fbpx
Para continuar independente, a Recorte conta com o apoio de Conheça Edgard Kozlowski
Assine Menu
20 de setembro de 2022

Ainda existe design(er) ativista?

Colagem cedida por Eduardo Souza (@souzaeduardo no Instagram e no Twitter).

1

Além de editor desta coluna, Rafael também escreve para a coluna “Design Ativista” da Mídia Ninja. Sua contribuição, sobretudo o texto Designers ou Militantes Organizados? Notas para um debate, é fundamental aqui.

Aqui vou tratar da crença compartilhada por muitos de nós, designers, de que é possível fazer um design ativista por meio das redes sociais. Meu entendimento é o mesmo de Rafael Bessa1: “a expressão concreta de um design politizado tem se reduzido a designers isolados criando peças gráficas com mensagens políticas para as redes sociais”. Nesse sentido, este texto será uma tentativa de debater a pergunta feita por ele: “a criação de peças gráficas com mensagens políticas é, por si só, um design ativista?” Isso me parece particularmente importante considerando que boa parte do “debate público” se dá por meio das plataformas de mídia que medeiam nossas relações sociais. 

Primeiro, descartemos a resposta mais tosca: invalidar toda expressão nas redes sociais como “ativismo de sofá” e, portanto, inútil. Achar que a solução é, simplesmente, “sair” dessas plataformas e fazer as coisas no “mundo real” é demonstrar incapacidade para contemplar como se dão os fenômenos de comunicação hoje. Nos anos 1990 ainda dava para acreditar que havia uma distinção dura entre o “mundo da web” e o “mundo real” – mas isso ficou lá. Ainda que alguns de nós assumamos todos os prejuízos de nos excluir dessa esfera da vida social e optemos por não estarmos ativamente deslizando o dedo nesses caça-níqueis, essas plataformas são um fato material na nossa sociedade. As consequências de sua presença impactam na nossa vida mesmo que não façamos parte dela.

2

Onde houver “poético”, você pode ler como “artístico”, como dizemos em termos corriqueiros. Uso esse termo por uma filiação teórica que não valeria discutir aqui.

Dito isso, acho que seria frutífero pensar historicamente a comunicação ativista. Basicamente, vou defender o seguinte: entre os anos 1900 e 1960, aconteceu tanto uma deterioração quanto um esvaziamento da ideia de que a criação artística (que chamo de poética2) levaria à realização de um outro mundo. Hoje, no realismo capitalista, somos só assombrados por esse fantasma.

Ainda que alguns de nós assumamos todos os prejuízos de nos excluir dessa esfera da vida social e optemos por não estarmos ativamente deslizando o dedo nesses caça-níqueis, essas plataformas são um fato material na nossa sociedade.

Lá no começo do século XX, as vanguardas – tanto as artísticas quanto as construtivas – concordavam com a premissa de que aquilo que produziam seria o horizonte em direção ao qual caminharia a sociedade moderna, com ajuda da industrialização. A criação poética não mais se diferenciaria da vida cotidiana. Naquele contexto, havia boas razões para acreditar nisso: o modo de produção da cultura material foi e continuava sendo revolucionado, alterando o modo de vida dos territórios mais urbanizados. Aí aconteceu algo que demonstrou o potencial daquilo que tinham como premissa: a Revolução Russa. 

3

Mais sobre isso no texto de Kelvin Falcão Klein para a Quatro Cinco Um #34, Revolucionário (mas sem a palavra revolução).

Para que ela acontecesse em 1917, é óbvio que o rolê começou bem antes. Em 1902, foi publicado O que fazer?, livro em que Lênin estabeleceu as bases do trabalho que condicionariam a derrubada do czarismo e a tomada de poder pelos bolcheviques – a relação entre a criação poética e a criação de uma realidade social é tão explícita que o título é uma citação direta do romance de Nikolai Tchernychevski3.

