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5 de julho de 2021

Utopias na ilustração corporativa

Ilustração por Dominique Kronemberger / Estúdio Passeio

O rompimento da barragem de Brumadinho aconteceu no dia 25 de janeiro de 2019, dia do meu aniversário. Lembro de assistir à cobertura ao vivo, incrédula, triste e com raiva. Deveria ser um acontecimento — como dizem de toda grande tragédia — sem precedentes. Mas não era, é claro. O mesmo tinha acontecido em Mariana três anos antes (e pode acontecer de novo em pelo menos 42 barragens em Minas, a maioria da Vale). Duzentas e setenta pessoas morreram, os rejeitos da mineração contaminaram os rios matando os peixes e afetando o sustento das aldeias indígenas. Minha reação às imagens naquele dia foi o impulso de “fazer alguma coisa”. Mas eu não fiz nada. Na segunda-feira, retomei meus trabalhos de ilustração e voltei a responder meus emails. A indignação de quem vê de fora tem o hábito de se dissipar com o tempo.

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“Saber e não saber, estar consciente de sua completa sinceridade ao exprimir mentiras cuidadosamente arquitetadas, defender simultaneamente duas opiniões que se cancelam mutuamente, sabendo que se contradizem, e ainda assim acreditar em ambas; usar a lógica contra a lógica, repudiar a moralidade e apropriar-se dela (…)” conceito inventado por George Orwell no livro 1984.

Pode parecer, e é, inapropriado começar um texto sobre ilustração falando de Brumadinho, aproximar dois temas tão distantes em todos os aspectos, inclusive em gravidade. Por outro, tem sido difícil — exponencialmente mais difícil desde 2018 — compartimentalizar. Alternar entre o mundo real, caótico, desigual e devastado pelo capitalismo e o mundo meticulosamente ordenado, diagramado e ilustrado do projeto de design corporativo pode causar alguma dissonância cognitiva. A ilustração paga as minhas contas, mas ainda é ilustração, e a constante necessidade de falar sobre a sua importância em reuniões me torna cada vez mais consciente da sua desimportância. Notícias horríveis convivem, nas abas do meu navegador, com cases bonitos de identidade visual. Recorro ao duplipensamento1 quando preparo orçamentos para empresas que, em conversas com amigos, já responsabilizei pela destruição iminente da humanidade. Ao mesmo tempo, busco aprender com quem pensa um design consciente do mundo em que está inserido e imagina possibilidades de futuro. É deste lugar — incerto e movediço, hipócrita, mas minimamente crítico — que falo sobre ilustração. Mais especificamente sobre ilustração corporativa, uma área de atuação onde essas contradições parecem inescapáveis.

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Em referência ao Grupo Memphis, que influenciou a estética dos anos 1980 com móveis geométricos, coloridos e pouco sensatos.

Em março deste ano um artigo chamado “Chegou a hora de deixar de lado os mascotes coloridos das Big Tech?” foi publicado na Eye on Design, revista da AIGA. O texto documenta a resposta cada vez mais negativa, ao menos na esfera das redes sociais, ao estilo de ilustração não-tão-carinhosamente apelidado de Corporate Memphis2, que chamarei mais adiante de Memphis corporativo. O termo serve como um guarda-chuva para todos os personagens vetoriais, atipicamente coloridos, sem joelhos nem cotovelos, com cabeças pequenas e expressões permanentemente satisfeitas que ilustram as páginas de milhares de startups pelo mundo. A origem do mal, ou pelo menos a expressão mais icônica, foi o projeto Alegria, desenvolvido pela Buck em 2017, para o Facebook. Alegria é um sistema de ilustração e animação abrangente, incluindo regras para o desenho de personagens, objetos e cenários — e um nome adequado à sua aparência. Os bonecos (termo muito técnico que uso diariamente para me referir aos meus próprios desenhos) comunicam que as pessoas são inerentemente boas, o amor move o mundo e o Facebook é uma corporação justa e confiável.

