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13 de março de 2021

O banho de sessenta horas

Ilustração por Beatriz Batisteli / Estúdio Passeio

Imagine um banho que dure dois dias e meio. Se a gente levar em conta banhos diários de dez minutos, esse é mais ou menos o tempo que passamos, por ano, debaixo do chuveiro. Caso não precisássemos tomar banho todos os dias, talvez tivéssemos mais tempo para brincar com os gatos, ficar olhando pela janela ou anotar com mais detalhes o sonho que tivemos na última noite. Mas, mesmo sabendo disso, a ideia de tomar um único banho de sessenta horas por ano soa excêntrica demais.

Quando se trata de gestão de projetos, a busca é sempre por diminuir o tempo gasto nas várias atividades que precisam ser executadas, sem perder qualidade no resultado final. Para isso, existem as metodologias ágeis – como o SCRUM – que nada mais são que estruturas de gestão que permitem mensurar o esforço empregado para realizar cada tarefa e priorizá-las da maneira mais eficaz. Umas das premissas que considero mais interessantes na metodologia SCRUM é que devemos levar em conta o tempo que gastamos nos adaptando de uma tarefa a outra, pois precisamos parar pra relembrar do que se trata o projeto, mesmo que rapidamente, a cada vez que trocamos de contexto.

Como um exemplo, considere a tarefa de fazer três listas em uma folha de papel: uma de 1 a 10, outra de I a X (1 a 10 em algarismos romanos) e a terceira de A a J. Você pode escolher entre duas abordagens. Na primeira, você deve colocar um item de cada lista por vez no papel (1, I, A; 2, II, B; 3, III, C… 10, X, J); no segundo modo, você deve concluir cada lista para passar pra outra (1, 2, 3… 10; I, II, III… X; A, B, C… J). Já fiz esse teste com algumas pessoas e é considerável o ganho de tempo ao se fazer da segunda forma, em que a gente só precisa mudar de contexto duas vezes ao longo do exercício (ao invés de mudar cerca de trinta vezes).

Aplicando esse modo de pensar ao nosso dia a dia, certamente ganharíamos bastante tempo ao tomar um único banho no ano, comendo uma única refeição de mais ou menos 250 kg ou tomando cerca de 700 litros de água de uma só vez – janeiro seria bem agitado. No entanto, assim como o sol não permanece no nosso campo de visão por seis meses seguidos (desculpa aí, galera que mora no Círculo Polar Ártico), há ciclos que são fundamentais para o delírio que é viver em uma rocha gigante que se movimenta no espaço.

Os dias são compostos por uma sucessão de atividades que se alternam, e muitas delas fazem sentido através da repetição e do vazio presente no intervalo entre uma ocorrência e outra. É esse vazio o responsável pela reação química que faz com que uma mistura de água e farinha fermente e cresça, se transformando em um aerado pão. É o silêncio em uma conversa que abre espaço para assimilarmos o que a outra pessoa falou ou refletirmos sobre uma nova ideia que nos foi apresentada. Quando preenchemos cada segundo do nosso dia com uma tarefa, uma olhada na rede social do momento ou com o som constante de um aparelho de televisão, não liberamos espaço para que o vazio se instaure e aja sobre nós – mesmo que lentamente, como os movimentos incessantes das placas tectônicas sob nossos pés.

Pode ser muito produtivo aproveitarmos a brecha entre uma atividade e outra para concluirmos uma terceira tarefa, mas assim como plantar muitas árvores de uma vez não faz com que nenhuma delas cresça mais rápido, realizar diversas ações ao mesmo tempo nem sempre resulta em frutos melhores. Muitas vezes, esses frutos se originam de um longo processo, cheio de vazios e silêncios.

Este texto foi originalmente publicado em setembro de 2020 no Medium do autor. Em março de 2021 foi editado e ilustrado para a Recorte.

é natural de Ribeirão Pires e hoje vive na cidade de São Paulo, onde só se locomove de bicicleta. Gosta de olhar para o céu, de fazer longas caminhadas e de estabelecer conexões aleatórias. É sócio e cofundador do estúdio de design Daó.
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