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16 de setembro de 2024

Ambiguidades da imagem em Jogo de Cena (2007)

A obra Encontro, que acompanha este ensaio, foi cedida por Nódoa (André Rodrigues) (@nodoa_ no Instagram).

É seguro dizer que Eduardo Coutinho (1933-2014) é o documentarista mais importante do Brasil. Talvez o maior marco de sua obra seja Cabra marcado para morrer (1984), documentário que ele começou a gravar em 1964, sobre um líder camponês paraibano que havia sido assassinado dois anos antes. Mas houve um golpe empresarial-militar no meio do caminho. O engenho da Galileia, base da produção, foi cercado pela polícia; parte da equipe foi presa, e o filme, suspenso. Dezessete anos depois, com o Brasil em processo de redemocratização, o trabalho pôde ser retomado, e o filme foi lançado com um hiato de vinte anos.

Não me sinto muito à vontade para falar do meu xará; sua filmografia é importante demais e eu a experimentei de menos até agora. Todavia, compreender que ele é reconhecido como um documentarista é fundamental para elaborarmos algumas ideias sobre o status da imagem a partir de Jogo de cena (2007). O que nós pressupomos quando falamos que uma produção audiovisual é um documentário? Ou ainda que é “baseada em fatos reais” ou “autobiográfica”? Minha opinião é que esses procedimentos retóricos querem imprimir certa condição de realidade às imagens a que se referem. Ou seja, quando a gente assiste a um documentário, a gente pressupõe que aquilo que a gente vai ver é de verdade

Mas não é. Ou, pelo menos, não inteiramente. É precisamente essa ambivalência intrínseca das imagens – e como elas operam – que Jogo de cena, a meu ver, explora de maneira extremamente contundente. 

Desconfiar, mas não demais: a imagem como janela e parede

No filme, uma das coisas que Coutinho faz é justamente colocar em dúvida o status de verdade da imagem. A primeira coisa que vemos é um anúncio impresso nos classificados, convocando mulheres a contarem suas histórias. Perceba que esse início desempenha uma função retórica: “o  que veremos a seguir é de verdade, até saiu no jornal”. De forma complementar, a dimensão autoral – o que o público já sabe sobre Coutinho – também desempenha um papel importante: ele é um documentarista. E documentaristas registram e difundem o que realmente ocorreu. Não é?

Cartaz de Jogo de Cena (Eduardo Coutinho, 2007)

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Pelo menos, conhecidas à época. Em uma discussão com Jovens™ no Cinefilô – um tipo de clube do filme aberto à comunidade e realizado no Campus Recife do Instituto Federal de Pernambuco (IFPE) como atividade de extensão – foi surpreendente saber que não reconheceram Marília Pêra como atriz.

Em contradição com essa premissa, no entanto, ele escala três atrizes muitíssimo conhecidas pelo público brasileiro: Andréa Beltrão, Fernanda Torres e Marília Pêra1. Além disso, ele também convida para participar do filme outras atrizes muito menos conhecidas, e a participação delas será determinante para nós, espectadores. Famosas ou disfarçadas de anônimas, elas são atrizes. Atrizes atuam,  falseiam a realidade. Para nós, no polo da recepção, o tratamento que Coutinho faz das imagens – na captura e na montagem – é crucial para que Jogo de cena faça o que faz conosco. Na superfície do filme, não há distinção entre os depoimentos pessoais das mulheres que entraram em contato com a produção por meio do anúncio nos classificados e os das atrizes que performam ali naquela austera cadeira, em um palco de teatro, de costas para um público ausente. 

Pelo menos em parte, o jogo conduzido por Coutinho serve de exemplo metonímico para uma larguíssima parte da filosofia “ocidental”, que resguarda enormes desconfianças das imagens, porque seria de sua natureza nos seduzir e nos enganar.
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Lá no livro X de A República, Platão classifica os tipos de “imitadores”: poetas, músicos e pintores. Dentre eles, os pintores seriam os mais ignorantes, pois estariam mais distantes da forma ideal: ao pintar um objeto, eles copiam a cópia da ideia perfeita daquele mesmo objeto que está em suas mentes. Vou precisar discordar de Platão: quando pintamos, não espelhamos o visível, mas extraímos algo dele para criar a representação. 

