No dia 19 de janeiro de 2023, a primeira página da Folha de S.Paulo estampou uma foto que resultou em ânimos exaltados na internet, com defesas e críticas. Na imagem, o presidente Lula esboça um sorriso por trás de um vidro estilhaçado. Essa publicação ocorreu pouco depois da tentativa de golpe em 8 de janeiro, e a crítica à foto surgiu da sugestão de que Lula estaria sofrendo violência — levando um tiro visualmente metafórico, mas, mesmo assim, um tiro.
Gabriela Biló é autora do livro A verdade vos libertará publicado pela editora Fósforo em 2023. O designer Pedro Inoue e o projeto Medo e Delírio em Brasília são coautores. O teor da publicação é claramente antibolsonarista.
Duas questões monopolizaram o debate em torno da imagem: a técnica e a artística. A primeira reflete o fato de muitos não estarem familiarizados com o efeito fotográfico de múltipla exposição. A segunda sugere que a fotografia deve ser vista sempre pela ótica da liberdade artística, um debate antigo que foi atualizado pela autora da foto, Gabriela Biló, considerada uma das melhores fotojornalistas brasileiras1. Acreditamos que ambos os argumentos atrapalham mais do que ajudam e que o debate deveria focar na fotografia como mensagem política. Este texto surgiu de um debate entre designers no podcast Visual+mente. O que está escrito aqui é uma síntese e uma ampliação do que foi debatido.
A técnica da “múltipla exposição”
Uma das questões que confundiram muitos críticos e monopolizou o debate foi o fato de a fotografia ser uma “múltipla exposição”. Muitos não sabiam do que se tratava, o que levou a fotógrafa a postar uma explicação em seu perfil no Instagram. Essa técnica se refere à sobreposição de duas ou mais imagens diferentes, criando uma nova imagem a partir dessa união. Como a própria Gabriela explica, trata-se de uma alusão à fotografia analógica, onde um único fotograma poderia ser exposto duas ou mais vezes, criando sobreposições. Esse recurso pode ser emulado em câmeras digitais profissionais, mas é mais habitual que nos deparemos com múltiplas exposições como resultado de pós-produção. Ou seja, um truque de Photoshop que hoje poderia ser feito em qualquer aplicativo de manipulação de imagem para smartphones.
Como se trata de uma técnica relativamente simples, podemos conjecturar que a verdadeira fonte da confusão foi o fato de a foto em questão não se encaixar no senso comum do fotojornalismo. Essa “múltipla exposição” é, mais precisamente, uma fotomontagem. Mas não se trata de uma colagem com as da dadaísta Hannah Höch, creditada como inventora dessa modalidade de expressão gráfica. A foto da Gabriela Biló não é uma justaposição de imagens desconexas, capaz de criar um profundo desconforto no espectador, como muitas das obras da Höch. O tipo de fotomontagem em questão é muito utilizada no contexto da publicidade, mas é menos comum no jornalismo diário. Quando não havia Photoshop, esse tipo de manipulação de imagem tinha o objetivo de criar a ilusão de que não houve sobreposição de imagens, mas que se trata de um fato, de que a foto original era daquele jeito. A montagem sugere que a fotógrafa teria tirado uma foto de um quadro do Lula estilhaçado pela horda que invadiu os três poderes em Brasília.
Ao colocar uma fotomontagem como essa na primeira página da Folha, a publicação testa a capacidade de interpretação do leitor. Costumamos acreditar que o fotojornalismo é um recorte da realidade, isso porque a fotografia sem manipulação é um caso raro pictórico que pode ser considerado uma evidência factual – serve tanto como prova de um crime quanto como uma lembrança de valor afetivo.
Mas, ao se entender que não se trata de um exemplo de fotojornalismo tradicional, nada foi realmente esclarecido. Voltamos à estaca zero, a foto continua sendo estranhamente ambígua, especialmente ao ser publicada da maneira que foi, dias depois de um ataque ao novo governo brasileiro.
Fotografia é arte?
