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22 de março de 2023

Meu quilo de sal: design e uma conversa atrasada sobre saúde mental

Léxico
eu tenho a pedra da loucura
e espelhos suficientes
para cair
no abismo prateado
levo comigo
alguns penduricalhos
de escambos passados
faço garimpo de imagens
com peneira de pano
a poeira a ruir
este léxico        trágico

Fragmento da obra pictórica A Extração da Pedra da Loucura, do pintor holandês Hieronymus Bosch (1450-1516), que inspirou o poema “Léxico”, de Matheus de Paula.

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Em fevereiro de 2021, a CNN Brasil publicou uma reportagem com a seguinte manchete: “Venda de antidepressivos cresce 17% durante a pandemia no Brasil”. Dois anos depois, na matéria “Por que o Brasil tem a população mais ansiosa do mundo”, publicada pela BBC News Brasil em fevereiro de 2023, o país aparece como líder mundial em casos de ansiedade patológica. Outro dado importante presente na reportagem é que a prevalência global de ansiedade e depressão aumentou em 25% no primeiro ano da pandemia.

2

Somatização é quando a mente, por meio de pensamentos e do estado emocional em conflito, manifesta dores e doenças no corpo físico. Através das nossas condições psicológicas, o corpo pode responder apresentando um problema que até então não existia.

Não surpreende o fato de que o Brasil teve um aumento significativo no consumo de drogas psiquiátricas desde 20201. Com uma realidade de terra arrasada por dois anos de um governo golpista seguidos de mais quatro de outro de extrema-direita e uma pandemia global que só no nosso país matou cerca de 700 mil pessoas, é perfeitamente compreensível que os níveis de ansiedade e depressão da população tenham atingido marcas exorbitantes – o cenário de desemprego, estresse do confinamento e luto puxaram a linha dessa estatística para cima. É possível dizer que o aumento seria ainda maior se a totalidade da população acometida por algum transtorno desse tipo tivesse buscado – e conseguido – a ajuda necessária, ou seja, se esses casos não fossem subnotificados.

É interessante pensar, enquanto comunidade, quais têm sido os efeitos desse panorama na saúde mental de designers e demais envolvidos na indústria criativa. Uma indústria cada vez mais orientada à precarização do trabalho, que se manifesta na forma de metas abusivas e prazos apertados. Profissionais criativos ainda convivem com uma marca nada saudável: a do artista torturado, o gênio difícil com uma mente brilhante. O perfil estereotípico de grandes artistas das artes visuais e da música é repetido em todos os meios de criação e em nada ajuda na compreensão desse fenômeno que parece se agravar a cada ano. Os estágios do capitalismo tardio parecem estar intrinsecamente ligados a essa somatização2 exacerbada. A busca feroz por um ideal de produtividade, eficiência e felicidade instantânea tem nos adoecido sem que necessariamente nos percebamos no vórtice acachapante que esmaga nossas subjetividades e parte nossos sonhos ao meio.

Em números, estudos dizem que há pouca correlação entre profissionais criativos e a incidência de transtornos mentais. A probabilidade de ser acometido por algum tipo de transtorno é a mesma da população em geral. Mas sabemos que os ambientes em que trabalhamos, com suas demandas e críticas constantes, são um meio perfeito para a proliferação de ansiedade em suas diversas manifestações, além de outros tipos de desolação. Muitas vezes, nossa prática é alimentada por dúvidas e autocríticas rigorosas. Infelizmente, a experiência da universidade não nos prepara para esses ambientes, e o assunto ganha contorno de tabu por quase nunca ser mencionado. Há um sentimento vigente de que questões de saúde mental precisam ser abafadas se você quer construir uma reputação e ganhar alguma relevância profissional. Mas e quando isso não é uma opção?

A busca feroz por um ideal de produtividade, eficiência e felicidade instantânea tem nos adoecido sem que necessariamente nos percebamos no vórtice acachapante que esmaga nossas subjetividades e parte nossos sonhos ao meio.

Quero falar da minha experiência pessoal de maneira mais extensa, mas, antes, uma breve pausa para a descrição de um sonho: era noite e eu estava em uma casa, no alto de uma colina, no que parecia ser uma festa ou jantar. Os convidados, todos bem-vestidos, circulam animadamente por uma sala iluminada. De repente, entram homens encapuzados e começam a atirar em todo mundo. Sou atingido por dois tiros, mas consigo sair da casa e com sofreguidão caminho em direção à borda de um precipício. A próxima imagem que me marcou é um clichê dos pesadelos: a queda. Me vejo caindo em direção ao mar e, quando finalmente atinjo as águas congelantes, meu sangue atrai uma horda de tubarões que avançam para me devorar. Acordo com um grito e percebo que estou completamente suado. 