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Nessa história, os dois pintores fizeram uma competição. Zêuxis pintou uma natureza morta tão perfeita que um pássaro tentou bicar suas uvas bidimensionais. Sentindo-se orgulhoso, Zêuxis pediu então para que Parrásio revelasse sua pintura, retirando a cortina que a encobria. Para espanto geral, não havia cortina. A pintura era a representação de uma cortina. Como sugeri, Platão entendia que o objetivo da imagem era apenas enganar os sentidos.

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Vilém Flusser, “Imagem nos novos meios”, em O mundo codificado: Por uma filosofia do design e da comunicação (Ubu, 2017).

Esses procedimentos contraditórios acentuam a ambivalência das imagens e nos obrigam a pensar sobre elas. Por natureza, as imagens aparentam ser imediatas – e com i-mediatas quero dizer sem mediação. Assim, elas se confundem com a própria coisa que substituem – ou, como gostamos de dizer, representam. Nesse caso, os depoimentos substituem os fatos, mas a memória que os registra pode, ou não, ter sido ensaiada. Pelo menos em parte, o jogo conduzido por Coutinho serve de exemplo metonímico para uma larguíssima parte da filosofia “ocidental”, que resguarda enormes desconfianças das imagens, porque seria de sua natureza nos seduzir e nos enganar. Por servirem de janelas, olhamos através delas. Para resistir a isso, deve-se, defenderia Platão, utilizar a razão (logos) para chegar à verdade. Isso fica explícito no tratamento negativo imputado aos pintores em A República2 ou na rinha de pintura entre Zêuxis e Parrásio3 contada por outro grego – Plínio, o Velho. 

Até aí, tudo bem. O problema é que, como diria Flusser, “há uma tendência a se confundir a recepção das telas com a das imagens das cavernas, como se as novas imagens se precipitassem sobre nós […] porque [as recebemos de maneira] acrítica”4. Nessa longa relação que temos com as imagens, Flusser aponta que a imagem pré-histórica não precisava ser recebida criticamente, pois era produzida por uma comunidade e para ela mesma: “é um reconhecimento fixado, uma vivência fixada, uma valoração fixada, e é um modelo para o reconhecimento intersubjetivo futuro”. O curioso é pensar como e por que as imagens que circulam hoje – neste estágio avançado de capitalismo tardio, entregues por um alfaiate algorítmico diretamente na ponta de nossos dedos – operam como se ainda fossem as imagens pré-históricas. 

Nós sabemos que as imagens que perseguimos no feed são falsas. Talvez saibamos conscientemente, mas obviamente não sentimos como se fossem. Se sentíssemos, não teríamos tanta ansiedade generalizada e circulação de desejo nas plataformas proprietárias de grandes monopólios globais. Graças à natureza das imagens, é muito difícil não ser seduzido por sua aparente imediatez. Além disso, considerando o enorme fluxo com que as recebemos e as diferentes respostas emocionais suscitadas por elas, é muito cognitivamente custoso recebê-las criticamente. Por mais que elas se tornem cada vez mais irreais, cada vez mais espetaculares. 

No caso dos documentários, essa incerteza acerca do que é real se agrava quando seus códigos são apropriados e subvertidos. Há codificações específicas e procedimentos técnicos de captura e montagem dessas imagens que predispõem que elas sejam percebidas como algo de verdade. O setting de uma entrevista – com seu cenário amplo e uma pessoa comedidamente sentada e bem enquadrada – confere autoridade ao discurso que virá. Já na montagem, esse tipo de depoimento é frequentemente intercalado com outras imagens que supomos ter caráter documental ou histórico – como pinturas, livros ou cortes de telejornais –, ao som de uma trilha sonora sóbria.

Em termos da superfície do filme, toda imagem é imagem – nenhuma é mais ou menos verdadeira.

