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12 de julho de 2021

Paulo Mendes da Rocha: o elogio do conhecimento

As fotografias que ilustram este artigo foram tiradas por Luciana Orvat.

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Bíblia. Lamentações 3:21

“Quero trazer à memória o que me pode dar esperança”1 está escrito à mão, logo ao lado do selo com carimbo dos correios, no pequeno envelope de margens listradas. Par avion. O bilhetinho de formato incomum foi presente de um amigo de admirável fé – também por isso, mandei enquadrar e pendurei na parede da sala, bem ao lado da porta de entrada, numa moldura compacta mas cerimoniosa. Exatamente em frente ao quadrinho fica o sofá de onde escrevo esse texto. Metade-sentada-metade-deitada, equilibro o computador sobre as coxas e justifico mentalmente a ofensa lombo-cervical pela coerência desse meu pequeno ritual: em tempos tão austeros, escrever sobre Paulo Mendes da Rocha – particularmente sobre seu discurso – é menos uma tentativa de homenagem póstuma e mais uma lufada morna de esperança.

“a dona Hannah Arendt diz isso com muita graça: nós sabemos que vamos morrer mas não nascemos para morrer, nascemos para continuar. Ou seja: nossa esperança está em que o gênero humano não morra nunca, que esteja sempre presente no universo (…). Nós somos projetos de nós mesmos.” [PMR / Piñón, 2002]

“Arquitetura, portanto, só poderia ser voltada para a dimensão da nossa própria permanência no universo.” [Mendes da Rocha, 2007]

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FAUUSP. Comunicados Oficiais. Acesso em 4 de julho de 2021.

Meu ingresso na Faculdade de Arquitetura da Universidade de São Paulo se deu dois anos depois da aposentadoria compulsória de Paulo, em 1998, ao completar 70 anos. Professor desde 1961, ele foi afastado de suas atividades pela ditadura militar entre 68 e 80 – seu retorno, nesse último ano, é tido como um marco na redemocratização e na reafirmação dos compromissos políticos e sociais da FAUUSP2. Mas esse desencontro espaço-temporal não impediu que ele fosse, sem dúvida, um dos meus maiores professores. Estudava, lia e ouvia suas reflexões com muito fascínio… tudo soava otimista pra mim. E ainda que seja não apenas oportuno mas necessário contextualizar sua condição de privilégio (Paulo é um homem cisgênero, branco, educado formalmente a partir da perspectiva eurocentrada do nosso ambiente acadêmico) seu otimismo não parece alienado – muito pelo contrário, aliás.  Encontra ânimo justamente a partir da sua percepção aguçada da nossa história (de nosso passado colonial e escravocrata, por exemplo) e da constatação de nossa desastrosa condição contemporânea. Parecia estimular-se pelas possibilidades de transformação, ou ainda, pela  “invenção amparada pelo conhecimento”.

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Paulo tem uma relação muito bonita com a água. Nascido em Vitória do Espírito Santo, cidade portuária, é filho de um engenheiro de portos e navegações que trabalhou no grande programa de combate à seca no nordeste e, posteriormente, tornou-se diretor da escola politécnica da Universidade de São Paulo. Isso lhe rendeu “sensibilidade pra cidade feita de engenhos flutuantes” nas palavras de Guilherme Wisnik (Itaú cultural, 2018). Ou, sensibilidade para movimento, escala e peso.

“Os navegantes que chegaram à América (com barcaças de madeiras movidas ao vento) estão para o conhecimento como os astronautas que, mais tarde, fizeram voos interplanetários3. Dizia-se que não havia nada disso. E o homem que disse que não era o Sol que girava em torno da Terra, mas a Terra que era um pequeno calhau desamparado e que girava em torno do Sol, na mesma época em que aqueles navegantes, numa dessas aventuras, acabaram encontrando a América, [Galileu] foi condenado à fogueira… Em 400 anos você está dando 1 milhão de dólares de prêmio Nobel pro cientista! Portanto as coisas estão mudando. O que eu gostaria de convocar? Essa sabedoria sem dúvida que conhece a natureza e as mais comprovadas verdades com êxito pela experiência … Convocar essa sabedoria para recompor essa roda do desastre” [Mendes da Rocha, 2013]

Em entrevista para o programa Roda Viva perguntam: “São Paulo é um caso perdido?”  Ao que ele responde: “prefiro pensar que é tudo que temos…”.  Se por um lado, compreende que as cidades são caóticas, desordenadas e desiguais, por outro, lembra que sabemos muito mais do que efetivamente somos capazes de colocar em prática.  Portanto, não se trata de caso perdido mas de “um desejo com dificuldades imensas de se realizar (…) Portanto a cidade como uma sucessão de erros, o estado lamentável em que está, é uma constatação estimulante. Nossa riqueza são nossas dificuldades, nossas carências. O universo do nosso trabalho. O estímulo pra fazermos algo.”

