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10 de setembro de 2024

O designer e a práxis: apontamentos para uma comunicação efetivamente revolucionária

Bandeira do Brasil reimaginada por Bruno Lima (@oluwabrabo)

Se estamos descontentes com nosso modo de vida, como podemos atuar na construção de uma nova sociedade? Enquanto designers, será que temos um papel importante a cumprir? Quais modos de agir precisamos repensar, e em quais lutas imediatas devemos nos engajar? Quais são nossas demandas de classe? Como usar nossa expertise de formatação visual para deixar nossa comunicação revolucionária mais efetiva? Como nadar contra a corrente em uma enxurrada cada vez maior de imagens e informações que estimulam somente o sucesso individual, e não a construção coletiva?

Abro este ensaio como uma lista de perguntas, mas sugiro que você não tente encontrar aqui todas as respostas. Creio que ninguém conseguiria respondê-las de imediato, sobretudo no contexto econômico e político atual, que faz com que nossa profissão seja cada vez mais orientada pela demanda acelerada dos algoritmos das big techs. Por isso, escrevo não somente enquanto designer, mas também enquanto militante de uma organização política de esquerda, que luta pela revolução e pelo socialismo. Sei que em nosso campo isso soa como um posicionamento audacioso, e separar minha vida profissional de minha atuação política tem sido cada vez mais difícil – um impasse que, de certa forma, encaro como um privilégio.

O intuito desta publicação é incentivar o diálogo entre nós, designers insatisfeitos com o mundo, sobre questões candentes da mudança que queremos operar.
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Em outubro de 2023, publiquei “O design e a linguagem visual em nossa tarefa revolucionária”, na plataforma Em defesa do comunismo. O texto foi escrito em diálogo direto com outros militantes e serviu de base para este ensaio.

Muitas pessoas, nesse mundo capitalista desenfreado, sofreriam represálias na esfera profissional por adotar essa posição – e nós, que podemos assumi-la publicamente, não devemos desperdiçar a oportunidade. O intuito desta publicação1 é incentivar o diálogo entre nós, designers insatisfeitos com o mundo, sobre questões candentes da mudança que queremos operar. Para que isso seja possível, é importante que existam espaços acolhedores e diversos – como o Clube do Livro do Design, a própria Recorte e seus incríveis desdobramentos coletivos – em que possamos debater sobre política no design de maneira qualificada e ter certeza de que seremos bem recebidas.

Até hoje, 6 anos depois da vitória eleitoral da extrema-direita, é estarrecedor perceber como os disparos em massa nas redes sociais e aplicativos de troca de mensagens permitiram que o discurso bolsonarista se estabelecesse no senso comum. Apesar da máscara antissistêmica, ele reafirma e consolida o status quo do capitalismo e advoga a favor daqueles que já detêm o poder político e financeiro – donos de grandes empresas (principalmente da tecnologia), banqueiros, senhores do agronegócio, exploradores de recursos naturais – para garantir a manutenção de seus interesses. 

Enquanto isso, a esquerda brasileira faz as pazes com a institucionalidade, ameniza seu discurso em nome da “elegibilidade” e ecoa falas “palatáveis”, que apenas negam tudo aquilo que seus inimigos são e defendem. Esse modus operandi nos coloca sempre contra nossos opostos e fica evidente em motes como “não passarão”, “ele não” e “não vai ter golpe”. O mesmo acontece em nossas mobilizações nas ruas, que quase sempre enfatizam o caráter contrário a alguma proposta governamental em curso (contra o teto de gastos, contra a privatização, contra a jornada 6×1, contra PLs ou PECs etc.). Vejam, não é errado reivindicar essas pautas, muito pelo contrário. Somos de fato contra tudo isso. Entretanto, isso nos coloca na posição de reagir a ataques, e nunca de propor e avançar pautas. 

Nessa estratégia defensiva, falar de revolução e socialismo é “arriscado demais”, “assusta as pessoas”. E, no fim, não se reivindica um programa próprio. Mas é preciso comunicar também, senão ainda mais, aquilo de que somos a favor. Não só na organização política da qual faço parte, mas no âmbito da esquerda como um todo, se vê uma série de debates e polêmicas a respeito de como devemos nos posicionar publicamente para dialogar com uma grande quantidade de pessoas e conseguir tocá-las, estabelecer uma comunicação efetiva, despertar sua indignação, plantar ali a semente de um movimento. Isso inclui questionamentos sobre como deve ser nossa linguagem verbal e visual: que símbolos devemos e podemos usar? Que suportes e mídias queremos adotar? Quais espaços precisamos frequentar? E, por fim, como tomar essas decisões?