O que me parece mais informativo é a atenção que Lênin dedica à comunicação política, partindo da distinção entre agitação e propaganda – que, na Rússia soviética, foram aglutinados no termo agitprop

Hoje, quantos de nós, trabalhando com comunicação, podemos dizer que acreditamos naquilo em que empregamos nosso tempo de vida?

Que o czar tenha perdido a cabeça deve ser demonstração o suficiente do quanto essa estratégia foi efetiva. Arrisco dizer que a característica da comunicação que garantiu seu sucesso é que ela era  completamente indissociável da ação direta, das estruturas organizativas e do posicionamento político daqueles que a praticavam. Os artefatos produzidos eram a materialização da existência daquelas pessoas – suas vidas, literalmente, estavam calcadas naquelas ideias. Ao contrário do que ocorre hoje, o trabalho de comunicação não era alienado: quem produzia a comunicação vivia aquilo que comunicava. Hoje, quantos de nós, trabalhando com comunicação, podemos dizer que acreditamos naquilo em que empregamos nosso tempo de vida?

4

Talvez você conheça um pouco desse contexto pelo filme Os sonhadores (2003), de Bernardo Bertolucci. Eu avalio esse filme como um retrato toscamente liberal de todo processo.

Um salto histórico. Estados Unidos, Guerra do Vietnã, movimentos dos direitos civis e contracultura. Nesse momento, o sucesso dos movimentos já não é tão claro e ainda hoje há disputas sobre o que rolou, mas é inegável que as pessoas envolvidas nesse processo produziram peças gráficas também muito próximas do calor das ruas e das ações diretas. Pensar, por exemplo, o trabalho de Emory Douglas nesse contexto é fundamental. Nesse cenário, foram sugeridos gestos de resistência no campo da comunicação, como o famoso manifesto no design First things first [Primeiro o mais importante] (1964), de Ken Garland. Na França, algumas iniciativas neovanguardistas culminaram na convulsão do que se chamou Maio de 68, com greves gerais4. Essa ocasião fez surgir o que se tornou uma referência recorrente para a discussão de “ativismo” em design: a Escola de Belas Artes de Paris foi ocupada por um corpo coletivo de estudantes e trabalhadores que ficou conhecido como o Atelier Populaire, que produzia materiais gráficos para os protestos.

Mesmo assim, eram outros tempos. A cultura de consumo que se estabeleceu logo depois da Segunda Guerra já estava espalhada pelo mundo e, sobretudo pensando nos Estados Unidos, a criação poética tinha outros ideais – os do consumo. Ocorreu ali uma distorção da qual nunca conseguimos nos recuperar: estávamos conseguindo unir arte e vida – aquele sonho das vanguardas –, mas apenas por meio das mercadorias. Foi assim que esses movimentos puderam ser assimilados: não importava o quão radical fosse o movimento hippie, ele acabaria reduzido a um símbolo replicado em peças de roupas, cartazes, revistas. Bastava comprar a coisa certa.

Outro salto histórico: hoje. Para avançar, é necessário discutir uma determinada economia nas plataformas de mídia social: a economia do eu. Pensando em como as imagens circulam aqui e agora, poderemos fazer considerações acerca da criação e disseminação de peças gráficas com mensagens políticas nas redes. 

5

Publicado em Falso espelho (2020), da editora Todavia.

6

Essa ideia foi reconhecida de diferentes maneiras, com diferentes ênfases e por diferentes áreas: além de Goffman na sociologia, citaria Guy Debord na estética com A sociedade do espetáculo ou Albert Camus com a noção de máscaras sociais na sua literatura existencialista. O fato é que desde que a cultura de consumo começou a ser nomeada como tal, essa sensação se torna cada vez mais palpável – talvez de forma mais bem filosoficamente acabada com os simulacros de Jean Baudrillard.

