente há mais de três anos. O mesmo se aplica aos R Design.

Entre reformismo e o liberalismo: o design fragmentado

Como compreender, então, essa anomia e os refluxos nas lutas dos designers? Do ponto de vista ideológico, grosso modo, penso que isso pode ser explicado pela predominância de teorias apologéticas, oscilantes, cada vez mais liberais e, quando muito, reformistas. Em termos gerais, podemos considerar que, na teoria do design, entre as décadas de 1970 e 1980, a maioria das produções partilhavam do ideário reformista. O próprio debate em torno da forma e da função é, essencialmente, um debate sobre forma e função da mercadoria produzida em circunstâncias capitalistas. Grandes teóricos do campo, influentes também no Brasil, como Maldonado e Bonsiepe, embora façam críticas importantes, concentram suas discussões em como os designers podem projetar de maneira mais eficiente dentro das condições de produção tal como estão dadas, isto é, da produção capitalista.

As criações da Bauhaus e da Escola de Ulm, embora revestidas de preocupação social, não estavam isentas nesse sentido. Ambas as escolas não funcionaram de maneira homogênea ao longo de sua existência, mas passaram por períodos de maior ou menor avanço político e atividade crítica. Mesmo as discussões sobre ecologia, que ganharam destaque no campo por meio de figuras como Papanek, Manzini e Vezzoli, apesar de suas boas intenções, estão eivadas de uma perspectiva reformista.

Naturalmente, a produção teórica do design nunca foi homogênea, mas aqui estamos lidando com uma questão de hegemonia. Gradualmente, as teses reformistas perderam força, cedendo espaço às perspectivas neoliberais sobre o design. É mais ou menos isso que Iraldo Matias argumenta em sua tese Projeto e Revolução (Editora em Debate, 2014) sobre a “virada gestorial” no campo. Matias sustenta que, desde a metade da década de 1990, a gestão empresarial passou a prevalecer no design, juntamente com o conjunto de ideias liberais atreladas a ela: ênfase no indivíduo e na empresa, enfoque no lucro, na “inovação” e na concorrência. Essa nova abordagem, que combina princípios de marketing e administração, teve profundos efeitos no design.

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Este argumento é defendido por Contino com base em Cipiniuk em sua tese de doutorado na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), Design, ideologia e relações de trabalho: uma investigação sobre a indústria da moda no capitalismo tardio, defendida em abril de 2019.

De maneira semelhante, Contino7 afirma que, devido aos avanços tecnológicos na informática, robótica e inteligência artificial, e às transformações nas formas de realização do trabalho, há quem considere que o paradigma do design mudou: aos poucos, a ênfase passou dos produtos para os processos. Agora, o design não está mais restrito aos objetos, mas se expande como um modo de projetar – um conjunto de métodos e princípios que, para alguns, tem aplicação universal. Aparentemente há um “jeito design” de fazer qualquer coisa que só há pouco foi descoberto: de smartphones a panquecas, tudo pode ser “designeado” em sua execução. Com o design thinking, o design centrado no humano e diversas outras abordagens, a atividade de design se tornou o “campo expandido” da produção. Com isso, paradoxalmente, na minha análise, ocorreu uma fragmentação do design. Com permissão de sua paciência, explicarei.

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Frase presente no livro A ideologia alemã, publicado pela Boitempo em 2007.

Note que, ao nos referirmos ao reformismo e liberalismo no design, até então estamos tratando de aspectos puramente ideológicos. No entanto, as ideias possuem um substrato material; elas correspondem, entre outras coisas, às lutas da vida cotidiana, às posições de classe de seus proponentes, a experiências empíricas etc. Quando Marx e Engels afirmam que “as ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes”8, eles estão simplesmente destacando que essas ideias encontram respaldo material no domínio de uma classe. É a classe hegemônica que controla as grandes editoras, livrarias, produtoras de música e cinema; os principais veículos de comunicação, as redes sociais e também influencia o que é ensinado nas escolas e universidades. Em suma, a classe dominante possui os meios de produzir ideologia. Nesse sentido, a veiculação de suas ideias é muito mais fácil, rápida e convincente do que as ideias revolucionárias da classe trabalhadora. As ideias – e ideologias – das classes dominantes nos parecem quase naturais, por assim dizer.

Tá, mas qual é a relação disso com a fragmentação do design? Se partirmos do princípio de que as ideias estão conectadas a um substrato material específico, a um período histórico e, frequentemente, a determinadas classes, embora esse processo não seja mecânico nem determinístico, devemos então nos fazer a seguinte pergunta: onde estão as causas materiais que explicam a transição do domínio das ideias reformistas para o das ideias neoliberais no design? Em minha opinião, tais causas estão relacionadas ao processo conhecido como reestruturação produtiva do capital, sobre o qual tenho pesquisado atualmente.

