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3 de agosto de 2021

O design não tem um problema de diversidade

A pintura “Particular”, de Victor Henrique Fidelis (@vctrfdls no Instagram) foi cedida pelo artista para ilustrar este artigo

As questões referentes à diversidade e representatividade na indústria criativa são apenas a ponta do iceberg.

“A indústria criativa não tem um problema de diversidade.”

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Joycelyn Longdon é mestre e doutora em Inteligência Artificial aplicada para o Risco Ambiental pela Universidade de Cambridge. Ela é Diretora Criativa na BLACKONBLACK, uma agência criativa 360 com ênfase em diversidade e é fundadora do Climate In Colour (Clima em Cores, tradução livre) que cria uma intersecção entre ciência climática e justiça social, fazendo com que o debate sobre emergência climática seja mais acessível, diverso e criativo.

Essa frase dita pela pesquisadora Joycelyn Longdon1 que dá início ao TED The missing piece: Diversity in the creative industries tem ecoado na minha cabeça desde que assisti à apresentação. No entanto, não ecoou como uma grande novidade, ou alguma ideia mirabolante, mas sim como uma constatação bem colocada sobre a raiz do verdadeiro problema.

No desenvolvimento do projeto Cadê os Pretos no Design, uma das principais indagações que mantiveram o meu engajamento nesta pesquisa foi: por que eu precisei fazer essa pergunta, pra início de conversa? O que aconteceu no caminho que impediu que designers pretos pudessem ter a mesma projeção dos homens e mulheres cis, brancos e modernistas?

Para responder essas questões, dois tópicos serão abordados de maneira resumida neste artigo:

  1. Os fenômenos que ocorreram concomitantemente com o que chamamos o início do design;
  2. As características que influenciaram o modelo e consequentemente o ensino de design no mundo.

Uma questão histórica

Historicamente, o Design surge dentro do contexto da Revolução Industrial na Europa, que foi liderada pela Inglaterra, para auxiliar na otimização do processo de produção em massa, estabelecendo etapas e acelerando a produção. Este período de industrialização da Europa ocorreu em paralelo a uma sequência de revoluções lideradas pela burguesia, incluindo a ascensão de pensamentos de ordem racionalista, com abordagens filosóficas que defendem a eficiência como principal atributo de beleza dos artefatos – a “harmonia total entre forma e função” (Weinbrener apud Maldonado, 2009). A Europa estava no auge das descobertas científicas, e sobretudo no auge da defesa das ideias racionalistas como grande paradigma para o pensamento e desenvolvimento da sociedade após o Século das Luzes.

A cultura artística mais orgânica começa a ser substituída por uma que possui “fervor pela exatidão” (Maldonado, 2009. p. 22). Somada às tentativas de criar uma naturalização da máquina, não custa muito tempo para que uma via de retorno seja estabelecida: se é possível para o homem europeu que se manipule a máquina para torná-la mais familiar e natural, é possível manipular também a natureza para a exatidão matemática das máquinas.

Paralelamente ao Século das Luzes e à industrialização da Europa, muitos países ainda eram colônias europeias, sobretudo o Brasil, que foi o último país a romper com o sistema escravista em 1888, um sistema que durou oficialmente 388 anos. A Revolução Industrial europeia catalisou os processos de abolição, uma vez que transformou os regimes de trabalho. O sistema econômico das colônias não era mais vantajoso. Isto aprofundou uma crise que já estava se estabelecendo no sistema escravista através de revoltas e insurreições das pessoas africanas escravizadas. Segundo Clóvis Moura, um dos principais fatores que aguçou a contradição entre o trabalho livre e o escravo no Brasil foi a inserção dos grandes fazendeiros de café no mercado global, onde o trabalho escravo já era anacrônico, forçando-os a repensar a organização de trabalho (MOURA, 1992).

Na segunda metade do século XIX, concomitante ao final de alguns regimes escravistas, a Europa iniciava um novo processo colonialista que duraria até a primeira metade do século XX. A Conferência de Berlim, que ocorreu  entre 1884 e 1885, teve como objetivo partilhar o continente africano entre países europeus, devido aos seus interesses econômicos em relação à região. Um dos mecanismos para o controle do território, além da religião, foi a propaganda inglesa com os ideais de trabalho livre e antiescravismo. Um outro fenômeno importante de ser observado ganha força neste mesmo período de efervescência do pensamento racionalista e científico: as teorias de supremacia racial (MACHADO, 2018).