O melhor texto que eu conheço sobre isso é O eu na internet5, de Jia Tolentino, que vive na internet desde muito cedo e é paga para escrever sobre ela. Em prosa brilhante, Tolentino costura uma história da internet em escala macro e micro ao mesmo tempo, mas sempre retorna à subjetivação que cada um de nós realiza por meio da internet. Para explicar esse fenômeno, ela usa os óculos da teoria da interação simbólica de Erving Goffman, formulada em 1959: a ideia básica é que, em qualquer interação entre seres humanos, o que ocorre é uma performance6. Ou seja, sempre estamos criando representações de nós mesmos para determinado público. 

No mundo de Goffman, não havia internet. Então, as interações sociais e os públicos estavam sempre mudando e, como Tolentino nos conta, “de acordo com a estrutura dramatúrgica de Goffman, [a pessoa] pode sentir que está nos bastidores”, criando momentos de alívio entre as encenações. Entretanto, ~com o advento da internet~, todas as interações sociais são achatadas e mediadas unicamente pelos nossos perfis nas plataformas. Por conseguinte, os momentos de alívio são aniquilados: estamos sempre potencialmente disponíveis para acessar as plataformas e retomar nossa performance.

Momentos da nossa vida passam a ser material para criar conteúdo, a régua que usamos para medir nosso valor próprio passa a ser a quantidade de likes ou de seguidores
7

A demonstração a que me refiro aqui é a elaboração de Michel Foucault em relação ao panóptico. Sendo muito sucinto: não precisamos ser vigiados se nós nos sentirmos vigiados; o efeito em nosso comportamento é o mesmo.

Para nós, que participamos de interações sociais mediadas por plataformas, isso tem implicações severas. Talvez nós não estejamos literalmente no Big Brother, com câmeras e microfones ligados o tempo todo; mas, como já foi muito bem demonstrado, não é necessário que sejamos vigiados de fato. Só precisamos acreditar que estamos sendo vigiados7. Isso significa que nós internalizamos e naturalizamos a ideia de que temos sempre um público à disposição; basta acessar a plataforma de sua preferência. 

Essa pressuposição transforma a natureza das nossas experiências: momentos da nossa vida passam a ser material para criar conteúdo, a régua que usamos para medir nosso valor próprio passa a ser a quantidade de likes ou de seguidores. Isso é ótimo para as empresas multibilionárias donas das plataformas, que criam um ambiente para o qual sempre vamos voltar, para o qual vamos direcionar nossa cognição. Assim, elas podem comercializar nossa atenção. Logo, tudo o que circula ali é mercadoria – inclusive nosso próprio processo de subjetivação. 

Nós podemos – e devemos – modular essa afirmativa. Há modos mais e menos desonestos, autênticos ou conscientes de realizar esse processo. Isso só não significa que a natureza do que habita nas plataformas vai mudar. Da perspectiva da circulação de imagens e da interação simbólica, não importa se você está genuinamente se divertindo naqueles stories ou se aquela subcelebridade está chorando de verdade. Tudo o que importa é que se torne autenticidade percebida e se transfigure em mercadoria e, como tal, possa ser expropriada e comercializada. 

E o que isso tudo tem a ver com a possibilidade de um design ativista hoje? Toda essa narrativa que tentei construir demonstra como temos separado cada vez mais a comunicação da experiência comunicada. Em termos de política, isso significa que a produção e a circulação de peças gráficas que comunicam nosso posicionamento se esvaziam de significado. Com certeza você tem um exemplo em mente, mas acho que o mais patente foi a enxurrada de quadrados pretos no feed devido ao assassinato de George Floyd em 2020, nos Estados Unidos. Qual era exatamente o objetivo de postar aquilo? Como postar aquilo se traduzia em alguma mudança efetiva quanto à violência policial?

Quando o vínculo entre comunicação e experiência se esgarça – e até rompe –, o próprio ato de comunicar torna-se aquilo que Tolentino chama de sinalização de virtude. O termo designa uma performance que não ultrapassa a superfície do feed, com o objetivo exclusivo de ganhar pontos com o público da sua performance existencial. O sociólogo Pierre Bourdieu deu termos econômicos para essa circulação de prestígio social; para ele, isso significa ganhar capital simbólico. Para nós, é o biscoito; talvez uma categoria especial: o biscoito político.