Mas, em termos da superfície do filme, toda imagem é imagem – nenhuma é mais ou menos verdadeira. Para todos os efeitos de produção, circulação e recepção, elas constituem apenas mais um gênero audiovisual e, portanto, podem ser manipuladas. É o que fazem os falsos documentários, ou em inglês mockumentaries (sabe em The Office quando os personagens falam com a câmera?), ou mesmo alguns canais de YouTube financiados por institutos e think tanks liberais que utilizam procedimentos pretensamente documentais para falsificar a história brasileira e mundial.

É essa ambivalência que Coutinho esgarça pelo seu uso da forma cinematográfica. Bem rápido, entendemos que as imagens de seu filme são e não são de verdade. Em um movimento digno de Magritte, a superfície do filme deixa de ser somente uma janela que nos puxa para um outro mundo, e passa a ser também uma parede, que nos obriga a olhar para ele. Além do surrealista francês, essa dupla valência entre janela e parede me lembra também de Bartleby, o escrivão, personagem que intitula o conto de Herman Melville (Ubu, 2017). O protagonista é famoso por ser um obstáculo na narrativa; tudo o que ele faz é ficar parado, trabalhando em frente a uma janela que dá para uma parede, e responder: “eu acho melhor não” a qualquer pergunta ou pedido.

Além de ser janela e parede, a imagem também é espelho.

Tal qual o poeta João Cabral de Melo Neto, para quem a poesia deveria ser uma superfície áspera, Coutinho não quer nos apaziguar, e sim nos inquietar. É isso que ele faz quando, lá pelos sete minutos de filme, corta o depoimento da segunda entrevistada, Gisele Alves Moura, e nos mostra Andréa Beltrão repetindo sua última fala: “eu saí um pouco do foco do casamento”. Agora, a história é de quem: Gisele ou Andréa? A partir daí, nós somos convidados a construir cada história por meio  da composição entre as falas de diferentes mulheres.

Além de ser janela e parede, a imagem também é espelho. Depois de desconfiar das imagens, devemos continuar certa aventura dialética ao admitirmos que não há modo de compreender nosso lugar no mundo, de nos colocar aqui, de socializar, de nos relacionar com outras pessoas, que não passe pela imagem.

Psicanálise, mas não muito: a imagem como reflexo e projeção

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O texto de Lacan pode ser encontrado em português na coletânea Escritos, publicada pela Zahar em 1998.

Uma contribuição fundamental para compreendermos como as imagens participam do nosso processo de subjetivação é de Jacques Lacan (1901-1981). Não vou adentrar demais na teoria  lacaniana por duas razões: a primeira é a limitação de escopo deste texto e a segunda é a minha própria limitação de conhecimento. Aqui, pretendo apenas discutir um aspecto específico de uma de suas contribuições decisivas para a psicanálise: “O estádio do espelho como formador da função do eu”5, publicado em sua versão definitiva em 1949. 

O estádio do espelho é um esquema que Lacan constrói, usando conhecimentos de diversas disciplinas, para demonstrar que a imagem é fundamental para o desenvolvimento do eu. De uma perspectiva biológica básica, nós nascemos muito prematuramente; basta comparar o ser humano recém-nascido a outras espécies de mamíferos – talvez os algoritmos já tenham te mostrado uma girafa dando a luz: a girafinha despenca do ventre da mãe e, em pouco tempo, já dá seus primeiros passos. Já um bebê é muito frágil, indefeso e dependente. Não nascemos sequer com a capacidade de separar o que distingue nós mesmos do nosso entorno; não temos a dimensão de onde termina o nosso corpo e de onde começa o mundo exterior.

No entanto, para que uma pessoa possa se constituir como alguém autônomo e coerente, ela deve primeiro se distinguir dos outros e de seu entorno. Um dos marcos desse processo, como nos dizem os psicólogos experimentais, acontece entre seis e dezoito meses, quando o ser humano começa o processo de identificação com a sua imagem no espelho. Trata-se de um processo de acertos e erros, que ocorre de maneira não linear. Mas sabemos que, inicialmente, ao ver seu próprio reflexo, a pessoa reage como se estivesse diante de um outro; ela não se reconhece na imagem. 

