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8 de setembro de 2021

O designer enquanto anônimo

Em Design, questões de autoria (e, consequentemente, de anonimidade) são talvez o mais próximo que a profissão chega de ter uma crise existencial e, portanto, de investigar suas próprias origens de forma mais crítica. Como podemos amarrá-las às questões materiais coletivas que constroem a profissão de fato?

Minha primeira experiência com o conceito de autoria no Design aconteceu em um corredor da faculdade, ainda no primeiro período de aulas. Um colega um pouco menos calouro que o resto de nós cochichava sobre o último trabalho que havia feito: um pôster de divulgação para uma banda local, do qual ele se orgulhava tão pouco que acabou pedindo para que a pessoa que o contratou nem o creditasse na peça. Rimos junto com ele e concordamos que faríamos o mesmo no futuro — ninguém ali sabia muito bem o que era Design, mas já tínhamos certeza de que não queríamos nada feio associado aos nossos nomes.

Alguns semestres depois, já munidos da certeza de que Design podia não ser arte, mas era definitivamente alguma coisa, cochichávamos novamente nos corredores. Dessa vez, a discussão era para tentar entender se valia a pena participar de um projeto interessante com um professor designer mais velho. Será que era normal já entrar em um trabalho tendo certeza de que você sairia dele sem nenhum crédito? 

Em retrospecto, acho que ninguém ali sabia muito bem o que era um diretor de arte, mas já tínhamos certeza de que ele seria o dono do que quer que fizéssemos. Na época, para nós, dono parecia ser sinônimo de autor: a pessoa que realmente ganharia alguma coisa com aquilo.

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Em inglês, “author” é gramaticalmente de gênero neutro, mas, como a maior parte das expressões que indicam coletividade, tende ao masculino. Por isso não seria de se espantar que, com essa assinatura, achassem que “Orgulho e Preconceito” teria sido escrito por um homem. No caso das irmãs Brontë, também grandes nomes da literatura inglesa, isso realmente aconteceu. As Brontë usaram, no começo de suas carreiras, pseudônimos relativamente “neutros” em seus trabalhos. No entanto, ao ser apresentado a “Morro dos Ventos Uivantes”, a reação do público foi de que só um homem poderia escrever sobre algo tão brutal.

No seu ensaio Um teto todo seu, de 1929, Virginia Woolf discute o papel da anonimidade na história das mulheres enquanto autoras, criadoras de textos artísticos. O “autor anônimo”, que “escreveu tantos poemas sem assiná-los” seria certamente uma mulher. Isso com certeza foi verdade para Jane Austen, que teve seu primeiro romance, Razão e Sensibilidade, creditado apenas com “por uma dama”. Depois do relativo sucesso desse livro, ela tornou-se anônima de si mesma uma segunda vez, ao lançar sua obra mais conhecida, Orgulho e preconceito: em vez da primeira assinatura, o segundo foi creditado a como “da autora de Razão e sensibilidade1. O ensaio de Woolf é marcante. Não por trazer uma verdade particularmente nova, mas por colocar ao sol um fato já conhecido, embora pouco discutido até então nos círculos literários de seu país. Se até Jane Austen já foi anônima, que esperança existiria para o resto de nós?

Mesmo assim, a reclamação dessa autoria ainda era muito limitada. Quando Woolf publicou esse ensaio, apenas 40 anos separavam o Brasil da escravidão. A Índia ainda era uma colônia do destruidor Império Britânico. África ainda era e viria a ser mais espoliada pelas potências capitalistas europeias. Então, qual era a realidade das autoras fora da Inglaterra de Woolf? Que “teto” era esperado que elas tivessem?

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Essa caracterização foi feita por Fredric Jameson em “Pós-modernismo: A lógica cultural do capitalismo tardio.”

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Essa ideia é desenvolvida por Mark Fisher no seu “Realismo capitalista”.