Quando criticada, a fotógrafa se defendeu afirmando que a fotografia é uma obra de arte. Esse argumento sugere que, como artista, ela não deveria ser totalmente responsabilizada pelas interpretações que as pessoas fazem da foto. Como obra de arte, a fotografia seria essencialmente polissêmica, uma obra aberta a todas as possíveis interpretações. A reação de muitos críticos foi que se trata de uma peça de comunicação jornalística e que jornalismo não é arte. Isso lembra bastante um debate antigo entre designers e outros profissionais: será que design é arte? Uma peça publicitária pode ser arte? O que deve ser considerado arte fora do contexto do mercado da arte? A questão aqui pode ser resumida à ideia de que algo essencialmente utilitário – como cadeiras ou fotos jornalísticas – estaria fora do escopo da arte e que a função daquela foto era apenas informar.
Essa defesa contribuiu para confundir ainda mais: qualquer fotografia, seja ela fotojornalística ou não, pode ser uma obra de arte. Discutir aqui se a fotografia é arte é irrelevante. A jornalista Fabiana Moraes colocou isso de forma contundente em resposta à fotógrafa no Instagram. Fabiana lembra que a cineasta alemã Leni Riefenstahl (1902-2003) é uma grande artista, sua obra é claramente “arte”, mas seus belos filmes foram feitos para o regime nazista. O ponto é que um artista não deve ser isentado de sua responsabilidade social e política.
O argumento de que uma obra de arte é polissêmica e que, portanto, transcende as limitações da comunicação jornalística é simplesmente absurdo. Arte ou não, a foto estava na primeira página e serviu seu papel comunicacional. Além do mais, qualquer coisa é potencialmente polissêmica. O que determina o seu significado é o contexto em que se encontra. Ao ser publicada da maneira que foi, a foto passou a fazer parte de um contexto jornalístico específico, e é nesse cenário que os leitores costumam compreender o significado de fotografias.
Essa defesa da foto pelo viés artístico se mostrou equivocada, mas nem por isso a fotógrafa deveria ser o principal alvo das críticas. Como veremos, existem muitos outros personagens nessa história.
Se a fotografia é uma mensagem, quem é o mensageiro?
Roland Barthes faz essa afirmação no livro “Image, Music, Text” de 1977.
Roland Barthes foi um dos mais importantes pensadores da fotografia e de seu papel como meio de comunicação. Para ele, a fotografia jornalística é uma mensagem2. O fotógrafo é apenas uma parte na criação de sentido dessa imagem. A foto, antes de ser publicada em um jornal, foi tratada, cortada, diagramada, em suma, editada de várias maneiras por pessoas diferentes.
Quando se faz a primeira página de um jornal, esse processo de cocriação costuma envolver pelo menos o editor de arte, ou um diagramador, e o editor chefe de redação. É claro que não é incomum incluir vários outros jornalistas para discutir o conteúdo dessa página ao longo daquele dia – ela pode ser modificada várias vezes até representar aquilo que se quer comunicar. Os interesses de uma fotógrafa que colabora com a publicação não será, certamente, a prioridade na tomada de decisão dos responsáveis pela página. A primeira página também contém outros elementos, como a chamada principal: “No foco de Lula, a presença militar no Planalto é recorde”, que estreita a leitura e sugere a vulnerabilidade do presidente. Mas o mais grave, no caso da Folha, é que o único resquício de autoria associado ao conjunto título+foto é o nome da fotógrafa acima da imagem. Embora, na realidade, a página e o conjunto de elementos que dão sentido àquela imagem tenham outros autores.
O texto “A morte do autor” faz parte do livro “O rumor da língua”, de Roland Barthes, publicado no Brasil pela Martins Fontes em 2004.
“A retórica da imagem” faz parte do livro “O óbvio e o obtuso”, de Roland Barthes, publicado no Brasil pela Nova Fronteira em 1990.
É relevante pensarmos aqui na crítica que Barthes fazia ao conceito de autor3. Apesar de Barthes se referir à autoria como um problema literário, acreditamos que ele não se incomodaria se direcionarmos sua problematização para o campo de retórica da imagem4, campo em que ele mesmo foi pioneiro. Para Barthes, a ideia de que uma obra deve ser vista como a “voz” de determinada pessoa que a criou é uma ficção. A valorização do autor como o locus de sentido de uma criação não reflete a realidade de como lemos as coisas. Toda obra tem uma vida própria: ela pode ser vista de várias maneiras que independem da ideia de um autor ou até da consciência de que tal pessoa veio a existir. Um importante criador de significado é evidentemente o próprio leitor. Assim, uma fotografia possui uma riqueza de sentido que se revela a partir do contexto em que um leitor a observar.