Não foi à toa que outras empresas adotaram ilustrações similares. O ambiente das interfaces digitais, que tende a ser um pouco árido e padronizado, fica mais acolhedor com personagens coloridos. O estilo também é “fácil” de replicar. Entre aspas porque, em ao menos um aspecto, os críticos são um pouco injustos: costumam juntar no mesmo saco ilustrações com qualidades técnicas muito diferentes. Mas, em geral, a execução vetorial permite flexibilidade para adaptar tamanhos e composições, o que é útil para designers de produto que não querem depender de um ilustrador toda vez que precisarem entregar uma nova tela rapidamente — algo comum no dia a dia de uma startup. Porém, rápido nunca é rápido o suficiente no universo corporativo. Os sistemas flexíveis se tornaram sistemas modulares, e os módulos cada vez mais granulares, culminando em automatizações como o plugin Blush, que permite trocar as roupas, as pernas e os pelos faciais dos personagens a gosto. Não pretendo discutir as implicações destas ferramentas para as condições de trabalho do ilustrador porque perderia o fio da meada. Basta dizer que isso potencializou a reprodução de uma mesma estética, ao ponto que não apenas designers e ilustradores se incomodaram com a repetitividade, mas também os consumidores dos serviços digitais, que começaram a espinafrar os personagens molengos no Twitter.

Para a autora do artigo que mencionei, o maior demérito do Memphis corporativo é representar uma sociedade harmônica, cooperativa e pós-racial, que serve como fachada para empresas como Facebook, Google, Uber, Amazon etc., cujas práticas pouco igualitárias e antitrabalhistas já estão escancaradas. Se a conscientização política tem um papel nessa queda de popularidade, se a estética apenas ficou cansada, ou um pouco dos dois, de qualquer forma as empresas perceberam que era hora de se reposicionarem. A atual identidade do Mailchimp, concebida pela Collins, combina o trabalho de muitos ilustradores usando a mesma cor (preto) e tipo de traço (gestual, feito a pincel ou lápis) para criar consistência —  uma vitória da versatilidade sobre a sistematização. Por ser uma solução inteligente e imitável, Mailchimp é potencialmente o novo Alegria. Em outro exemplo, as delicadas ilustrações do Whereby, feitas pela dupla Icinori, também subvertem expectativas com sombreados a lápis e muitos detalhes. Do ponto de vista temático, os dois caminhos lidam com o problema desviando dele completamente. Em vez de apresentar um mundo ideal, mostram um universo paralelo, habitado por criaturas surreais com cabeça de macarrão, pássaros-peixe, orelhas com pernas e plantas imaginárias. Em vez da positividade, o escapismo da fantasia.

Ilustrações do Mailchimp e do Whereby.

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Diretamente da Wikipedia: Solarpunk é um movimento que encoraja visões otimistas do futuro sob a luz das presentes questões ambientais, tais como mudança climática e poluição, bem como desigualdade social.

Não faz muito tempo, um thumb chamou minha atenção no YouTube. Era uma animação com cenários e trilha sonora dignos do Studio Ghibli, publicada com o nome Eat today, feed tomorrow — um comercial da marca americana de iogurte Chobani. Para quem não clicou no link, aqui vai uma breve descrição: imagine um pomar idílico, chalés de madeira, frutas sendo colhidas por robôs. Ao fundo, uma cidade futurística e turbinas flutuantes misteriosas (provavelmente uma tecnologia ainda não inventada para gerar eletricidade). No primeiro plano, uma pequena comunidade de pessoas faz uma refeição sob as árvores. O texto é uma carta de mãe para filha sobre a necessidade de cuidar da terra para que as gerações futuras possam herdá-la. O comercial é lindo (assim como todas as outras peças de comunicação da Chobani, muitas ilustradas por alguns dos meus artistas favoritos). Mas, confesso, também me causou incômodo. Scrollei para os comentários e encontrei lá o mesmo debate que estava tendo internamente. Uma pessoa amou e queria que virasse uma série na Netflix. Outra estava indignada com a cooptação do solarpunk3 para fins publicitários. Uma terceira comentou que gostaria de escrever um ensaio criticando a falsidade da utopia corporativa, mas desistiu depois que descobriu que a Chobani era de fato uma empresa muito socialmente responsável. Ao que tudo indica, é mesmo. Em um tour pelas redes sociais da empresa vi que a Chobani promove a instalação de geladeiras comunitárias e apoia movimentos sociais, doou milhares de caixas de iogurte para bancos de alimentos e converteu pontos de venda em dispensas públicas durante a pandemia, entre muitas outras coisas. E ainda assim…

Stills do filme "Dear Alice", do estúdio de animação The Line, para a Chobani.