Com o tempo, ela passa a se reconhecer, mas também a se distinguir de seu próprio reflexo. A pessoa começa a entender que é lá, naquela imagem, que seu fluxo incessante de sensações adquire unidade. Com isso, passa a ter consciência de seu próprio corpo e de suas funções corporais, à medida que desenvolve a consciência do mundo externo para se diferenciar dele. Em alguns momentos, quando a separação falha, ela não reconhece nenhum outro; tudo é eu. Esse é um traço, inclusive, da fantasia da onipotência infantil: o mundo existiria para servir a ela.

A imagem refletida nos apresenta um dilema porque ela está intimamente conectada ao nosso senso de si e, ao mesmo tempo, é externa a cada um de nós – está lá.

O mais interessante dessa história, para mim,  é a contradição em que se fundamenta o processo descrito por Lacan. A imagem refletida nos apresenta um dilema porque ela está intimamente conectada ao nosso senso de si e, ao mesmo tempo, é externa a cada um de nós – está . Ela nos impõe, assim, um grau de alienação. Para que a pessoa entenda que ela é uma pessoa – ou seja, tenha unidade e identidade – ela precisa se ver “de fora”, como outro, como imagem. Então, pode-se dizer que a formação do eu se inicia com uma cisão contraditória: ela se dá quando começamos a nos confundir com o outro que vemos no espelho. Para sintetizar, Lacan dirá que “O Eu é um outro”. 

É a partir disso que a coisa começa a ficar complicada, porque, de maneira muito básica, nós – como muitos outros mamíferos – operamos por mimese. Todos os nossos processos de integração social funcionam por meio da identificação. Ou seja, esse processo contraditório de subjetivação não se dá apenas com espelhos empíricos; pelo contrário, qualquer imagem pode funcionar como espelho. Logo, ao nos identificarmos, também nos confundimos com o outro, e somos compelidos a agir por imitação. Naturalmente, introjetamos a imagem do outro a partir daquilo com o que nos identificamos e acabamos mimetizando os seus gestos. 

Portanto, por meio das imagens ocorre uma profunda confusão entre o eu e o outro. É essa confusão que Coutinho agrava, primeiro, pelo enquadramento: os close-ups nos prendem às microexpressões e ao olhar de cada mulher. Depois, por meio da montagem: ao justapor pessoas diferentes contando uma mesma história – com repetições, omissões, idiossincrasias –, nossa dicotomia ingênua entre atuação e verdade perde o sentido. Dá para dizer que esse é um dos sentidos de “jogo” em Jogo de cena: o filme joga com a nossa expectativa de que as atrizes conhecidas estariam atuando enquanto põe em cena a imitação que funda o próprio ofício da atuação. 

Por exemplo, quando Débora Almeida conta a sua história, faz questão de mencionar o modo como as pessoas a enxergam (“as pessoas acham que porque você se veste assim, você é uma mulher fácil”). Entretanto, para ela, o que realmente importa é estar confortável, pois “eu sei que eu me adoro tanto, que, antes de qualquer coisa, eu vou me ver”. De tão autêntico, o seu testemunho racha a frágil distinção entre “verdade” e “ficção” quando ela vira para a câmera e diz: “foi isso que ela disse”. Ou então quando Andréa Beltrão elabora sobre o esforço que é fazer uma cena “sem imitar” – e como, de alguma maneira, a emoção a domina mais do que a pessoa que ela representa: “Eu precisaria ensaiar isso muitas vezes para falar isso […] estoicamente […] [com a] serenidade dela”.

Se as imagens são espelhos em que nós nos projetamos, também olhamos para nós mesmos por meio delas.

O modo como Coutinho justapõe os planos fechados – e os mais fechados ainda – das atrizes-que-sabemos-ser-atrizes, das atrizes-que-não-sabemos-ser-atrizes e das não-atrizes simplesmente faz com que essa diferença se torne irrelevante. Se as imagens são espelhos em que nós nos projetamos, também olhamos para nós mesmos por meio delas. Dito de forma mais lacaniana, aquilo que significamos é mediado pelo Outro. 