Essa é uma ideia central no pensamento do arquiteto: reconstruir a cidade sobre ela mesma uma vez que nossa alternativa a ela é a floresta. E em seu estado bruto, a natureza é muito adversa, é hostil ao homem – um dos objetos fundamentais da arquitetura, portanto, seria evitar o desastre. Ao seu gosto, provoca com a frase que seria assustadora fora de contexto: “a natureza é um trambolho!” Não se furtou, inclusive, a usar o Samba do Avião pra demonstrar que as belezas da Baía de Guanabara só são poéticas porque são vistas da janela. Um homem perdido numa praia, com uma perspectiva mais limitada em relação à própria sobrevivência provavelmente não sentiria o mesmo encanto. Lembra que, em casa, a apreciação da vista pela janela é mais agradável por oferecer também o cheiro de feijão fresquinho vindo da cozinha, do barulho das crianças brincando ao fundo…

Pois justamente conjugando lirismo e crítica que o arquiteto produziu sua obra.

Paulo aponta que a suprema obra da arquitetura, enquanto forma de conhecimento, é a cidade: “esse acontecimento extraordinariamente rico sob todos os aspectos que se pode imaginar”. E que ela existe primordialmente enquanto desejo. Nosso desejo de nela estarmos. Por exemplo: é possível observar nos movimentos históricos de migração do campo para a cidade a esperança de alcançar melhores condições de vida – o acesso a escolas, saúde, saneamento, etc – para que não se reproduzisse a miséria nos descendentes. E a não realização dessas expectativas é constrangedora porque sofremos diante daquilo que sabemos – temos conhecimento sobre o que pode ser feito para que as cidades sejam mais inclusivas, mais democráticas e mais eficientes para todos os seus habitantes, embora tenhamos grandes dificuldades de implementação. Se a cidade é perversa, não é por ignorância, mas porque seu planejamento não está bem-feito. Porque se permite, por exemplo, que o território seja explorado como mercadoria.

“Não posso ver em nenhuma obra do homem insignificância política” [Mendes da Rocha, 2013]

A arquitetura deveria, portanto, realizar a interpretação desse desejo coletivo invocando história, ternura, memória, arte, ciência, técnica, filosofia, antropologia… uma forma de conhecimento multidisciplinar e abrangente. A cidade não deveria ser um mercado onde se constrói arbitrária e exclusivamente por lucro. Essa não poderia ser a diretriz hegemônica de sua formação. Toda a sabedoria que temos à disposição está impedida pela velocidade com que se entrega tudo ao negócio e à especulação. 

“O sistema cala a boca do saber”. [Mendes da Rocha, 2013]

“As coisas não podem acontecer como um acaso histórico, um desvio de interesses particulares; temos que acomodar as populações no seu melhor arranjo dentro das cidades, e não só vender terrenos, como querem os especuladores imobiliários e isso gera um desastre. A cidade é para todos. São os impostos que pagam asfalto, esgoto, o transporte coletivo e não individual pois, como sabemos, o automóvel entope as ruas (não se anda!) e ainda polui a atmosfera…” [Mendes da Rocha, 2013]

Para Paulo, a cidade não poderia ser formada por lotes isolados da rua, ocupados por casas segregadas em bairros exclusivamente residenciais onde a circulação se resolve predominantemente com carros.  É inviável também do ponto de vista da infraestrutura (água, luz, rede de esgoto, transporte, etc.). Sugere cidades mais compactas, adensadas (através da verticalização das moradias) e de uso misto. Nesse sentido, toma como paradigma da habitação contemporânea o projeto do edifício Copan, de Oscar Niemeyer: cinco mil pessoas morando em apartamentos de diferentes tamanhos numa edificação contendo bares, restaurantes, cinema… E que, diferente de tantos projetos mais recentes – complexos de torres multiuso, completamente ensimesmadas e segregadas da cidade (eventualmente até inacessíveis via transporte público ou a pé) – não interrompe o fluxo da cidade, é permeável e em alguma medida funde-se a ela. Exibe a sabedoria do arquiteto que, diante de uma possibilidade, pensou em mostrar que a cidade poderia exibir formas mais consistentes daquilo que se quer dizer por “casa”. Ao invés de um conjunto de torres com janelas que se abrem umas sobre as outras, projeta um edifício esbelto, cuja planta recebe excelente ventilação além da alegria da luz da manhã e da tarde já que a casa se abre para os dois lados. E é divertido o embate posto: enquanto o próprio Oscar atribui as curvas de seu projeto à inspiração encontrada na natureza, Paulo elogia a escolha por ser fundamental para sua sustentação frente ao vento (funcionando como uma vela, só permanece estável porque é curvilíneo).