Entender “anônimo” como símbolo de marginalização social não é tarefa particularmente difícil, ainda mais em nossa sociedade moldada pelo controle, e onde reinam as conquistas individuais. Vivemos em um estado de desconexão com a história e de obsessão com o presente que caracteriza o pós-modernismo2. O “agora perpétuo” vira modus operandi, o passado histórico se transforma em pastiche como meras variações estilísticas do presente, e, enfim, perdemos a habilidade de conceber futuros — principalmente futuros coletivos3. Por isso, a autoria que se esmaece e coletiviza com o tempo – como das fábulas, dos contos de fadas, ou mesmo dos relatos bíblicos – deixa de existir. Ou seja, permanecer colados no presente nos garante que também não conseguiremos escapar do fetiche da autoria.

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Os middle managers, ou gerentes da média gestão, são responsáveis por fazer a ponte entre os níveis executivo e operacional nas empresas. Middle managers atuam como “tradutores” no telefone sem fio das corporações, repassando para os níveis mais baixos aquilo que é informado pela alta liderança.

Quando aprendemos, no fim daquele primeiro período de faculdade, que Design era projetar, aprendemos também que o papel do designer era menos de criar coisas e mais de administrar como elas seriam criadas. Isso é o que faz Jeff Koons, artista famoso por suas obras kitsch que reproduzem objetos cotidianos e figuras da cultura pop. Certa vez, ele se descreveu como alguém que não estava “fisicamente envolvido” nas suas próprias produções. Koons se entendia como um “homem de ideias”, alguém que contratava os “melhores profissionais” para que eles, então, colocassem em prática as obras que ele havia imaginado. 

Assim como tantos designers, Koons é menos artista plástico e mais programador visual. Nessa lógica, existe um espaço de separação que empurra o trabalho criativo para a zona do trabalho burocrático, de gestão. Assim, planejamento e execução ocupam momentos distintos do processo produtivo – tão distintos a ponto de muitas vezes nem conversarem entre si. Se isso soa muito primeira revolução industrial para você, basta pensar que o trabalho do designer UX na Apple precisa do trabalho de construção de um iPhone (enquanto hardware) nos países subdesenvolvidos. Daí a glorificada dicotomia da assinatura de seus produtos: “Projetado pela Apple na Califórnia/Montado na China”, ou Vietnã, ou…

É nessa lógica que o “projetista” assume o papel de middle manager4 criativo, tornando-se um administrador de ideias. E esse lugar de administrador é perfeitamente coerente com a “definição” do que seria o trabalho de design, como o de Koons. Ainda assim, é um lugar construído por contradições, um espaço essencialmente tenso. Essa tensão entre ocupar um lugar neutro (um cálice cristalino, uma tipografia universal) e ser reconhecido como autor de uma obra não é particular do Design, mas ela se manifesta nessa profissão de maneiras particularmente agudas. Especialmente quando consideramos os desdobramentos de classe da divisão entre anônimo e autor.

Por volta de julho do ano passado, teve início o #BrequeDosApps, um movimento organizado por entregadores de aplicativos por melhorias nas suas condições de trabalho. Lembro de sentir uma certa estranheza ao reparar que havia pouco barulho na minha bolha de design gráfico em relação às reivindicações do movimento. Não me parecia ser necessário um pulo muito grande para nos solidarizarmos com a causa. Afinal, nós designers tínhamos várias coisas em comum com os entregadores, incluindo o fato de não existirmos necessariamente como profissionais legalizados, e de vivermos todos de trabalho intermitente, sob demanda. Éramos todos profissionais do setor de serviços, pejotistas – se não por natureza, por falta de opções.