De uma perspectiva analítica, o que a sinalização de virtude faz é deslocar uma discussão política para o âmbito individual e moral. Basta lembrar como as pessoas são rápidas em cobrar um posicionamento de algumas figuras em qualquer uma dessas polêmicas da internet; a armadilha é sempre colocar em xeque a índole daquela pessoa, não problematizar a questão em sua esfera estrutural e política. Essa armadilha é bem familiar para nós: a ideia de dedicar 10% do seu trabalho a causas sociais é uma expressão forte de como o afeto articulado aqui é a culpa – logo, do âmbito moral e individual. Isso contribui para nos precarizar ainda mais – e, quando não conseguimos fazer trabalhos “sociais”, nos sentimos ainda mais culpados. O resultado é um círculo vicioso de culpa e precarização que todos assumimos individualmente.

8

Dificilmente somos comunicadores. Via de regra, nós não temos agência sobre a mensagem que devemos comunicar; somos meramente funcionários que melhoram a eficiência da mensagem daquele que nos paga.

O esvaziamento da dimensão política oferece, ao mesmo tempo, um escape para esses afetos. O outro lado da moeda da sinalização de virtude é que, uma vez que comunicamos certos signos e expressamos determinados afetos, nossa missão já está cumprida. Rodrigo Nunes desenha isso magistralmente: “participar equivale a ser visto participando na mídia e nas redes sociais”. Com isso, os funcionários da comunicação8 – designers e publicitários, por exemplo – podem performar a resistência ao sistema do qual discordam, mas continuar trabalhando para reforçar a dimensão ideológica desse mesmo sistema. 

Por exemplo, é dessa contradição que surgem fenômenos como o Adbusters, que reúne iniciativas de ação publicitária contrárias ou críticas a ideias consumistas. Outro exemplo é o próprio manifesto First things first, de 1964, que já mencionei: ele foi assinado por vários profissionais de comunicação da época. O fato de ter sido reeditado em 2000 e, mais uma vez, em 2020, deve ser demonstração suficiente do quanto ele tem sido inútil. A questão é que, como Tolentino aponta, na maioria das vezes, “fazer uma declaração política justa, para muitas pessoas, tornou-se um bem político em si mesmo”. Mas, como todos temos percebido da pior maneira possível, notas de repúdio não fazem nada em si mesmas.

Se as peças gráficas que criamos para comunicar estiverem divorciadas de ações de fato, nós estamos fadados a não realizar nada e, de quebra, ainda perder cada vez mais credibilidade de que algo talvez possa ser feito. 
9

De maneira muito pragmática, o episódio “Desinformação para dar e vender” do podcast Entreteses (a partir de 23:00) trata disso nas plataformas de mídias sociais.

10

O léxico místico não é por acaso. Desde a origem do capitalismo, Marx já reconhecia o caráter mágico do consumo; desdobramentos como aqueles feitos por Baudrillard demonstram como o valor de signo assume cada vez mais importância no capitalismo tardio.

O que acho significativo pensar aqui é o quanto postar os quadrados pretos não foi um modo de minar o potencial subversivo daquela revolta, acalmando as pessoas com a sensação de dever cumprido por meio da sinalização de virtude. Além disso, nós, designers, sabemos muito bem o efeito catártico, anímico, performado em uma troca simbólica9. Este é, inclusive, o nosso feijão com arroz: arranjar determinados elementos para enfeitiçar os artefatos com determinados valores10. Entretanto, se as peças gráficas que criamos para comunicar estiverem divorciadas de ações de fato, nós estamos fadados a não realizar nada e, de quebra, ainda perder cada vez mais credibilidade de que algo talvez possa ser feito. 