“A ideia de tecnologia de ponta, de técnica de ciência, é a inteligência da oportunidade de fazer o que tem que ser feito para celebrar o encontro do conhecimento com a oportunidade.” [PMR / Piñón, 2002]

“Arquitetura não deve, portanto, ser funcional, mas oportuna” [PMR / Piñón, 2002]

É curioso, por outro lado, estudar os projetos de casas de Paulo, realizados especialmente no período da ditadura militar, quando teve seus direitos civis cassados pelo Estado, impedido de participar de projetos públicos. Essa produção é de especial interesse para a história da arquitetura na medida em que integra a chamada “escola paulista”, com outros arquitetos. No desenvolvimento dessas residências unifamiliares fica evidente como o pensamento sobre a cidade nunca o abandona – a casa elevada desobstruindo o térreo, que segue livre e poroso à malha urbana, a integração marcante dos espaços externos e internos… Numa dessas casas, por exemplo – especificamente construída para abrigar sua família – as paredes não tocam o teto e, portanto, convidam os moradores a um exercício de convivência. Ou, nas palavras de Catherine Othondo, exigindo “porções de generosidade, transigência e sensibilidade de cada um com o outro”. 

“A simples casa pressupõe a cidade. O arquiteto, enquanto faz a casa, deveria estar pensando a cidade.” [PMR / Itaú Cultural, 2018]

Esse diálogo entre espaço privado e público, que para o arquiteto nunca deveria cessar, engloba a totalidade das etapas de projeto – até a própria construção. Na Casa Gerassi, por exemplo, Paulo ilustra a ideia de arquitetura como discussão. Decide fazer uma casa pré-fabricada, em concreto armado, para um cliente-engenheiro, num dos chamados “bairros nobres” de São Paulo. Dada à praticidade da técnica construtiva, em três dias a casa estava posta em pé e um grupo de moradores da região organizava-se em uma manifestação tentando bloquear a obra sob a alegação de que o bairro era exclusivamente residencial ( ! ). Sua aparente simplicidade formal (pilotis sustentando um pavilhão elevado de concreto aparente) realmente distinguia-se da maior parte da vizinhança. Mas Paulo não atribui à forma o motivo pelo qual não admitiram que aquilo era uma moradia, mas pelo modo que tinha sido construído…

“… Se pegar todo esse discurso (…) a gente sabe o que está dizendo: opressão da classe trabalhadora, o trabalho manual, e carrega com a colher, água, reboco, e alisa tudo, e lambe… e o banheiro de granito e mármore e a cozinha e a sala de taco assim, assado…  daquele modo não se pode fazer casa! Como que a justificar seus próprios equívocos né? Levava 2, 3 anos para fazer uma casa …. até a parede, depois, se não gostava, derrubava! É assim que gente que tem dinheiro para jogar fora faz. Ou seja, reconhecer as suas idiossincrasias no trabalho do outro, desmoralizar o trabalho… Um operário que faz uma parede e depois tem que derrubar porque a dona não gostou, não tem o mesmo prazer em comer sua marmitazinha aquele dia, não é? Ao passo que nós podemos chamar a atenção mesmo para o êxito da técnica.” [PMR / PMR 29’, 2010]7

O olhar crítico sobre as dinâmicas de formação das cidades também tangencia os chamados “projetos de revitalização” como os de São Paulo, cuja degeneração supõe intencional. Paulo acredita que a cidade jamais voltará a ser o que foi e que a única possibilidade de um “revival” dessa área, em sua monumentalidade, é fazer do centro a nova capital da periferia.