A facilidade que eu sentia em construir a ponte mental entre o que eu vivia e o que viviam os trabalhadores de apps se devia a um fator muito prático: eu tinha acabado de sair de um trabalho de meio período na época e dividia meus dias entre projetos pontuais de maior duração e inúmeros microtrabalhos pós expediente. Antes disso, tinha passado por vários estágios que pagavam pouco mais de meio salário. Listados naqueles aplicativos de comida, existiam pratos executivos de restaurantes de shopping que muito ultrapassavam o preço da minha hora de trabalho enquanto freelancer – e que ultrapassavam também a remuneração das pessoas que os entregavam. 

Se o designer-autor era, como aprendi na faculdade, alguém que projetava, o homem de ideias removido da execução de suas obras premiadas, então alguém como eu — que virava noites tentando decifrar briefings vagos e catando moedas para pagar os juros do MEI — era certamente qualquer coisa que não designer. Eu era o anônimo alienado de sua própria (potencial) autoria.

Assim como em tantas outras facetas, a questão da autoria no Design é geralmente tratada de forma individual, pessoalizada e apartada das questões materiais coletivas que de fato constroem a profissão. Assim como o “anônimo” de Woolf tinha um gênero específico, o autor e o anônimo no Design também têm gênero, raça e classe muito específicas ligados a si.

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Um exemplo pode ser visto no episódio de Paula Scher na série “Abstract”, da Netflix. Na demonstração de seu trabalho como designer, não há imagens dela sentada ao computador. Em vez disso, ela pousa sobre o ombro de vários designers, opina e direciona a criação com esboços em seu caderno, coordenando o processo criativo dos trabalhos.

Atualmente, o designer-autor tenta se afastar da figura do middle manager criativo, que coordena projetos mais do que os pensa5. Nessa tentativa, deseja menos se aproximar da figura do “gênio das artes” por excelência (aquele homem renascentista) e mais se diferenciar de seus próprios pares. Essa diferenciação é mais fácil de ser executada quando o designer-autor tem como seus subordinados estagiários ou outros designers de background “informal”. Não à toa, a diferenciação entre o formal e o informal — ou entre o formado e o em formação — é tão reforçada pelos designers que pessoas sem educação formal frequentemente relatam que não se veem como designers de verdade.

Porém, não é raro que esse estado de diferença exista também entre o designer-autor e pessoas com experiências equivalentes a sua, mas com recortes sociais (étnico-raciais, de gênero) que as marginalizam dentro da profissão. Isso parece, na verdade, ser a regra das agências e dos estúdios. Ou seja, o que solidifica o designer-autor como autor é o papel de chefia, e de maneira relacional, a condição de quem é chefiado por ele. Afinal, pensar o produto não basta, é necessário também ser administrador das ideias criadas, e isso significa terceirizar a sua produção.

Pensar o produto não basta, é necessário também ser administrador das ideias criadas, e isso significa terceirizar a sua produção.

No entanto, apesar de serem ingredientes essenciais para a construção do designer-autor, a condição de gerente e a terceirização não explicam sozinhas a necessidade do designer-autor de se entender (e ser entendido) como dono daquilo que pensou. Sempre existiram outras pessoas para executar o projeto: o Design já nasce, dentro do capitalismo industrial e seus experimentos com a divisão social do trabalho, como profissão alienada da produção. Só para dar um exemplo: apesar de William Morris ter trabalhado coordenando assistentes que colocavam em prática as suas ideias, não é possível diagnosticá-lo retroativamente como designer-autor. Para que o designer-autor possa existir é preciso que o coloquemos em um contexto histórico específico. A terceira condição para a existência do designer-autor, à qual Morris ou outros designers de sua época não tinham acesso por razões de tempo-espaço, é a pós-modernidade.

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Nathan Gerard, “Cursed creatives: alienation, sublimation, and the plight of contemporary creative work”.