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A crise dos anos 1970, chamada por alguns de crise de superprodução, foi multifatorial, assim como qualquer outra. Entre suas principais causas estão o fim do padrão dólar-ouro, os choques do petróleo, a estagnação da produção de bens e a alta inflação de preços ao redor de todo o mundo.

Em termos gerais, desde a década de 1970, ocorreram profundas alterações na forma de acumulação de capital devido à crise que assolou o mundo capitalista9, ao desenvolvimento das forças produtivas, à expansão de novos mercados e do chamado “setor de serviços”. Paralelamente, a produção também passou por transformações. A partir desse período, observa-se uma gradual mudança na composição da classe trabalhadora, com uma diminuição crescente do número de trabalhadores industriais e aumento daqueles dedicados ao setor de serviços.

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Sim, o termo toyotismo deriva da empresa Toyota, considerada uma das primeiras a implementar esse modelo de produção.

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Para explicações mais aprofundadas a respeito do tema, recomendo as obras de Ricardo Antunes e Giovanni Alves.

O desenvolvimento da telemática, informática e robótica alcançou novos patamares com os avanços na microeletrônica. A divisão internacional do trabalho foi então redesenhada com a chegada de uma nova “Revolução Industrial”, que permitiu aos países centrais do capitalismo desenvolverem novas tecnologias, enquanto os países periféricos do sistema capitalista se dedicaram à produção de commodities, como minérios necessários à produção de tais tecnologias e outras mercadorias de baixo valor agregado. Foi nesse contexto que surgiu o que conhecemos hoje como produção flexível, liderada pelo toyotismo10, que foi implementada em várias indústrias, especialmente a automotiva. Esse modelo é o que vigora em grande parte do modo de produção capitalista11 e por isso determina também a produção do design. Vejamos a seguir como algumas características mais gerais do toyotismo se expressam no design.

O toyotismo é norteado pelo estoque mínimo, que faz com que a produção seja realizada conforme a demanda e o consumo, diferentemente do fordismo. Obedecendo a esse princípio, o trabalho do designer ocorre sempre em um contexto em que “tudo é para ontem”, afinal, os produtos são feitos à medida em que são demandados pelos clientes. Por isso, o designer passa a buscar antever padrões de consumo e racionalizar a produção sempre que necessário. Outra característica do toyotismo que podemos encontrar no design é a máxima otimização de tempo e de recursos juntamente com o mínimo desperdício de matéria-prima. Afinal, o bom design é aquele que custa pouco e potencializa modos de fazer, não é mesmo?

A horizontalização da produção também desempenha um importante papel. Trata-se de uma reorganização da divisão do trabalho, na qual pequenas equipes passam a coordenar, simultaneamente, diferentes partes do processo produtivo. Muitas vezes, ela é acompanhada de uma gerência participativa, em que o trabalhador é chamado a decidir sobre aspectos superficiais da produção. Os designers se tornam supervisores de sua própria atividade e são convocados a coordenar diferentes equipes, squads e coisas do gênero, que antagonizam o ultrapassado “modelo cascata” de decisão e obedecem ao que há de mais recente em “método ágil”, “lean”, “scrum”.

Com o toyotismo, a força de trabalho é completamente integrada à produção, inclusive suas possíveis contribuições intelectuais. Não é apenas uma dimensão da força de trabalho – seja material, seja intelectual – que é submetida ao capitalista, mas sim toda a capacidade de trabalho.
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O sindicalismo de empresa ganhou força com a ascensão do neoliberalismo em todo o mundo e é caracterizado pela ausência do aspecto classista e pela adesão à cultura e projeto das empresas. Até mesmo as reivindicações salariais perdem o caráter de classe e de mobilização dos trabalhadores e se tornam negociações de cunho administrativo. O sindicato se torna uma extensão da própria empresa.

A horizontalização demanda também a apropriação do componente cognitivo do trabalhador. Com o toyotismo, a força de trabalho é completamente integrada à produção, inclusive suas possíveis contribuições intelectuais. Não é apenas uma dimensão da força de trabalho – seja material, seja intelectual – que é submetida ao capitalista, mas sim toda a capacidade de trabalho. Assim, os designers têm que se esforçar para o sucesso da empresa dando tudo de si, inclusive sugestões e ideias ditas inovadoras para melhorar a produção, aumentar vendas, melhorar fluxos. O capitalista, sob o pretexto dos hackathons, que nada mais são que períodos de trabalho criativo intensivo e muitas vezes não remunerado, se apropria das contribuições intelectuais de seus empregados, sem ceder a eles qualquer tipo de participação. O mesmo fenômeno se vê através de registros de patentes e propriedades intelectuais. Todos esses processos, por sua vez, resultam na flexibilização dos direitos trabalhistas, que faz com que práticas como terceirização, subcontratação, contratação temporária e sindicalismo de empresa12 tornem-se comuns. No design, isso se reflete no crescimento de sindicatos empresariais e da pejotização – contratação de pessoas jurídicas (PJ) também conhecidas como freelancers. Desse modo, a chamada empresa enxuta ganha força: a parte variável do capital – ou seja, os salários – é reduzida em detrimento do capital constante, que é gasto com meios de produção, como maquinário, insumos, instalações e ferramentas. Em geral, são empresas com alto índice de automação e tecnologia que buscam diminuir cada vez mais seus gastos com trabalhadores, o que se reflete, por exemplo, nas recorrentes demissões em massa – gentilmente chamadas de layoffs – que frequentemente afetam designers.