“Na região da Luz, por exemplo, pequenos hoteizinhos ao lado da estação representavam a expansão do comércio através da ferrovia. Eles nunca deviam ter sido destruídos (…) pois até hoje precisamos de hotéis baratos. Essa degeneração do centro foi meticulosamente planejada. Você vê que quando querem revitalizar uma área chamam logo ela de algum nome depreciativo, como Cracolândia. São modos de estigmatizar os lugares…” [Mendes da Rocha, 2007]

“É como se não pudéssemos evitar a constatação necessária de que é nos hábitos da cultura popular que surge, sempre, o futuro. Quer dizer: as cidades, todas serão eminentemente populares, serão feitas para todos.” [Mendes da Rocha, 2007]

Nem só de contundência é formada sua obra e pensamento – há doçura e uma sensibilidade afetiva finíssima…. Naquela mesma casa, a das paredes mais baixas, Paulo viveu com sua família entre os anos 70 e 90. E admite que fez o projeto pensando nas crianças…

“Era mais para eles se divertirem, terem o gozo do lugar por dentro e por fora. Uma visão lúdica da casa. Quando é lúdico, tudo funciona: você desfruta uma ideia oposta à da funcionalidade dos espaços” [Mendes da Rocha, 2016]

Dou por certo que sua influência extrapola os limites da arquitetura e dialoga com todas as disciplinas que envolvam alguma atividade projetual.

Nos arranjos internos Paulo realiza esses pequenos e encantadores engenhos que são, para ele, deleite. “A alegria da invenção” ou “um divertimento que surge como uma espécie de elogio à maneira como o problema foi resolvido”. Tudo muito carinhoso. Por exemplo, a tubulação aparente que leva água quente ao chuveiro e serpenteia bem no meio do caminho só pra esquentar a toalha que espera pelo corpo molhado. Ou os quartos com claraboias onde se pode adormecer olhando pro céu.  O sistema de captação e retenção de água da chuva que poderia ser reutilizada, mas que cria também pequenas piscininhas de água pluvial para brincadeiras de verão…

“Fiz a caixa de um tamanho exagerado (1x1m) para gozar mais daquilo (…) Se você quiser, pode tampar o tanque e armazenar água para regar o jardim, lavar…  portanto, aqueles tanques têm a capacidade de acumular a água da chuva pelo tempo que você quiser. O que hoje é tido quase como lei, foi feito como uma atitude puramente diletante, lírica, sobre a chuva, cuja água poderia ser descartada, mas talvez não seja o caso. É tão linda a água da chuva… As crianças gostam” [Mendes da Rocha, 2016]

Pois justamente conjugando lirismo e crítica que o arquiteto produziu sua obra. Uma maneira de projetar amorosa, mas em permanente tensão com o capital. Dou por certo que sua influência extrapola os limites da arquitetura e dialoga com todas as disciplinas que envolvam alguma atividade projetual à medida que deixa lições sobre o estabelecimento de bases críticas pra construção das coisas, num sentido amplo. Se a arquitetura é linguagem solidificada, se é discurso, nos meus ouvidos o sotaque do Paulo vai sempre ressoar auspicioso. Parafraseando ele próprio: “Não é uma maravilha?”.

Paulo Mendes da Rocha faleceu em maio de 2021 aos 92 anos.

Referências:
– Itaú Cultural. Ocupação Paulo Mendes da Rocha, 2018. Website com material relativo à exposição realizada no instituto. Disponível no link. Acesso em: 4 jul 2021.
Mendes da Rocha, Paulo. Casa Butantã: Paulo Mendes da Rocha. Catherine Otondo (org.). São Paulo: Ubu Editora, 2016.
– Mendes da Rocha, Paulo. Maquetes de Papel: Paulo Mendes da Rocha. São Paulo: Cosac Naify, 2007.
– Mendes da Rocha, Paulo. Paulo Mendes da Rocha: projetos 1999 – 2006. Rosa Artigas (org). São Paulo: Cosac Naify, 2007.
– Mendes da Rocha, Paulo. Roda Viva. São Paulo: 2013. Fundação Padre Anchieta / TV Cultura. Entrevista concedida ao programa de televisão e exibida em 10 jun 2013. Disponível no link. Acesso em 4 jul 2021.
– Piñón, Helio. Paulo Mendes da Rocha. Luis Espallargas Gimenez (trad.). São Paulo: Romano Guerra Editora, 2002.
PMR 29’: Vinte e nove minutos com Paulo Mendes da Rocha. Direção: Carolina Gimenez, Catherine Otondo, João Sodré, José Paulo Gouvêa e Juliana Braga. São Paulo, 2010 (29 min.). Disponível no link. Acesso em: 4 jul 2021.

é designer no Estúdio Claraboia, que fundou em 2008. Graduada em arquitetura e urbanismo pela FAUUSP e pós-graduada em design gráfico pelo Centro Universitário Maria Antonia da USP, atua na área desde 2001. Lecionou em disciplinas universitárias e cursos livres entre 2012 e 2017 e foi consultora de design no Itaú Cultural entre 2018 e 2020.
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