Isso, por sua vez, retroalimenta o sentimento de que não há alternativa – típico do realismo capitalista – e dociliza as expressões radicais de mudança, transformando-as em mercadoria cada vez mais rápido. Nossos feitiços se deterioram rapidamente em meros truques de ilusionismo. Quando o capitalismo tardio sufoca toda a criação poética e deixa apenas a casca vazia da mercadoria, ele cria a fantasmagoria pela qual estamos sendo assombrados: o da potência nunca realizada. Por isso, acho que, no fundo, o que está em jogo é a natureza da nossa prática. Se acreditamos que a configuração da cultura material tem mesmo algum potencial para efetuar mudanças na sociedade, então precisamos nos atentar não só aos elementos que articulamos para veicular esses valores, mas também como se dá a sua circulação. 

Por exemplo, devemos analisar com cuidado o que significa quando a forma da comunicação tem propósitos fundamentalmente diferentes. Particularmente, fiquei muito espantado de ver o slogan de um supremacista branco como Trump – “Make America Great Again” – ser parodiado para “defender a democracia” aqui. Em uma análise mais cuidadosa, fiquei ainda mais: querer que o Brasil, nostálgica e acriticamente, reviva o que aconteceu há 20 anos me parece uma estratégia viciada desde a origem. Infelizmente, essa tem sido a tônica da maior parte dos discursos progressistas – o que também se revela na quantidade de paródias da paródia da campanha de Trump que tenho visto em bonés. Isso nos dá uma ideia da profundidade do buraco em que estamos metidos.

11

Maria Carvalho fala precisamente sobre isso no texto “O designer enquanto anônimo”, da revista Recorte Ano 1 – 2021.

No texto que mencionei lá no começo, Rafael também aponta que designers “querem atuar politicamente sem perder esse referencial profissional”. Me parece que isso tem um motivo muito prático: a sinalização de virtude rende muito capital simbólico em um campo que depende fortemente disso11. Entretanto, os referenciais profissionais hegemônicos que temos estão imbricados em uma visão competitiva, fetichista e excludente. Por isso que, se alguém pedisse minha opinião, eu diria que um antídoto para isso seria nos desidentificar com o ideal de sucesso que consiste na acumulação de capital simbólico. Você sabe: clientes grandes, compartilhamentos no LinkedIn, prêmios, seguidores, startups revolucionárias, selos de verificado, essas coisas. 

Se acreditamos que a forma de fato significa algo, é nosso dever imaginar novas formas para uma nova realidade – como fizeram os vanguardistas em seu tempo. Se não – se a forma é apenas um invólucro que podemos samplear para preencher com qualquer conteúdo – então, a história, para o design, é mesmo uma “má história”, como chamaram Kalman, Miller e Jacobs naquele texto de que falei em outra ocasião. Se for isso mesmo, nos resta usar nossos maneirismos para criar os mais diferentes falsos espelhos, das mais diferentes vibes, adequadas para que os mais diferentes públicos se identifiquem com as mais diferentes mercadorias.

Não é sobre ter cartazes na parede ou compartilhar tais e tais posts. O que devemos aprender é a essência de estarmos chafurdados na realidade social e nos tornarmos criticamente conscientes de nosso inacabamento e dispostos a criar o inédito viável, como diria Paulo Freire. 
12

Talvez agora seja um bom momento para confessar: o termo ativista me soa problemático para começo de conversa. Como não poderia deixar de ser, concordo com meu conterrâneo e mestre de ofício, Paulo Freire: “Daí a inclinação do sectário ao ativismo, que é ação sem vigilância da reflexão. Daí o seu gosto pela sloganização, que dificilmente ultrapassa a esfera dos mitos (…)”. Acho crucial superar esse termo e consolidar o designer militante.