Por tudo isso, acredito que os processos descritos por Matias – a chamada “virada gestorial” no design – e por Contino – a transição do paradigma do “produto” para o “processo” no design – não são fenômenos meramente ideológicos. Pelo contrário, são resultados das transformações que ocorreram em toda a sociedade e, consequentemente, também no campo do design. Não é por acaso que o crescimento da literatura gestorial e de caráter neoliberal no design coincide mais ou menos com a ascensão de governos neoliberais em todo o mundo em meados das décadas de 1970 e 1980.

O jogo fantasioso do “tudo é possível, basta que você projete!”; a ênfase na empresa como solucionadora de problemas sociais; a ilusão do designer como parte essencial da gestão capitalista; tudo isso tem sua razão de ser na nova produção flexível. Para se apropriar integralmente do componente cognitivo do trabalhador, a empresa deve fazê-lo sentir-se parte dela, vender a ideia de que ele é um “colaborador”, “quase da família” e enfim seduzi-lo a “vestir a camisa do time”. Mais que tentadora, essa manobra ideológica é necessária para que ele venda tudo de si, até mesmo aquelas capacidades que a princípio não estavam no contrato, mas que acabam por se transformar em horas extras e abnegação. A empresa então aparece, pela primeira vez, como um polo aglutinador da ideologia dominante, e a exploração vira um valor a ser autoimposto pelo trabalhador.

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Löbach, em sua famosa obra Design industrial: bases para a configuração dos produtos industriais (Blucher, 2001), argumenta indevidamente que a teoria crítica considera o design uma espécie de “droga milagrosa”, cuja única serventia seria tornar tudo vendável. Acontece que no capitalismo todo produto é também uma mercadoria. Desse modo, Löbach e parte da teoria do design, ao ignorar as determinações mais estruturais que agem sobre os produtos-mercadorias, em lugar de verem o design como uma droga milagrosa, veem o milagre do design.

Ao mesmo tempo, o design é vendido como uma “droga milagrosa”13 e seu “modo de pensar” é diluído como elemento organizador de toda produção. Efeito também da aplicação do lean e do design thinking, que nada mais são que resultados do toyotismo e seus princípios flexíveis de horizontalização, especialização e distribuição dos núcleos decisores e gestores.

Por isso, sustento que o paradigma do processo no design, embora se encontre embebido de ideologia neoliberal, não é senão reflexo de mudanças efetivas no próprio design. É preciso se livrar da ebriedade para se alcançar a sobriedade, o que não significa que o que um indivíduo faz quando está ébrio seja apagado quando está sóbrio. De semelhante maneira, por mais que sejam vendidas doces ilusões, mentiras e doses homeopáticas de liberalismo em todo design thinking, método lean e demais psicotrópicos que registramos por aí, é preciso compreender em que medida, por debaixo de todo efeito alucinado – e ideológico –, eles refletem processos reais que operam no design.

Se olharmos do ponto de vista do capital, o paradigma do processo no design se manifesta na expansão dos princípios e métodos do design para toda a produção, com especial destaque para a chamada “indústria criativa”. Por outro lado, do ponto de vista do trabalho, a aplicação do processo do design à produção apenas reafirma a polivalência do trabalhador, ou seja, sua capacidade multifuncional. Aliás, esta é outra característica da produção flexível: a necessidade, em determinados setores, de trabalhadores que possuam habilidades múltiplas e que desempenhem diversas funções simultaneamente em nome do bom funcionamento da produção.

Embora reine a automação nas terras da produção flexível, o trabalho humano ainda é necessário em certo grau, afinal, é ele que cria valor. Além disso, em muitos casos, as máquinas substituem apenas parte das capacidades da força de trabalho. É evidente que as tarefas restantes, se ainda forem necessárias, não deixarão de ser realizadas e, portanto, serão atribuídas aos trabalhadores que permanecem empregados. Com as recentes inovações em automação, como a inteligência artificial (IA), é possível que muitos designers sejam dispensados, mas aqueles que permanecerem assumirão algumas das funções que a IA ainda não consegue desempenhar, o que, em vez de diminuir, aumentará a intensidade de suas atividades. É que, no capitalismo, o aumento da produtividade proporcionado pelo avanço das forças produtivas, como a tecnologia, não é utilizado para aumentar o tempo livre do trabalhador, mas sim para demandar mais trabalho dele. Portanto, a chamada polivalência do trabalhador, que exige que ele desempenhe múltiplas funções, não é uma quebra na divisão do trabalho, mas um rearranjo dela no seio da produção capitalista.