Devemos nos reapropriar da radicalidade e defender que o programa antissistema pressupõe dignidade para todos, já que vivemos sob o jugo do capitalismo neoliberal, que ganha força nas políticas de austeridade e aprofunda o abismo social entre ricos e pobres.

A bandeira antissistêmica deveria ser reivindicada por nós. Devemos nos reapropriar da radicalidade e defender que o programa antissistema pressupõe dignidade para todos, já que vivemos sob o jugo do capitalismo neoliberal, que ganha força nas políticas de austeridade e aprofunda o abismo social entre ricos e pobres. Porém, não é simples falar abertamente sobre fazer a revolução do lado de cá da classe trabalhadora, sobretudo nas redes sociais, que são meios desenhados para fomentar a lógica do sistema vigente. Nossa maior dificuldade prática é agir de forma consistente, disciplinada e organizada, para que nossas ações sobressaiam em meio a tantas imagens e informações que passam verticalmente por nossas telas, nos cobrando a produzir e a consumir mais e mais. 

Daí vocês poderiam me perguntar: fazer isso não é ceder à lógica de produtividade constante dos algoritmos? Ocupar as redes sociais não seria contraditório para um comunista, já que por consequência estaríamos dando lucro a grandes empresas com nossa propaganda política? Então, eu responderia: se não ocuparmos também as redes, quem vai se apossar do nosso espaço? Sim, nosso trabalho está nas ruas, nos bairros, nas escolas, nas universidades; mas na sociedade do imediatismo, devemos fazer uso de todas as ferramentas disponíveis para defender nosso projeto e levá-lo adiante. Isso inclui redes sociais, plataformas digitais e também os tão subestimados meios impressos, como jornais, panfletos, revistas, cartazes, lambe-lambes, zines e livros.

Nossa estratégia de comunicação verbal e visual deve estar atrelada não apenas ao objetivo prático do alcance e engajamento – onde o design entra como uma importante ferramenta, como já sabemos –, mas também conectada a um propósito maior: criar um terreno fértil para a construção imediata do imaginário de uma nova sociedade, genuinamente brasileira e socialista. Nossa tarefa enquanto vanguarda é fomentar o novo, tanto nas formulações e debates políticos quanto na cultura, nas práticas sociais e nas artes. 

Um exemplo muito positivo nesse aspecto é o trabalho do rapper cearense Don L, tanto em sua linguagem musical quanto em sua preocupação com a linguagem visual. Em seu último álbum, Roteiro para Aïnouz vol.2, Don rompe com a linearidade cronológica através de letras imagéticas, que mencionam nosso histórico de colonização ao mesmo tempo que prefiguram um futuro revolucionário. Ele utiliza samples de canções indígenas e de cultos; referências a clássicos do rap e ritmos atuais para convidar o público a imaginar a primavera da revolução brasileira. Para além disso, cria um universo visual singular, que compreende até mesmo uma proposta para uma nova bandeira do Brasil, desenhada por Bruno Lima. Don assume seu papel de artista no presente para trazer à tona os afetos revolucionários e a imagem de uma nova sociedade brasileira. Esse é o objetivo da atuação multipolar e ambiciosa que acredito ser necessária para a prática politizada de nossa profissão.

Don L por Bel Gandolfo (@kiddotrixx)

Meios e fins

Para atingir esse objetivo por meio da tarefa de agitação e propaganda, não só devemos ocupar todas as mídias possíveis, mas pluralizar as linguagens que usamos para veicular nossas plataformas, para que nosso trabalho como comunicadores políticos organizados se enriqueça, circule, desperte curiosidade, atraia olhares. Nesse sentido, é interessante mencionar o debate “impresso versus digital”, que vem acontecendo na organização da qual faço parte a respeito do jornal que publicaremos. Em nossa concepção, ele é um veículo primordial para a coesão e profissionalização do nosso trabalho político. 