Essa dimensão de identificação quase imediata é o que podemos chamar de Imaginário. Ele é permeado por certa cisma, dado que esse é o modo mais rudimentar que temos de nos relacionar com o mundo. Não há muita elaboração, pois a força gravitacional da imagem nos engole como se fosse um buraco negro. Afinal, é justamente pela própria imagem que Narciso se apaixona e, ingenuamente, morre. Precisamente essa natureza sedutora da imagem que é operada nos feeds que nos mantêm presos à dinâmica infinita – a menos que a gente a interrompa – de circulação de imagens.

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Karl Marx, O capital, Livro III (Boitempo, 2017). Em outras traduções, há uma menção mais direta entre aparência e essência. Eu concordo com a afirmativa, mas discordo de uma leitura mecanicista da relação entre aparência e essência; o método é dialético precisamente por dar conta da dinâmica entre elas.

A desconfiança das imagens não é infundada. Tomado de cara, o Imaginário é eficiente em se confundir com aquilo que representa e em fundar concepções rasas e excessivamente parciais da realidade. Por isso que boa parte das teorias críticas denunciam a ideologia como se ela fosse intrínseca às imagens e buscam desmistificá-las por meio da razão. Essa pulga atrás da orelha parece ter origem na ideia de que as aparências sempre escondem a essência e é frequentemente justificada pela cartada marxista de que “toda ciência seria supérflua se a forma de manifestação e a essência das coisas coincidissem imediatamente”.6 Nesse sentido, há muitas semelhanças com Platão. O que eu gostaria de fazer é apresentar a quase imediatez das imagens mais uma vez, mas agora por outra perspectiva. Uma, talvez, que dê a ver como ela pode ser de verdade.

Imitamos, mas não tudo: a imagem como humanização e programa

Mary Sheyla, a primeira entrevistada, é uma atriz que elabora sobre o próprio ofício. “O que é ser atriz?”, ela pergunta, antes de contar que está ensaiando para ser Medeia em Gota d’água, peça de Chico Buarque. A Medeia é uma figura da mitologia grega, particularmente fascinante por sua ambiguidade e seu arco narrativo dramático. Entretanto, ela é mais do que uma personagem; ela é o que o historiador da arte Georges Didi-Huberman (1953-) chamaria de uma fórmula emocional (pathosformel).

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Georges Didi-Huberman, Diante do tempo: história da arte e anacronismo das imagens (Editora UFMG, 2015).

Quando pensamos em história da arte, tendemos a pensar que o esforço dessa disciplina é ordenar cronologicamente certo tipo de produção cultural, chamada Arte. De maneira geral, seguir uma cronologia, contextualizar imagens em determinados momentos históricos, tratando-as como documentos e evidências, são estratégias para a construção de uma narrativa coesa. Podemos denominar essa atitude histórica como eucrônica: “não é nada mais que uma busca da concordância dos tempos”7.

Nessa linha da História, uma acusação de anacronismo é, para todos os efeitos, um xingamento, porque aponta certa incapacidade de compreender um fenômeno histórico a partir de seu contexto. E, de fato, a ciência da História deve trabalhar com procedimentos para assegurar que as ideias de um tempo sejam acompanhadas de seus respectivos contextos, para assim adquirirem seu pleno sentido. Apesar disso – ou talvez por isso –, nos esforçamos para ler e compreender ideias de outras épocas, de outros países, de outras pessoas. Ainda assim há, de fundo, a crença de que existe algo que se mantém, a despeito das diferenças extratextuais, e que podemos apreender esse fator essencial. Ou seja, mesmo que tentemos nos livrar dela, ainda temos, de fundo, certa atitude anacrônica.

[Fórmulas emocionais] estão presentes nas imagens que, independentemente do contexto, evocam em nós uma resposta emocional, que dão um curto-circuito em nossa suposta racionalidade e acabam nos afetando e, assim, moldando nossa subjetividade.

É em relação a essa atitude que Didi-Huberman defenderá que as imagens se prestam de maneira particularmente produtiva. A partir das contribuições de alguém que lhe antecedeu, Aby Warburg (1866-1929), Didi-Huberman chamará atenção para a natureza anacrônica das imagens, que se consolida no conceito de fórmula emocional. Essas fórmulas estão presentes nas imagens que, independentemente do contexto, evocam em nós uma resposta emocional, que dão um curto-circuito em nossa suposta racionalidade e acabam nos afetando e, assim, moldando nossa subjetividade. Segundo o historiador, as imagens carregam vitalidade a despeito de seu contexto e do tempo em que foram produzidas. Em suma, há algo que sobrevive nas formas através das quais o conteúdo nos é apresentado.