Um bom exemplo da polivalência do trabalhador é a eliminação da categoria de cobradores (ou trocadores) de ônibus em muitas cidades do país, que obrigou os motoristas a manipular o dinheiro das passagens e informar destinos. Essa multifuncionalidade é uma necessidade da empresa enxuta. De modo semelhante, no campo do design, isso significa que designers precisam se tornar administradores, profissionais de marketing, desenvolvedores e assim por diante, sem que com isso deixem de ser designers. Para comprovar essa afirmação, basta observar os anúncios de emprego no setor.

Como contribuição a outros ofícios, a atividade projetual legou seu processo criativo. Se designers precisam ser publicitários, publicitários também haverão de ser designers, ao menos em alguma medida. Tanto quando as funções dos designers são desempenhadas por outros profissionais quanto quando seu processo de trabalho passa a integrar a atividade produtiva de modo geral, um grau de polivalência nunca antes visto é exigido. Talvez, por isso, vemos brotar, em todos os lugares, “designs” de todos os tipos – unhas, bolos, sobrancelhas –, não apenas como uma forma de diferenciação entre a infindável concorrência, mas também como um sintoma da fragmentação do próprio design. Aquilo que se fragmenta perde forma, e, com ela, definição. Hoje, tornou-se mais complexo do que nunca apreender as problemáticas de organização no design em consequência da impossibilidade de traçar os seus próprios limites. Nesse mesmo sentido, a dificuldade que os teóricos do design têm para definir a atividade projetual, mais do que das suas debilidades ou preocupações éticas, deriva das relações de produção postas em movimento pelo capital e que, por sua vez, afetam o design.

Por Laura Morgado.

Classe em si, classe para si e o design na encruzilhada liberal

Em alguns momentos, Marx tratou daquilo que chamou de “classe em si” e “classe para si”. A primeira refere-se a uma classe que é caracterizada apenas por sua posição no processo produtivo, sem compartilhar valores ou uma consciência de classe em comum. Já a segunda diz respeito a uma classe que compreende seus interesses históricos e os defende ativamente, que se volta “para si”. Os indivíduos que a compõem não estão unidos apenas pelos aspectos do trabalho diário, mas também por uma consciência política desperta e por demandas políticas. A burguesia, por exemplo, é essencialmente uma classe “para si”, pois compreende seus interesses históricos e age de acordo com eles, ao contrário do proletariado, cuja elevação do nível de consciência de classe depende de condições econômicas, políticas e sociais específicas, da ação política organizada etc.

Existem categorias de trabalhadores que, por diferentes motivos, têm maior propensão a desenvolver consciência de classe do que outras. Vários fatores influenciam nesse processo, como as condições de vida da categoria, os salários, o histórico de organização, as condições de trabalho, entre outros. Por exemplo, na década de 1970, os metalúrgicos encamparam a vanguarda de uma série de greves em todo o Brasil. Essa é uma cultura bem estabelecida entre esses operários. Mais recentemente, podemos pensar nos enfermeiros, já citados neste ensaio. Mas e os designers? Bem, os limites da organização dos designers são os limites do próprio design. Devido à fragmentação resultante da reestruturação produtiva após 1970, considero que os designers mal constituem uma categoria de trabalhadores “em si”, quanto mais “para si”.

Um fenômeno cada vez mais relevante e que dificulta a organização dos designers é a espacialização do trabalho. O trabalho remoto, apesar de trazer benefícios, cria obstáculos para que as relações entre os trabalhadores floresçam com mais espontaneidade. O que, por sua vez, prejudica a união em torno de reivindicações comuns e reduz as possibilidades de agitação política. Não há sequer meios de produção diretos a serem paralisados. O que um designer que trabalha remotamente pode fazer? Sabotar arquivos do Figma? Embora isso possa ser considerado uma forma de ação, está longe de ter os efeitos práticos e os ganhos políticos de uma greve ou de um piquete tradicional. Esse impasse evidencia como a organização dos designers como categoria exige inventividade e circuitos de ação política que vão além dos métodos tradicionais.

Nesse mesmo sentido, a divisão do trabalho em pequenos núcleos decisórios mina a capacidade de fazer pesar a correlação de forças em favor da categoria. Uma reivindicação levada a cabo por quatro ou cinco designers não tem a mesma força que outra carregada por 100 ou 200. A fragmentação do trabalho significa a fragmentação da própria capacidade de organização do trabalho diante do capital. Marx e Engels sempre alertavam para o fato de que a simples reunião de grandes contingentes de trabalhadores em um único espaço constituiu uma revolução sem precedentes nos processos de trabalho. Dessa forma, a retirada do trabalhador de seus espaços coletivos pode significar a perda da própria coletividade, que é essencial para a defesa de seus interesses diante dos ataques do capital.