A artificialização da natureza e o racionalismo da forma, que tiveram início no século anterior, seguiram como características influentes no que mais tarde se tornaram a Staatliches Bauhaus (1919–1933) e logo em seguida a HfG-Ulm, Hochschule für Gestaltung Ulm, conhecida como Escola de Ulm (1946–1968), ambas da Alemanha, as quais sentiram de diversas maneiras os reflexos do contexto político do país, como a ascensão e queda do regime nazista e a Segunda Grande Guerra. A Escola de Ulm, de acordo com Gui Bonsiepe, se tornou uma “influência poderosa” que adquiriu “caráter de modelo, mesmo que as conotações normativas, eurocêntricas e universalistas deste termo devessem ser evitadas”. Ele observa outras características que corroboram com esta categorização de modelo, entre elas: o conceito de “boa forma” servia como orientação; a integração extensa das disciplinas científicas em seu currículo; sua historicidade frente ao nazismo; e a alteração da conjuntura política mundial frente à globalização, incluindo novos blocos econômicos (europeu e na América Latina), além do liberalismo econômico.

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O problema  a ser destacado nessa linha do tempo é que os aspectos culturais que atravessam as qualidades do design não são geralmente atribuídos como particulares da cultura europeia no ensino de design. O surgimento do design no mundo, embora tenha ocorrido por questões históricas europeias, é visto como um fenômeno histórico universal  —  assim, é possível hierarquizar os que tiveram sucesso em chegar mais rápido nessa nova etapa da evolução da humanidade, o que coloca a Europa sempre como pioneira, mais evoluída e detentora dos paradigmas. Isso de certa forma se assemelha aos pensamentos de filósofos iluministas como Immanuel Kant e Georg Wilhelm Friedrich Hegel, que defendiam que pessoas africanas, por exemplo, deveriam ser tuteladas, dirigidas pelos esclarecidos. Um esclarecimento que somente os europeus detinham.

O surgimento do design no mundo, embora tenha ocorrido por questões históricas europeias, é visto como um fenômeno histórico universal , (…) o que coloca a Europa sempre como pioneira, mais evoluída e detentora dos paradigmas.

Apesar do conjunto de crenças racistas afirmando que os africanos eram de uma raça inferior, os povos africanos são responsáveis por levar técnicas e tecnologias para as Américas. A metalurgia era uma tecnologia já amplamente desenvolvida em quase toda extensão do continente africano por volta de 1300 a 1200 anos antes da era cristã, por exemplo. Essa contribuição técnica não fica limitada à metalurgia ou à agricultura, mas esteve presente nas técnicas têxteis, marcenaria, carpintaria e ourivesaria, com objetos de diversos materiais nas mais diversas funcionalidades.

O problema do universalismo e sua relação com a diversidade

Analisando os movimentos intelectuais europeus e buscando entender como o pensamento europeu se apresentou e convenceu os outros povos de sua superioridade, a antropóloga africana-americana Marimba Ani defende que o pensamento platônico exerceu uma grande influência no que se tornaria a ideologia europeia que passou a pregar que o modo de vida euro-caucasiano era superior aos modos de vida dos outros povos.

Esta ideia de controle é facilitada por primeiro separar o ser humano em compartimentos distintos (princípios). Platão distingue os compartimentos de razão e apetite ou emoção. A Razão é um princípio ou função superior do homem/mulher, ao passo que o Apetite é mais de base. Eles estão em oposição um ao outro e ajudam a constituir, o que se tornou uma das dicotomias mais problemáticas no pensamento e comportamento Europeus. Esta oposição resulta na divisão do ser humano. Não mais inteiros, nós, mais tarde, nos tornamos a mente vs. corpo de Descartes. A superioridade do intelecto sobre o ser-emocional é estabelecida como espírito separado da matéria. Até mesmo o termo espírito tem uma interpretação intelectualista cerebral na tradição ocidental (Ani, 1994).