Qualquer pessoa que tenha procurado uma notícia ou outra sobre como estamos nos saindo no controle do aquecimento global vai rapidamente se convencer de que vivermos no comercial da Chobani algum dia é impossível. Quer dizer, talvez possível para alguns — o que transparece mais nessa outra animação feita para o Festival Annecy 2021. Nela, enquanto pessoas vestindo trajes de banho e chapéus espaciais curtem suas casinhas flutuantes, ruínas de prédios parcialmente afundados sugerem o preço a se pagar para fazer da Terra um grande resort. É um detalhe que provavelmente não passaria se o filme representasse uma empresa. A estética do solarpunk corporativo admite apenas positividade, induz à ilusão de que conseguiremos interromper o colapso — tanto do clima quanto do capitalismo — através de alguma inovação tecnológica que está num futuro próximo e será acessível a todos. Ela oculta, ou mostra já superada, a difícil tarefa de lidar com as consequências do nosso modo de vida.

Se o Memphis corporativo tem problemas, o solarpunk corporativo evidencia ainda mais o fato de que ilustradores e designers gráficos são os encarregados de recuperar a imagem danificada do capital. A fintech Robinhood, por exemplo, que protagonizou uma complexa polêmica mais cedo neste ano, adotou na redefinição da sua marca ilustrações que parecem referenciar os quadrinhos de Moebius, justificadas pelo conceito “investir é imaginar um futuro melhor”.

Ilustração de Liam Cobb para a identidade da Robinhood, projeto da Collins.

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Tecnicamente, então, não estaria errado dizer que a Robinhood tira dos pobres para dar para os ricos.

De acordo com o texto do projeto, também de autoria da Collins, os líderes da Robinhood foram convidados a imaginar o futuro daqui a 50 anos. “Não qualquer futuro, mas um construído em torno da convicção da Robinhood de que a participação coletiva é uma fonte de poder”. Essa convicção se traduz em — a pretexto de “democratizar o mercado de ações” — atrair e reter investidores inexperientes através de mecanismos de gamificação e repassar suas ordens de compra para empresas bilionárias de Wall Street. Estas podem, então, utilizar as informações para orientar suas próprias decisões de investimento4. Mas com naves espaciais e hologramas, esses pormenores ficam em segundo plano.

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Os comentários podem ser cruéis quando se limitam a criticar a falta de originalidade dos ilustradores. A maioria dos ilustradores não está na posição de recusar trabalhos e adapta seu portfólio às demandas das empresas de tecnologia não por falta de imaginação, mas pela dificuldade de encontrar oportunidades em outros mercados.

Eu seria doida se afirmasse que tomaria decisões melhores do que os ilustradores excepcionais que trabalharam nesses projetos, se fosse eu no seu lugar. Pelo contrário, este texto começou como uma tentativa de elaborar uma crise de consciência. Criar ilustrações para a identidade ou campanha publicitária de uma empresa é uma prestação de serviço e sugerir que os ilustradores têm total controle do que produzem é injusto. O que também não quer dizer que não é necessário refletir sobre a nossa responsabilidade, sobre como alinhar melhor nossos discursos e nossas ações. Mas aprendi aqui nesta revista que aquele impulso de “fazer alguma coisa” só ganha fôlego quando é coletivo (do contrário, pode ficar na megalomania). E, da mesma maneira, a crítica não tem valor quando é apenas um julgamento5, precisa ser um convite para o diálogo.

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Que é também co-fundador da Collins, coincidentemente.

Em uma palestra disponível no Youtube, o então Chief Brand Officer da Chobani6 compartilha a sua própria definição de design: “Design é a criação de uma mudança desejável”. A elipse importante aqui é “desejável para quem?”. Quando desenhamos mundos utópicos por encomenda, os interesses do cliente definem os contornos da utopia — não podemos contar com o capitalismo para nos oferecer oportunidades de imaginar um futuro sem ele. Talvez seja preciso criar essas oportunidades nas brechas, encontrar no intervalo entre projetos comerciais, de preferência juntos, formas de colocar nossas habilidades a serviço de outros futuros (ainda) possíveis.

é ilustradora. Em 2022 criou a Salsicha Co., um invólucro para projetos colaborativos ou individuais de ilustração e design. Antes disso, foi co-fundadora e sócia do Estúdio Passeio e da Revista Recorte, da qual participou também como editora. É mestranda na linha de pesquisa Design, comunicação, cultura e artes, na PUC-RJ.
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