O capitalismo tardio e seus ramos, o boom da indústria criativa e da cultura enquanto indústria, a fragmentação das instituições – tudo isso gera uma alienação hiperaproximada nas pessoas que trabalham na seção “criativa” do setor de serviços. Se examinarmos o trabalho criativo sob a lente da psicanálise6, compreendemos que o trabalhador criativo acaba projetando todas as suas expectativas e o seu senso de si no trabalho que realiza. A fusão entre trabalhador e trabalho é um tipo de “colapso” — ou corrupção — do espaço potencial psicoanalítico, onde, idealmente, fantasia e realidade, o Eu e o Outro, convivem  em harmonia. O amadurecimento das ideias, e mesmo a própria criatividade, acontece na conexão saudável do indivíduo com esse espaço potencial. 

No entanto, a alienação laboral de hoje não permite que o trabalhador criativo faça essa conexão, e o empurra para um limbo de produção criativa sem acesso à criatividade. Dessa forma, o desconforto que sentimos hoje ao trabalhar na indústria criativa vem menos de um distanciamento do que fazemos — como descrito em Marx — e mais de uma “proximidade desconfortável” com o nosso próprio trabalho.

Talvez não exista manifestação mais clara desse modo de existência liminal – em que pessoa e trabalho são indistinguíveis e todos os dias são iguais – do que o virar a noite trabalhando por escolha. Por satisfação pessoal. No começo da pandemia, quando eu acumulava vários turnos de trabalho, quase comemorando o aniversário de três anos sem férias, uma amiga me disse em tom de admiração que não sabia como eu conseguia produzir tanta coisa todo dia. Lembro de ter respondido algo como, bom, é só você ter um bom estoque de coisas não postadas. Esse estoque, claro, só existia graças a muitas noites mal dormidas, e a um desespero para o qual não parecia haver linguagem: se eu sou aquilo que eu produzo, eu preciso continuar a produzir muito, ou irei desaparecer.

Portanto, não é estranho que o designer-autor enfatize sua existência enquanto pessoa que “pensa” um projeto mas se mantém à distância. A ideia de que ele é autor – criador sem precisar, de fato, criar – é uma válvula de escape para acomodar essa hiperaproximação. (Isso também vale para o designer-autor em potencial, como o meu colega que se recusava a assinar algo esteticamente “ruim”). O fato é que essa válvula não é acessível a todos os designers igualmente.

O designer-anônimo também projeta os seus desejos e ego no trabalho, e sofre desse novo desdobramento da alienação laboral. Entretanto, não consegue criar uma válvula de escape que alivie a sua frustração enquanto trabalhador alienado como faz o designer-autor. Isso se dá porque o designer-anônimo transita em um lugar de classe/acesso a poder diferente daquele ocupado pelo designer-autor. Assim, o designer-anônimo não pode ser autor porque não coordena outras pessoas na execução de seus projetos e, por trabalhar na prática dos projetos, também não consegue sequer se enxergar como designer.

Apesar disso, a “solução” para a discussão  da autoria no Design não é voltarmos para a lógica industrial do capitalismo fordista. Não é uma questão apenas de que todo designer ocupe “seu lugar de direito” como autor, como a famosa ex-anônima Jane Austen. Os anônimos, aqueles que de fato executam o projeto, continuariam a existir, mas voltaríamos a nomeá-los “operários”, “artesãos” – ou os chamaríamos de qualquer outra coisa. Se autoria define quem é ou deixa de ser designer, se autoria é tão importante para o Design, então é necessário confrontarmos a questão de maneira coletiva e crítica: quando um designer existe enquanto autor, quem perde os créditos?

A ilustração “Escritório” foi cedida por Manda Conti (@um.mandac no Instagram) para ilustrar este artigo

Este texto faz parte da coluna Chão de Fábrica, co-editada por Eduardo Souza. Integram a coluna histórias em primeira pessoa sobre trabalho, que possam inspirar a estruturar demandas e imaginar novas formas de organização.

é ilustradora, formada em Design pelo Campus Agreste da UFPE. Pesquisa cidades e trabalho, e entre uma leitura e outra assiste filmes de terror para relaxar.
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