O que essa divisão promove é controle (Ani, 1994). Isso porque as partes dessa divisão são hierarquizadas, um é considerado bom e elevado (razão, racionalidade) e o outro é ruim e desprezível (sentidos, emoções), e não partes complementares de um todo. Elas são partes inconciliáveis e conflituosas, em que a parte “boa” deve controlar a parte “má”, uma vez que ser controlado pelas emoções dentro dessa visão é ser inferior. Este comportamento é justificado pelo formato analítico do pensamento europeu, que objetifica a natureza para “pensar adequadamente sobre ela” e por fim, manipulá-la, controlá-la. O controle não pode ser estabelecido quando você está emocionalmente atrelado ao objeto (Ani, 1994). Essa visão polarizada do sentido de civilização foi a base para estabelecer uma lógica de controle em toda a epistemologia europeia, e isso vai ecoar sobretudo com a ascensão do movimento intelectual iluminista do século XVIII.

A filosofia moderna enxergava que povos africanos e originários das Américas não eram racionais (Cunha Júnior, 2013). Somado às diversas descobertas e teorias científicas (e pseudocientíficas), e ao histórico que alguns países europeus já possuíam com povos não brancos, esse foi um prato cheio para negar a capacidade intelectual e astúcia criativa de outros povos, inclusive no desenvolvimento de artifícios e objetos. Faz todo o sentido, pois, como já observamos, paralelamente ao pensamento racionalista e construção do pensamento científico europeu, a Europa estava colonizando outros países, e promoveu a ascensão de teorias científicas racistas para justificar a inferioridade de povos africanos ou originários.

Marimba Ani defende que o universalismo é um projeto bem estruturado, estabelecendo o Mito da uma estética universal (Ani, 1994). A universalidade é um conceito difícil de rejeitar intelectualmente, sobretudo sob uma perspectiva multicultural, isso porque

Embora essa concepção possa tender a estrangular artistas africanos e “não europeus”, eles acham quase impossível argumentar contra, porque ela está emocional e simbolicamente ligada à “fraternidade do homem” cristã — retórica “nós somos todos um.” No clima moralista da ética retórica europeia, a rejeição desta proposição é feita para parecer má […] (Ani, 1994)

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A antropóloga Marimba Ani analisa a cultura categorizando-a em três partes. A asili é a semente germinativa da cultura, é o que determina o que será necessário enquanto estrutura e tática para que a cultura se mantenha viva. Utamawazo, de acordo com Marimba Ani, trata-se do pensamento culturalmente estruturado. “É a forma na qual o pensamento de membros de uma cultura devem ser modelados”. Também se trata da estratégia tomada para o crescimento da asili. Utamaroho por sua vez trata-se da força vital da cultura, a energia (manifestada por ideologia) que faz com que a cultura germine e se propague. Essa análise de Ani aponta para o papel do pensamento racionalista na projeção da cultura europeia como modelo universal.

Isto posto, a germinação do design acompanha mudanças estruturais no modo de vida europeu, impactando irreversivelmente em como o mundo era visto por eles até então. Os comportamentos posteriores às revoluções industriais reafirmaram o que a antropóloga Marimba Ani vai nomear como asili cultural2. Essa semente germinativa da cultura impõe algumas regras para as manifestações culturais (utamawazo) e a estratégia para elas (utamaroho) (Ani, 1994). Entre as manifestações e seus meios estão as características imperialistas e absolutistas  —  sendo o universalismo a doutrina para garantir essa supremacia; e as características consumistas e expansionistas  —  parte do método para a mesma finalidade.

O design é atravessado por qualidades formais dessa cultura, que são majoritariamente racionais e abstratas; e por suas qualidades históricas e filosóficas, que por sua vez são universalistas e supremacistas. Embora não queira retratar o design num quadro determinista, essas qualidades explicam porque existe uma convicção universal do que seria bom design e boas práticas, e a baixa representatividade de outras figuras na história do design. Tais convicções, além de mitigar outras epistemologias como válidas, apagam sistematicamente os representantes dessas outras perspectivas.

Como fenômeno histórico, o design refletiu em sua origem e no começo de sua expansão os ideais da época. Esses ideais foram apropriados, muitas vezes ressignificados, mas ainda são vistos como paradigmas, e com isso quero dizer: são modelos das nossas escolas, são parâmetros para medir a qualidade estética e funcional dos objetos e interfaces que desenvolvemos; ainda dita o que é artesanato (que é majoritariamente afro-indígena, emocional, artistagem, inferior) e o que não é design (majoritariamente branco, racional, neutro, superior).