O crédito de uma foto é um exemplo de autoria apenas no sentido legal, ou seja, a quem pertencem os direitos autorais daquela imagem. Mas se quisermos procurar o autor do sentido da imagem, então é necessário se pensar em como e para quem ela é apresentada, focar no contexto da imagem. A foto em questão veio diagramada na primeira página de determinado jornal, que foi concebida por uma equipe de profissionais, logo ela não pode ser considerada um objeto isolado feito por uma única pessoa.
Se voltarmos então à questão da foto como mensagem, precisamos determinar quem é o emissor desta. Segundo Barthes, esse seria o papel da equipe editorial do jornal juntamente da equipe técnica responsável pela fotografia, incluindo quem fotografou. Nesse sentido, o próprio jornal é também, em um sentido metonímico, autor/emissor da mensagem estampada na primeira página.
O sentido da imagem, qual é sua mensagem?
Essa é uma questão difícil de responder, porque não está claro o que se queria dizer através daquela fotografia, da maneira como foi apresentada no jornal. É um caso incomum no jornalismo, em que é difícil saber com clareza a mensagem pretendida pela publicação. Haveria a intenção de apresentar uma imagem com mais de um sentido? Algo como a famosa ilusão de ótica em que um desenho consegue representar simultaneamente um coelho e um pato? Nessa imagem paradoxal, em que duas interpretações radicalmente distintas são possíveis, se o observador lê o desenho da esquerda para direita é provável que veja o bico do pato e conclua que os olhos pertencem a esse animal. Mas se a leitura for da direita para a esquerda, a nuca do pato pode parecer o focinho de um coelho e a interpretação passa a ser outra.
Se era a intenção do jornal apresentar uma imagem com múltiplos significados, só nos resta fazer conjecturas. Como se trata da primeira página, uma provável interpretação deveria ser de que a foto representa um fato ocorrido, a imagem do presidente que foi estilhaçada, mas isso não pode ser o caso, pois se trata de uma fotomontagem. O seu sentido então parece ser subjetivo — poderia ser a imagem da vulnerabilidade do presidente ou do desejo do público em causar violência contra as sedes do estado, relacionadas à imagem do Lula por associação. O que chocou muitos leitores é que, à primeira vista, a foto parece sugerir um tiro simbólico no peito do chefe de Estado.
Por que um veículo de jornalismo diário, que não é conhecido por cultivar mensagens conotativas, mas pela clareza factual denotativa, optou por apresentar o atual presidente daquela maneira poucos dias após o fatídico 8 de janeiro? Trata-se de um jornal de grande circulação com interesses próprios, não de um pequeno veículo composto por profissionais inexperientes, vítimas de um mal-entendido.
Não podemos esquecer que Lula foi preso injustamente e voltou ao poder pelo voto popular. Um dos principais lemas de sua campanha foi sua luta contra a fome e a miséria em um país marcado por desigualdades alarmantes, ignoradas pela grande maioria dos líderes políticos e meios de comunicação do país. Logo, a escolha da Folha de S.Paulo em publicar uma foto que pode sugerir violência contra Lula, em um momento de vulnerabilidade do presidente, fala mais do que qualquer editorial poderia.
Este texto nasceu de um debate promovido por Rafael Ancara, no podcast Visual+mente (episódio 188 – Foto, estilhaço e contexto), em que ele, Bárbara Emanuel e Ricardo Cunha Lima discutiram a polêmica da foto estilhaçada de Lula, na primeira página da Folha de S.Paulo, poucos dias depois de sua publicação. Os três estão oferecendo um curso de design de informação e retórica visual na pós-graduação da UFPE, que tem como objetivo repensar a comunicação no design através da teoria da retórica e se afastar da tradição da neutralidade positivista que se instalou no Brasil pelo modernismo europeu.