Por outro lado, se for possível fazer uma “boa história” com design, talvez isso tenha menos a ver com design do que qualquer coisa. Ela aparece quando tangibilizamos nossa experiência histórica. É isso que está essencialmente presente nos exemplos atemporais de design ativista12: seja com os manifestantes decidindo cartazes do Atelier Populaire na Paris do Maio de 68, seja com Emory Douglas e os Panteras Negras dando de comer para crianças, seja com os bolcheviques na Revolução Russa, seja com a campanha feminista do Wages for Housework – e há muitos mais exemplos. Nesses casos, aquelas pessoas também lutaram ativamente para superar sua condição meramente ~profissional~ de designers ao estar com os outros, ao emancipar sujeitos coletivos. 

Que fique explícito: a proposta é aprofundarmos a nossa politização e compreender que a comunicação que realizamos não deve ser desvinculada de uma ação efetiva, na experiência coletiva com outras pessoas. É claro que a identificação profissional pode ser um ponto de encontro politizante. No melhor dos casos, é. No entanto, não é com a aparência dos exemplos históricos que devemos aprender. Não é sobre ter cartazes na parede ou compartilhar tais e tais posts. O que devemos aprender é a essência de estarmos chafurdados na realidade social e nos tornarmos criticamente conscientes de nosso inacabamento e dispostos a criar o inédito viável, como diria Paulo Freire. 

Isso jamais vai acontecer se mimetizarmos a relação estúdio x cliente em nossa ação política, como Rafael também aponta. E é com base nessa esperança que, apesar do anseio generalizado de levantar discussões na internet, eu boto fé na revista Recorte enquanto um espaço para debates construtivos. Mas mesmo este texto ou mesmo esta revista aqui podem degringolar rapidamente em mera sinalização de virtude se você – sim, você que está lendo – decidir não lidar com sua realidade imediata. Este texto só tem sentido emancipador se você embarcar nessa discussão e entender como essas palavras aderem (ou não) ao contexto em que você está, para elaborar conhecimentos, compartilhar inquietações e pluralizar os debates.

Enfim, me parece evidente que as práticas reconhecidas como design desempenham seu papel na política e têm potencial para consolidar visões, ideais e utopias em expressões comunicáveis. E, sim, acredito ser importante consolidar identificações na profissão para atuar politicamente a partir desse referencial, como disse Rafael. Todavia, consolidar uma identificação profissional só tem sentido emancipador se alicerçar solidariedade entre nós. Se o referencial profissional apenas estimular mais competitividade, mais precarização, mais sinalização de virtude, mais acúmulo de capital simbólico, não há muito que valha a pena perpetuar.

13

A proposta é feita por Iraldo Matias no fim de seu texto para esta coluna, “Projeto e revolução: um processo de pesquisa”, da revista Recorte Ano 1 – 2021.

Por isso, antes de tudo, talvez seja preciso encorajar a desidentificação com esse referencial profissional vigente para que surja o germe das relações sociais novas13 e se abra espaço para nossa imaginação estético-política. Talvez a prática de design tenha um grande potencial para ajudar a moldar novas possibilidades de interação com o mundo – mas é apenas um potencial. O desafio de dar um passo adiante em direção a um design radical é exatamente o de realizar esse potencial e transformá-lo em uma experiência coletiva. 

Os textos que integram a coluna Design Radical são co-editados por Rafael Bessa e são complementares ao artigo homônimo publicado na Recorte em maio de 2021. Os autores convidados por ele exploram as diferentes formas em que o design se relaciona com as condições de produção, as outras áreas do conhecimento e a conjuntura política de seu contexto histórico.

é designer e professor no IFPE – Recife. Doutor em Design, relatou as práticas pedagógicas junto aos estudantes na tese intitulada “Compartilhar experiências e aprender coisas”. Também investiga as articulações entre texto e imagem para a experiência estética dos livros ilustrados. Além disso, compartilha seu trabalho com desenho, pintura, ilustração e design gráfico no Instagram e discute design criticamente no Twitter e no Medium (@souzaeduardo em todos).
Apoie a Recorte
A Recorte pode ajudar o seu negócio a crescer. Conheça nossos modelos de apoio e junte-se às empresas, empreendedores individuais e iniciativas que acreditam que a informação e o debate também são pilares do design.