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Dito tudo isso, gostaria de retomar a fala de Joycelyn Longdon, finalizando-a:

A indústria criativa não tem um problema de diversidade. Ela tem um problema profundo de estruturas ocidentais de superioridade, privilégio e conformidade.

O problema principal do design  —  e da indústria criativa como um todo  —  é que ainda não conseguimos superar a estrutura que o define como modelo. Os africanos (no continente e na diáspora), assim como os povos originários, ainda não foram convidados para se sentar à mesa para definir esses paradigmas que supostamente os inclui, o que expõe a necessidade de elaborarmos novos “padrões” que não sejam universais, mas direcionados para uma perspectiva de tangência, em que olhar para o centro das experiências materiais e subjetivas específicas de cada cultura não impeça de tocar em outras, sem a sobreposição de uma epistemologia e cosmovisão sobre a outra.

O problema principal do design  —  e da indústria criativa como um todo  —  é que ainda não conseguimos superar a estrutura que o define como modelo.

Incluir como fundamentais a historicidade criativa dos povos não brancos e do Sul Global, por exemplo, parece ser promissor em guiar novos paradigmas e intercambiar conceitos sem o atravessamento dos ideais de superioridade cultural ou estética, promovendo um aparecimento dos indivíduos que são carregados com estes princípios, resolvendo assim uma das questões relacionadas à diversidade no meio. Com isso, desmarginalizar as práticas ancestrais, analisar a história do design em outros desdobramentos culturais e tecnológicos abrem espaço para começarmos a reconhecer que os pretos, povos originários e asiáticos sempre fizeram parte da história do design, e uma vez sabido o que foi feito, podemos construir novos espaços e perspectivas mais inclusivas e diversas, em que os modelos sejam igualmente múltiplos.

Não é possível ter resultados diferentes com os mesmos processos sendo maquiados de novos modelos. É preciso romper com essas estruturas que se originam nas mesmas referências: de pessoas, processos de criação e de tecnologias. Este é um convite às reflexões sobre ensino e prática do design dentro de uma realidade que inclua novas narrativas e localizações pertencentes ao desenvolvimento deste ofício, preparando o terreno para uma indústria ou estrutura de design que sejam fomentadas do povo para seu povo, de maneira múltipla e diversa, centralizadas em suas particulares experiências humanas, criativas e tecnológicas.

Referências:
– ANI, Marimba. Yurugu: An African-centered critique of European cultural thought and behavior. New Jersey: Africa World Press, 1994.
– CUNHA JUNIOR, Henrique. Arte e tecnologia africana no tempo do escravismo criminoso. In. ARAÚJO, Emanuel (org.). Arte, adorno, design e tecnologia no tempo da escravidão. São Paulo: Museu Afro Brasil, 2013.
– MACHADO, Carlos Eduardo Dias. A construção da raça branca e a suposta incapacidade intelectual negra para a ciência, tecnologia e inovação. Revista ABPN. v. 10, Ed. Especial – Caderno Temático: Letramentos de Reexistência. jan.2018.
– MALDONADO, Tomás. Design Industrial. Portugal: Edições 70, 2009.
MOURA, Clóvis. A história do Negro Brasileiro. São Paulo: Editora Ática S.A, 1992.

Os textos que integram a coluna Design Radical são co-editados por Rafael Bessa e são complementares ao artigo homônimo publicado na Recorte em maio de 2021. Os autores convidados por ele exploram as diferentes formas em que o design se relaciona com as condições de produção, as outras áreas do conhecimento e a conjuntura política de seu contexto histórico.

é designer pela FAU USP e idealizadora do projeto "Cadê os pretos no design?", pesquisa que busca discutir as questões históricas do design e localizar o papel das pessoas africanas em sua construção e da cultura material no Brasil. Foi premiada pela 26ª edição do Projeto Nascente USP em 2018 pelo projeto "Ensino de design: Por quem, para quem?" desenvolvido em parceria com Ciro Fico. Também é co-fundadora do Coletivo Malungo FAU USP, o primeiro coletivo negro da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP.
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