“Por que imprimir o jornal se quase ninguém mais compra jornais impressos? Podemos publicar notícias e formulações apenas no site, não seria a mesma coisa? Jornal impresso é banheiro de pet, precisamos focar nas redes sociais.” A meu ver, a resposta para esse embate é razoavelmente simples: adotemos ambos, desde que o impresso ofereça algum diferencial em relação ao digital, não seja apenas o mesmo texto copiado e colado em outro suporte. O mercado editorial, diante dos desafios impostos pela digitalização da leitura, tem transformado o livro impresso em um objeto que também comunica pela sua materialidade, ao se valer da dimensão tátil e visual em que um e-book, por exemplo, deixa a desejar. Incluo aqui como referência a matéria “The Irregular Times — How one newspaper in India is rejuvenating print”, publicada em agosto de 2023 na revista digital WePresent (isso mesmo, a revista do WeTransfer) sobre uma experiência indiana que suscita essa questão.

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Tradução livre a partir do original em inglês.

“O que pode um jornal fazer que qualquer outro meio não pode? Vamos colocar a questão de outra forma. Por que criar um jornal na época digital atual? É uma pergunta que vem sendo feita no mundo criativo por mais de uma década, com muitos exaltando a materialidade física da impressão a despeito da fugacidade das experiências online. Mas o que também se tornou claro nos últimos anos é que o material impresso pode oferecer aos leitores uma importante dádiva – aquela da casualidade. Essa dádiva é potencialmente libertadora em um tempo em que aquilo que lemos e vemos é cada vez mais ditado por algoritmos movidos pelo lucro e filtros de bolhas.”2

Não vou entrar aqui no debate a respeito das big techs, algoritmos e segurança digital, uma preocupação extremamente válida, por sinal. Minha intenção é ressaltar que a materialidade pode sim oferecer uma experiência diferente de leitura e apreensão. Isso porque ela oferece inúmeras possibilidades que o formato digital não é capaz de abarcar. Explorar os formatos dos impressos, materiais diversos, texturas, transparências, sobreposições, formas de manuseio – todos esses são fatores que interferem e contribuem para a narrativa textual e visual, incorporando-se à própria mensagem. Bons exemplos disso são os livros Lululux e De novo de Gustavo Piqueira, ambos publicados pela editora Lote 42; e a edição da Ubu de Bartleby, o escrivão: uma história de Wall Street, de Herman Melville. Já na experiência indiana, os fundadores da The Irregular Times criaram um jornal de arte visualmente atraente, que dá visibilidade a novos artistas e é capaz de se adaptar a diversas identidades e linguagens visuais, à medida que cada dupla de páginas é totalmente diferente das outras. Ao mesmo tempo, a publicação democratiza o acesso a obras de arte fora de grandes feiras e galerias. Mas como? Através da distribuição do jornal em locais diversos e inusitados. Apesar de ser uma experiência no campo das artes, e não da política, seu resultado pode nos inspirar e fomentar futuras experiências organizadas politicamente.

É preciso pensar em estratégias transmidiáticas para promover o debate de assuntos plurais que aprofundem a consciência da classe trabalhadora.

O design, nesse tipo de iniciativa, tem o papel de tornar possível a coexistência das diferentes linguagens, sejam elas visuais, textuais, argumentativas, artísticas ou políticas. É preciso pensar em estratégias transmidiáticas para promover o debate de assuntos plurais que aprofundem a consciência da classe trabalhadora. Dessa forma, torna-se viável a produção de um universo de textos e imagens que expressem nossa sede de revolução, dialoguem com várias realidades, afetos, individualidades, estilos e gostos; enfim, que convidem o público a se apropriar desses materiais de maneiras criativas. Assim, se formos bem-sucedidos, a comunidade passa a ser um agente de divulgação. Se queremos que as pessoas se envolvam com nossas pautas, antes precisamos fazê-las se envolverem com a nossa comunicação.