Estou ciente dos benefícios das novas formas de trabalho, como o trabalho remoto, que, aliás, já está sendo revisto no mundo todo, até mesmo por empresas como a Zoom, ironicamente. No entanto, é importante considerar que elas permitem aos designers que trabalhem no conforto do lar, se tornem “nômades digitais”, mas também estrangulam outros com jornadas de trabalho incessantes. A mesma produção flexível que afeta o “home office”, afeta também o trabalhador precarizado da Uber. O perigo, nesse caso, mora na compreensão unilateral do fenômeno.

O fim do trabalhador coletivo é o apogeu do indivíduo. A sugestão de saídas individuais para questões sociais não serve aos designers. A apoteose do “mérito” individual, do mercado que se “autorregula” e da empresa como solucionadora de problemas sociais funcionam apenas como mecanismos de desarticulação da ação política coletiva e consciente. Afinal, os problemas da fome ou do desemprego não se resolvem com aplicativos.

O fuzil de Haug: um problema de determinação

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Termo utilizado por Rafael Cardoso em Design para um mundo complexo (Ubu, 2022), onde acertadamente afirma que “não é responsabilidade dos designers salvar o mundo, como clamavam as vozes proféticas dos anos 1960 e 1970, até porque a crescente complexidade dos problemas demanda soluções coletivas”.

Os ideários do designer como gênio individual e do projeto-todo-poderoso são falsos remédios para doenças verdadeiras. Acontece, no entanto, que estamos tomando doses cavalares dessas drogas. E por quê? Porque é mais fácil acreditar que os problemas do “mundo complexo”14 podem ser resolvidos com decisões individuais de designers bem intencionados do que lidar com a fragilidade do design diante das misérias postas em movimento pelo moinho de moer gente que é o capital.

Daí surge o outro lado do problema: a escolha dos designers pela reforma em vez da revolução – a opção pelo ativismo em vez da militância, por trabalhos dispersos e descontínuos em detrimento do compromisso com um projeto político de poder e assim por diante. Normalmente, quando os designers buscam realizar um “trabalho social”, eles procuram alterar as formas que configuram as mercadorias, ou seja, os métodos, materiais e processos utilizados. A ação política, portanto, ocorre dentro dos marcos da produção capitalista, sem haver um sentido de ruptura.

Ainda que em certos casos os designers se inclinem em favor do reformismo ou do liberalismo conscientemente, existem situações em que essa predileção indica um cenário em que a ação política não é orientada por ideias bem definidas e objetivos sólidos e duradouros. Nesses casos, os designers apenas adotam o conjunto de ideias mais difundido, em conformidade com as ideologias das classes dominantes. Como resultado, tem-se uma ação política instável e descontínua. Vejamos essa questão mais de perto com base nas contribuições da crítica estética da mercadoria.

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Ou seja, para a realização de seu valor de troca. Haug faz um debate a partir da teoria do valor-trabalho exposta por Marx em O capital.

W. F. Haug, embora seja um autor pouco traduzido no Brasil, possui um livro pioneiro na crítica do design intitulado Crítica da estética da mercadoria (Editora Unesp, 2001). Nele, o autor apresenta o conceito que dá nome à obra, ao afirmar que o capitalismo torna a estética um meio para a venda da mercadoria15. Haug argumenta que designers, publicitários e marqueteiros têm a função de seduzir os clientes e estão diretamente envolvidos com a estética da mercadoria. Em sua exposição, ele reflete a respeito de temas como valor de uso, valor de troca, produção capitalista e socialista, usando exemplos que ajudam a dar força aos seus argumentos. Embora a obra de Haug apresente uma argumentação bastante criativa – e por vezes obscura –, não são esses aspectos que desejo destacar.

A certa altura, o autor aborda a questão da persistência da estética da mercadoria no socialismo e argumenta que criticá-la não é o mesmo que repudiar o embelezamento das coisas e as técnicas empregadas em sua produção. Para ele, confundir a crítica da estética da mercadoria com o embelezamento dos produtos seria “uma atitude semelhante ao pacifismo em sua branda inconsequência, recusando por princípio a violência, sem se importar se ela é opressiva ou libertadora”. A partir dessa analogia, o autor desenvolve uma metáfora que considero de grande relevância para o nosso debate e, por essa razão, reproduzo a seguir o trecho na íntegra.

É diferente se um fuzil é usado como meio em uma guerra imperialista ou se é usado em uma guerra de libertação. Não se percebe isso no fuzil. A impressão sensível, passivel de ser copiada e multiplicada, não mostra o essencial aí oculto, servindo conseqüentemente para encobri-lo. […] A diferença, quer se trate de uma guerra de libertação, de um massacre imperialista ou de um latrocinio, não é visível no fuzil. Falar contra o imperialismo não significa falar contra os fuzis, mas munir o front de libertação com fuzis e fazê-los falar contra o imperialismo.