Esse filme projetado por meu cinematógrafo onírico foi inspirado pelos medos que sentia em relação ao meu emprego numa startup unicórnio. Essa foi a primeira associação que fiz. Vivia lutando para me adequar àquele ambiente. Sentia pressões de todos os lados para entregar um trabalho de alto nível, como parte de um time supercompetitivo, em meio a outros designers talentosos. Somada a uma crescente avidez por metas individuais que se transformavam em bônus trimestrais, começou a crescer em mim a sensação de que aquele castelo de cartas estava prestes a sofrer as intempéries de uma ventania. Consequentemente, eu sofreria uma queda brusca do aparente torpor que minhas conquistas individuais pareciam me dar. Não muito distante dessas preocupações estava o fato de que eu sou uma pessoa vivendo com transtorno mental crônico, levando um dia de cada vez nessa batalha em andamento. 

Voltando alguns anos atrás, a psicose apareceu na minha vida enquanto eu ainda estava na Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), estudando Design, quase exatamente um ano após um intercâmbio muito sonhado para o Reino Unido pelo Ciências Sem Fronteiras. Era 2016, o fatídico ano do golpe, e eu vivia várias tentativas de conseguir um estágio legal, falhando em todas as seleções, cada vez mais dependente dos meus pais financeiramente e com pouca ou nenhuma autonomia. Eu tinha 22 anos. Havia também a promessa de que a experiência internacional acrescentaria um atrativo a mais no meu currículo, o que adicionava uma pressão extra para que eu finalmente decolasse. O que aconteceu foi exatamente o contrário. Com dificuldade em aceitar minha sexualidade e me debatendo num ambiente familiar que não acolhia essas questões, e que foram agravadas pelo desemprego, afundei em uma depressão profunda, que começou a ganhar contornos ainda mais sombrios com manias de perseguição e uma desorganização mental completa. Aquele fim de semestre marcou minha primeira internação psiquiátrica, e tudo pareceu suspenso por um momento. 

Acolhido pelo Centro de Referência em Saúde Mental Regional Oeste (Cersam-Oeste), em Belo Horizonte (equivalente ao trabalho realizado pelos Centros de Atenção Psicossocial – CAPS), iniciei o meu tratamento de forma totalmente gratuita pelo SUS. Tanto a minha estadia nas dependências do Cersam-Oeste quanto os primeiros remédios e assistência imediata que recebi não tiveram nenhum custo para minha família. É importante esse reconhecimento de uma política pública efetiva, pois esses mesmos aparelhos de saúde estão constantemente sob ataque, justamente porque acreditam na política antimanicomial e no tratamento em liberdade. Durante o último governo, absolutamente retrógrado, o investimento e manutenção desses espaços foi gravemente limado, mas graças à resistência da comunidade esses serviços continuam de pé. 

Com dificuldade de retornar à universidade com o mesmo vigor que eu demonstrava antes, e reaprendendo a me socializar, fui aos poucos perdendo o gosto pelas escolhas que fiz no que parecia ser outro tempo. Foi custoso terminar a graduação e tive que pausar a entrega do meu trabalho de conclusão em 2018 por causa de um segundo surto psicótico, do qual me recuperei de forma mais veloz que o anterior, apesar de mais vertiginoso. Deixar a universidade sabendo que nos últimos anos o meu desenvolvimento havia sido altamente prejudicado por circunstâncias que fugiam do meu controle, não ajudava a atenuar o sentimento de inferioridade em relação a outros talentos, nem o prejuízo às minhas habilidades técnicas. A maneira como eu passei a me colocar no mundo depois desses eventos traumáticos mostrava uma resignação pautada no ressentimento. Eu que antes queria muito pertencer a um grupo de pessoas que estavam tomando a indústria de maneira inovadora, agora via essa possibilidade com muito mais descrença. A falta de autoestima se tornou um imperativo que me condenava à inércia.

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Em Dysphoria mundi, livro ainda não publicado no Brasil, Paul B. Preciado explicita os mecanismos de operação da psiquiatria no contexto neoliberal.

Foi a minha psicóloga quem me mandou o link para o processo seletivo do programa para pessoas com deficiência da startup que mencionei no início deste ensaio, em abril de 2021. A princípio, estranhei me ver como uma pessoa com deficiência, mas uma médica que me acompanhava na época me explicou que a deficiência psicossocial agora era considerada nesses processos e que o meu caso se enquadrava nesse diagnóstico. Aqui é interessante perceber o mecanismo pelo qual a psiquiatria, no contexto neoliberal3, opera sua política de diagnóstico para autorizar alguém como eu a ter um direito básico – um trabalho – quando minha experiência não é inscrita sob um signo de normalidade. Assumir-me como “deficiente” e perceber o grau de imparidade que um transtorno mental grave e debilitante me impunha não era exatamente fácil. Já era comum o sentimento de vergonha social e inadequação imposto por uma condição sobre a qual eu tinha pouco controle, e a sensação de que eu tinha ferido várias pessoas no caminho – inclusive eu mesmo – era latente. 

Em nenhum momento pensei que poderia ter alguma chance nessa seleção, mas os primeiros passos do processo seletivo pareceram humanizados, e meu interesse foi aumentando conforme eu avançava. Quando finalmente veio a resposta positiva, vibrei muito e pensei que iniciava ali um novo capítulo da minha vida. Um emprego CLT com todos os benefícios garantidos, plano de saúde e participação nos lucros. Tudo seria diferente. E de fato foi por um instante. Mas, a cada projeto que eu concluía, o custo mental daquela nova empreitada parecia mais caro. No momento em que aquele pesadelo passou na minha sessão de filmes particular, eu já duvidava se conseguiria sustentar o meu emprego por muito mais tempo. 