A práxis e o design(er)

A prática política configura parte fundamental da formação do designer ou artista que se propõe um agitador e propagandista revolucionário – e justamente por isso ela não está circunscrita apenas à nossa atuação profissional. É preciso pensá-la para além do que conhecemos comumente como “design ativista”, que na maioria das vezes se refere a um “ativismo” que se encerra em si mesmo, no indivíduo e na produção de uma peça final, seja ela qual for. Nesse sentido, tenho acordo com Rafael Bessa e Eduardo Souza, que abordam esse tema, respectivamente, em seus textos Designers ou militantes organizados? Notas para um debate”, publicado em agosto de 2022 na Mídia Ninja, e “Ainda existe design(er) ativista?”, publicado em setembro do mesmo ano na Recorte.  

“Se as peças gráficas que criamos para comunicar estiverem divorciadas de ações de fato, nós estamos fadados a não realizar nada e, de quebra, ainda perder cada vez mais credibilidade de que algo talvez possa ser feito.”
Eduardo Souza

Veja, não há mal nenhum em produzir peças e obras com conteúdo político – inclusive, que bom que elas existem e podem ser feitas! Ainda assim, é preciso nos perguntarmos: qual é o avanço concreto quando produzimos 20 cartazes políticos individualmente em nossas casas e os espalhamos pela cidade – assim, sem nenhuma ação coletiva coordenada?

Para além de prestadores de serviços – ou “funcionários da comunicação”, como diria Flusser –, podemos e devemos ser designers militantes, que têm organicidade na sua atuação e estão inseridos em territórios.

Isolada de uma prática coletiva, organizada politicamente, com lastro na luta concreta e diária por esse horizonte revolucionário, essa produção tem consequências muito limitadas. Quando falamos de política nos círculos de designers, frequentemente nos referimos somente à esfera da institucionalidade burguesa (cargos políticos inseridos nos três poderes e suas casas, como vereanças, governos e ministérios). É claro que políticas públicas são importantes, enquanto ferramentas de cidadania e objetivos de luta, mas é preciso ir mais longe. Para além de prestadores de serviços – ou “funcionários da comunicação”, como diria Flusser –, podemos e devemos ser designers militantes, que têm organicidade na sua atuação e estão inseridos em territórios.

“Não é sobre ter cartazes na parede ou compartilhar tais e tais posts. O que devemos aprender é a essência de estarmos chafurdados na realidade social e nos tornarmos criticamente conscientes de nosso inacabamento e dispostos a criar o inédito viável, como diria Paulo Freire.”
Eduardo Souza 

A política que evoco é a da ação concreta sobre a realidade, apropriada pelos trabalhadores, que prioriza o trabalho orgânico e direto junto à nossa classe: nas escolas, universidades, bairros, ocupações, sindicatos, associações de moradores, movimentos de cultura. Afinal de contas, como vamos dialogar com nosso público-alvo se estamos distantes da compreensão de suas demandas, necessidades, preferências e características? Essa política consiste na práxis marxista, que implica a interconexão e a retroalimentação entre teoria e prática – uma não pode avançar sem a outra. Por um lado, uma elaboração teórica sem respaldo em trabalhos práticos é incompleta, anticientífica e idealista; por outro, o trabalho prático sem a guiança de uma teoria sólida que lhe provê ferramentas de avanço é apenas experimentação espontaneísta. 

Além disso, a práxis nos traz uma consequência ainda mais duradoura e profunda. A partir dela, o trabalho político produz, acumula e compartilha conhecimentos que extrapolam o design e nos compõem enquanto sujeitos coletivos. Por isso, quando digo “nós” neste texto, me refiro a quem me acompanha na luta, mas também a colegas designers e a todas as pessoas que desejam mudar o mundo radicalmente. 

Esse efeito agregador é capaz de unificar e fortalecer nossa classe rumo a uma outra vida – não aquela em que inteligências artificiais potencializam a concentração de capital dos bilionários e suas empresas, mas outra, em que temos mais tempo e qualidade de vida para criar ainda mais. Para mim, isso é a revolução. Agora, convido você a imaginar um mundo novo, a elaborar conjuntamente os caminhos a seguir e, quem sabe, a escrever mais textos em resposta.

é arquiteta e urbanista graduada pela FAU-USP (2022), com passagem pelo IUAV (Istituto Universitario di Architettura di Venezia). Atua profissionalmente como designer desde seu último ano de graduação, e atualmente integra a equipe da Casa Rex, além de trabalhar como freelancer. A fotografia é uma de suas paixões, e compõe parte significativa de seu portfolio e trabalho voluntário enquanto militante organizada.
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