A alegoria do fuzil apresenta uma imagem bastante evocativa, mas é apenas um exemplo. Se considerarmos seu sentido mais amplo, essa passagem torna-se ainda mais provocante. Por exemplo, o que podemos depreender dela em relação à problemática da política e dos limites do design? Com frequência, quando os designers buscam se posicionar politicamente, tendem a acreditar que a politização de seu trabalho está centrada nos métodos de projeto, na utilização de abordagens mais democráticas e inclusivas, na adoção de uma linguagem ética, na utilização de materiais sustentáveis, entre outros. No entanto, essa inquietação restringe-se a escolhas de projeto puramente individuais. Essa posição é semelhante àquela do pacifismo descrito por Haug, que, diante das circunstâncias sociais de um conflito, não passa de uma postura desmobilizadora ou, na melhor das hipóteses, pouco eficaz.

Qual o modo mais “humanizado” de se projetar um fuzil, caro leitor? Um fuzil, se projetado de maneira “humanizada” pelo designer, continuará a disparar balas tão letais quanto aquele que resulta de uma produção convencional. Ora, embora os fuzis contenham as mesmas funções vitais a despeito do modo que foram projetados, são radicalmente diferentes aqueles que muniram o front argelino dos que municiaram o front francês na ocasião da Revolução Argelina, por exemplo. Para os argelinos, a arma serviu como forma de lutar pelo reconhecimento do estatuto de pessoas humanas, como meio de afirmar a soberania da nação e de negar o colonialismo. Já para os franceses, a serventia da arma encontrava-se na negação dos direitos humanos dos colonizados e na manutenção do jugo sobre a nação flagelada. Entendo que a princípio esta pode parecer uma conversa que nada tem a ver com design, no entanto, perceba um elemento fundamental do meu argumento: os objetos em questão eram os mesmos – fuzis –, e ainda que fossem empunhados nas mesmas circunstâncias históricas, os motivos políticos de seu uso diferiam radicalmente, e isso faz toda diferença.

a efetividade da ação política não implica necessariamente projetar de maneira diferente da habitual, mas sim atribuir um sentido radicalmente distinto às circunstâncias de produção e à circulação dos projetos
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Embora essa afirmação possa soar demasiada rude para alguns designers, trata-se de forma e conteúdo políticos, e não no sentido costumeiramente empregado no design. Além disso, o reconhecimento de ser o conteúdo o aspecto determinante da ação política não significa, de modo algum, diminuir a importância da forma. Trata-se apenas da ênfase no que constitui o “momento predominante” da ação política. Por fim, há de se ter em mente que se a forma carente de conteúdo é performática, o conteúdo pobre de forma é ineficaz.

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Tomás Maldonado em El diseño industrial reconsiderado, publicado em Barcelona, 1977 (tradução minha).

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Economismo é a tendência no movimento operário que restringe as lutas dos trabalhadores a uma dimensão econômica meramente reivindicativa e imediata: melhores salários, melhores condições de trabalho etc. A importância da teoria revolucionária, das reivindicações e organizações políticas são ignoradas. Por isso, chama-se de economismo o movimento que fica a reboque do espontaneísmo das massas no terreno econômico. O termo ganhou fama através de Lênin em sua obra Que fazer?.

Note, portanto, que o aspecto determinante dos objetos e da ação política muitas vezes não estão nas suas formas, mas sim em seus conteúdos16. Mas como essa afirmação nos oferece algum indício sobre o sentido que a ação política do designer deve assumir? Na maioria dos casos, a efetividade dessa ação política não implica necessariamente projetar de maneira diferente da habitual, mas sim atribuir um sentido radicalmente distinto às circunstâncias de produção e à circulação dos projetos. O segredo, nesse caso, não está no método em si, mas nos fins a que ele serve. É uma questão, sobretudo, de conteúdo político. Vale ressaltar, entretanto, que há diversos casos em que mudanças de método, de processos e de materiais resultam, por si mesmas, em alterações no sentido político de determinada produção.

Maldonado afirma que “geralmente, o designer, imerso na rotina de sua profissão, não consegue perceber o impacto efetivo de sua atividade na sociedade”17, mas ao imbuir seu trabalho de propósitos políticos, frequentemente o faz com base nessas mesmas intuições, restringindo-se a uma espécie de protoeconomismo18, e, por essa razão, não ultrapassa o imediatismo da produção na qual está inserido. O que significa, em outras palavras, que, ao superar a perspectiva liberal e todo o individualismo desmobilizador e apologético, o designer não avança para além do reformismo. Ora, se uma das funções do designer é otimizar processos e produtos, quando ele abraça a “preocupação social”, mas se abstém de confrontar os aspectos determinantes da produção – isto é, não assume uma oposição clara e definida aos aspectos estruturais do capitalismo –, ele simplesmente continua otimizando processos e produtos dentro da mesma lógica. Vejamos um breve exemplo.