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Georges Didi-Huberman, A imagem sobrevivente: história e tempo dos fantasmas segundo Aby Warburg (Contraponto, 2013).

Para Didi-Huberman, as imagens revelam “os sintomas visíveis – corporais, gestuais, apresentados, figurados – de um tempo psíquico irredutível à simples trama de peripécias retóricas, sentimentais ou individuais”8. Perceba que a palavra sintoma tem fortes bases na psicanálise freudiana como aquilo que se expressa a despeito de nossa consciência, mas é usada por ele para explicitar a complexidade intrínseca à análise de imagens. O crucial aqui é que nós acabamos por internalizar as imagens como modelos de comportamento, graças à mimese a que elas nos submetem; à confusão entre eu e Outro mediada por elas e à sua anacronia. Irremediavelmente, são elas que fornecem as fórmulas emocionais que usamos para lidar com nossa experiência de mundo.

Dado o grau de mercantilização da vida que vivemos, a brutal maioria das imagens que circulam hoje opera em função da alienação.

Essa relação especular com a imagem é extremamente ambígua: em muitos sentidos, ela nos humaniza e nos torna capazes de nos reconhecermos no outro, enquanto, simultaneamente, nos direciona à mera imitação. De um lado, há a experiência de alteridade própria da arte; de outro, há a alienação de nós por nós mesmos a partir da mimese. Dado o grau de mercantilização da vida que vivemos, a brutal maioria das imagens que circulam hoje opera em função da alienação. Como diria, de novo, Flusser, “elas devem preencher a função descrita com programas de comportamento: têm que transformar seus receptores em objetos”.

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A noção de transviver se origina em determinada noção de arte. Dito de maneira sucinta e abrangente, uma linguagem pode ser articulada para comunicar uma experiência (essencialmente individual) para outra pessoa. Quando essa comunicação nos faz transviver – ou seja, sentirmos como se fôssemos outra – podemos considerá-la uma obra de arte. Discuti isso longamente na minha dissertação O estranhamento nos livros ilustrados de Shaun Tan (UFPE, 2016).

Em Jogo de cena, a ambiguidade entre alteridade e mimese pode ser percebida de maneira lancinante quando Fernanda Torres flutua entre sua imitação de Aleta e suas próprias emoções que a extravasam ao imitar Aleta. Registrado ali há um verdadeiro acontecimento: uma experiência transvivida9. Quando as atrizes estão contando suas histórias, elas não estão falseando ou mentindo; elas se tornam veículos para as emoções de outra pessoa. O que, por sua vez, nos obriga a confrontar certo aspecto ficcional da nossa subjetividade: tal qual as atrizes, estamos sempre agindo como se fôssemos nós. Acontece que, às vezes, nós somos nós mesmos. 

Estamos sempre encenando – o que não significa que estejamos falseando. A não ser quando, como mostra o último plano do filme, o palco se esvazia: é quando morremos. Seja a morte literal, com a parada das funções vitais de um corpo, seja uma morte simbólica, que nos transformaria em zumbis acríticos, a serviço de um sistema que nos oprime. A partir da desconfiança que precisamos ter das imagens, devemos também admitir que é impossível nos relacionarmos com o mundo se não por meio das imagens. Estamos submersos nessa dinâmica porque nunca há uma finalização do eu. “Ainda bem”, eu diria, concordando com Paulo Freire.

é designer e professor no IFPE – Recife. Doutor em Design, relatou as práticas pedagógicas junto aos estudantes na tese intitulada “Compartilhar experiências e aprender coisas”. Também investiga as articulações entre texto e imagem para a experiência estética dos livros ilustrados. Além disso, compartilha seu trabalho com desenho, pintura, ilustração e design gráfico no Instagram e discute design criticamente no Twitter e no Medium (@souzaeduardo em todos).
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