Em 2020, o documentário O dilema das redes, lançado pela Netflix, ganhou fama ao expor como as redes sociais são projetadas para lucrar a partir dos dados de seus usuários. Logo nos primeiros minutos, somos apresentados a um “ex-designer ético” do Google – aparentemente, este é o nome do cargo que ele ocupava – que questiona por que a empresa não se preocupa em tornar o Gmail, um de seus inúmeros produtos, menos viciante. O filme apresenta diversos profissionais da área de tecnologia que, assim como ele, se arrepiam diante da sanha por lucro das empresas e como elas, na prática, ignoram questões éticas. No entanto, sempre que perguntados onde está a causa de tamanhos absurdos denunciados, ficam atônitos, sem saber explicar.

Se o diagnóstico é errado ou insuficiente, o remédio também será. Dos personagens que nos são apresentados, apenas uma delas tem a franqueza de afirmar que esse mercado, o das big techs, não deveria existir, pois assim como a escravidão, faz das pessoas, mercadorias. Os demais se detêm a argumentar que o problema não é o lucro, mas a falta de regulamentação, e, portanto, apostam na hipótese reformista.

Não é que a regulamentação das redes sociais não seja importante, mas este debate precisa estar conectado à totalidade social. Sem compreender questões relacionadas à classe, ao Estado e à exploração, a totalidade social desvanece e o que sobra como opção é justamente a costura, o remendo no tecido do real, e assim a política se reduz ao que é possível agora, neste instante. Assim, aquele mesmo ex-designer ético do Google, que conhecemos no início do documentário, decidiu, talvez movido pelos melhores impulsos éticos, fundar uma organização sem fins lucrativos chamada Center for Humane Technology. Entre os financiadores dessa organização, encontramos think tanks e fundações de longa tradição liberal, que têm contribuído historicamente para promover golpes de estado ao redor do mundo. Esse é somente um exemplo de como, quando a posição política abdica de uma perspectiva de classe, muito facilmente se enrosca entre o liberalismo e o reformismo.

Por isso, não é uma simples alteração na forma ou a adição de uma função que torna a ação de um produto contestatória. Alterações nos aspectos epidérmicos da produção capitalista, mesmo quando em acordo com as intenções dos designers, muitas vezes satisfazem apenas à necessidade de aprimoramento, diversificação de mercadorias ou maior atratividade para determinado nicho. Trata-se, assim, de uma diversidade na unidade do capital.

A crítica é aceita e bem recebida [pelo mercado] desde que seja feita no sentido de reformar ou reforçar a ordem dominante, e não seja, portanto, radical a ponto de denunciar as raízes dos problemas.
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“Democracia burguesa” diz respeito a Estados em que a burguesia está no poder e faz uso despótico dele para garantir seus interesses de classe.

A própria política contestatória é suscetível de ser mercantilizada. Existem produtos “socialmente responsáveis”, palestras, cursos e ideias que podem ser comercializados com uma roupagem crítica. Aliás, a própria democracia burguesa19, em certo grau, exige isso para manter a política contestatória sob suas rédeas. É por isso que o mercado, em determinadas circunstâncias, demanda a liberdade criativa e crítica do designer, pois vende bem a determinado público. No entanto, tal proatividade nunca pode ultrapassar certo limite. A crítica é aceita e bem recebida desde que seja feita no sentido de reformar ou reforçar a ordem dominante, e não seja, portanto, radical a ponto de denunciar as raízes dos problemas. Em última instância, meu argumento é que a ação política que busca “humanizar” a produção capitalista não logrará sucesso se considerar os aspectos mais degradantes do capital como meras contingências, como erros a serem superados mediante reformas ou ações individuais.

As destinações dos produtos e os limites da ação política no design

Quando o domínio da burguesia se apresenta como coisa dada, natural, a história é submetida ao eterno desagravo do capital: propriedade privada, Estado e mercado parecem ser partes intrínsecas da humanidade, assim como a forma capitalista de projetar produtos, que nada mais são do que mercadorias.

Os produtos parecem sempre gozar de uma forma perfeita e acabada e só apresentam sua historicidade na medida em que saem do processo de produção, circulação ou consumo. Somente quando já não são mais mercadorias propriamente é que insinuam ser parte da história. O que determina, por exemplo, que uma rede social deve ter rolagem infinita? Por que o conteúdo exibido na linha do tempo deve ser personalizado para cada usuário por meio de algoritmos cujo único objetivo é mantê-lo mais tempo diante das telas? Por que os smartphones são da forma que são? E os carros? Nada disso está escrito em pedra, mas parece estar. No fim das contas, são escolhas projetuais que obedecem aos ditames não só da utilidade (valor de uso), mas também, e sobretudo, da estética da mercadoria (valor de troca). As destinações dos produtos só parecem imutáveis apenas porque o modo de produção capitalista se apresenta dessa forma. Em última instância, as formas do projeto correspondem às formas de produção.

É estranho um design que pretende ter aspectos políticos de contestação, mas que apenas reproduz algum dos objetivos do capital: produção de mais-valia, lucro ou consenso ideológico. Do ponto de vista teórico, a dificuldade dos designers de irem além do reformismo pode ser explicada, talvez, pelo fato de que a área é frequentemente compreendida apenas a partir de práticas institucionais e empresariais, de grandes escolas e grandes designers e de métodos ditos revolucionários. Basear a análise nesses aspectos, implica, em muitos casos, ignorar as manifestações concretas e cotidianas do design, que residem nas tímidas e muitas vezes ocultas relações de produção. Tudo isso dificulta a compreensão das potencialidades políticas do design.

Ora, como vimos com Haug, o anti-imperialismo não se encontra na impressão sensível do fuzil. Da mesma forma, o aspecto determinante – em termos de política de classe – não reside necessariamente nos produtos em si, mas sim em suas destinações políticas. Isso, naturalmente, não significa que o modo de projetar não tenha importância; entender as coisas dessa maneira seria concebê-las de forma unilateral.

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Se assumimos a centralidade do conteúdo de classe na ação política consciente, em algum momento teremos que travar discussões no campo a respeito do conteúdo político do que se compreende como um design ativista, atado muitas vezes ao referido reformismo, e práticas inconstantes, por um lado, e o design militante, que exige projeto político, constância e disciplina, por outro.

O aspecto determinante não está na forma de conceber o fuzil, mas sim nas circunstâncias em que seu uso político ocorre. O mesmo princípio se aplica a panfletos, jornais, posts em redes sociais, vestuário e tudo mais que se possa imaginar. Todos esses são produtos do cotidiano, que podem muito bem estar inseridos em uma produção de design político e contestatório. O que vai determinar sua validade, nesses termos, é puramente o seu conteúdo de classe20. Afinal, se reconhecemos a insuficiência de escolhas éticas individuais de consumo como economizar água, usar transporte público, comprar de empresas sustentáveis etc., por que haveríamos de acreditar na eficácia de escolhas individuais de design para solucionar problemas sociais? Fazer o revolucionário, nesse caso, é fazer o básico: não necessariamente projetar novos produtos com extraordinários e entusiasmantes métodos e materiais, mas sim responder às demandas políticas de classe mais prementes.

É no panfleto, no vídeo, no jornal, na denúncia e na criação cotidiana em que se encontra o design que partilha de uma perspectiva de classe. Não me entenda mal, com isso não estou querendo defender que os designers não busquem inovar em sua produção, implementar novos métodos, escolher diferentes materiais, criar novos produtos ou repensar sua relação com os usuários. Tampouco que esses são aspectos irrelevantes na ação política do designer. Apenas destaco que tudo isso deve estar submetido a um projeto político consciente, do contrário, ao agir de modo espontâneo e irrefletido, abre-se caminho para o reformismo ou para uma perspectiva liberal da política e do próprio design.

Não se trata de falar contra a estética, mas de pô-la a nosso serviço. A adesão do designer à hipótese revolucionária requer uma ética projetual e uma atenção especial à forma política que ele ajuda a expressar. Ética, política e projeto, nesse caso, passam a fazer parte de uma tríade. Por isso, a busca por metodologias alternativas e coletivas, o questionamento sobre os melhores materiais a serem utilizados, assim como a preocupação com a maneira pela qual o produto se apresenta ao usuário e como este se relaciona com aquele, tornam-se quase naturais. Essa perspectiva revolucionária exige, desse modo, um novo compromisso com o caráter pedagógico e com a inventividade – ou inovação, se preferir – da atividade projetual.

Apesar disso, é importante não ter a ilusão de que há uma solução projetual para problemas estruturais como o acesso à moradia, alimentação, transporte público e emprego. A solução é política, prática e concreta, e, portanto, vai além do âmbito do projeto, embora o abarque. Os designers devem aprender a reconhecer os limites do design – esse é o primeiro passo. Aqueles que se inclinam para a prática de um design não hegemônico, crítico ou revolucionário devem compreendê-lo como um instrumento relacional cuja eficácia política está associada a uma ação política concreta e de classe. O dever dos designers revolucionários não é fazer a revolução no design, mas o design da revolução.

Os textos que integram a coluna Design Radical são co-editados por Rafael Bessa e são complementares ao artigo homônimo publicado na Recorte em maio de 2021. Os autores convidados por ele exploram as diferentes formas em que o design se relaciona com as condições de produção, as outras áreas do conhecimento e a conjuntura política de seu contexto histórico.