Nascem assim novas mentes ansiosas: todas as pessoas que sentiam algum senso de segurança em seus trabalhos entraram em modo de sobrevivência.
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Em artigo intitulado “Tech CEOs screwed up” publicado na revista Insider, o jornalista Ed Zitron desloca a responsabilidade da onda de demissões no mercado de tecnologia para os verdadeiros culpados nesse processo: CEOs e a gestão ineficiente empregada por eles causaram esse estrago. É taxativo em sua crítica: “com grandes poderes vem nenhuma resposabilidade”.

Não é novidade que, diante de metas cada vez mais absurdas, o modelo de aposta financeira das empresas desse tipo criaria uma onda forte de demissões. Não sendo possível sustentar o crescimento que a pandemia inflou nos negócios on-line, nem convencer os investidores a apostarem mais dinheiro em empresas sem qualquer horizonte de retorno, os cortes pareciam um caminho “lógico” e uma saída acertada tanto para as big techs americanas quanto para as empresas de tecnologia do Brasil. Falsamente assumindo a responsabilidade4 por esse caos generalizado disfarçado de autorregulação do mercado, CEOs do mundo todo continuam se pronunciando à imprensa para lamentar cortes, mas prometem um novo caminho focado na eficiência de suas “operações” e esperam que isso seja suficiente para justificar a atrocidade que é aniquilar milhares de postos de trabalho e os impactos disso na vida de milhares de famílias. Nascem assim novas mentes ansiosas: todas as pessoas que sentiam algum senso de segurança em seus trabalhos entraram em modo de sobrevivência. 

A onda de layoffs, sozinha, já daria caldo para a deterioração da saúde mental de muitos profissionais, fossem eles da indústria criativa ou não. Mas a maneira como esse processo foi conduzido mostrou ainda menos humanidade vinda desta entidade sem rosto que atende pelo nome de mercado. Quando fui chamado para uma conversa numa manhã de quinta-feira em outubro de 2022, pensei que receberia um feedback sobre alguma peça que eu estava criando, e, com pouca surpresa e alguma preocupação, recebi a notícia de que seria “desligado” imediatamente. “A caneta caiu. Sinto muito.” Essas foram as palavras de um gerente que eu absolutamente adorava. Relaxei, pendendo o meu corpo para trás na cadeira, e, enquanto ligava para minha mãe em busca de suporte emocional, perdi todos os acessos relacionados à empresa. Não consegui sequer me despedir dos meus colegas. “Pelo menos eu estou em casa”, pensei, e passei o resto do dia deitado na cama um pouco desnorteado. Não fui surpreendido porque já estava sentindo minha relação com a “marca empregadora” abalada, no entanto não havia reclamações sobre o meu perfil de trabalho nem sobre as metas que eu estava cumprindo.

No meu time, outro designer que também era do programa de pessoas com deficiência foi demitido. É bem verdade que, numa planilha, nossos nomes apareciam no topo do risco: significavam mais gastos com planos de saúde e mais necessidade de assistência e supervisão durante nossas jornadas de trabalho.

A excruciante espiral de raiva e culpa que as semanas seguintes reservavam para mim não estava prevista. Como eu poderia ter sido tão ingênuo ao pensar que uma empresa que tinha um programa de Diversidade e Inclusão, do qual eu ironicamente havia feito a identidade visual, e um portal que eu tinha ajudado a criar, não iria desabar em cima justamente dos grupos vulneráveis aos quais eles pareciam acolher? No meu time, outro designer que também era do programa de pessoas com deficiência foi demitido. É bem verdade que, numa planilha, nossos nomes apareciam no topo do risco: significavam mais gastos com planos de saúde e mais necessidade de assistência e supervisão durante nossas jornadas de trabalho. Acreditar que o “valor que eu entregava” para a empresa seria o bastante para me blindar desse massacre era mesmo coisa de iniciante. 

Eu já tinha ficado longos períodos desempregado enquanto me recuperava desse turbilhão de crises psicóticas, e sabia por experiência própria que esse era o pior cenário para minha saúde mental e emocional. O sofrimento por antecipação tomou conta de mim como uma forma de pânico, e a vergonha me assolava novamente. Alguns colegas se despediram por WhatsApp, com mensagens dizendo que eu era incrível e que rapidamente seria reabsorvido pelo mercado de trabalho. Nada disso aliviava minha convicção de que esse era um setup para o fracasso. Enquanto eu ainda processo tudo o que aconteceu desde a demissão, quero me demorar um pouco mais falando de design e da sua relação com saúde mental ou, ainda, com os processos que nos adoecem.

***

A palavra projeto ganha contornos mais amplos quando pensamos no tipo de vida que queremos levar, nos passos necessários para que nossos ideais de um lar sereno se tornem viáveis, nossas relações equilibradas e nosso bem-estar financeiro seja alcançado. Por uma lente viciada pelas imagens cintilantes da publicidade e ofuscada pelo brilho e nitidez de um design cada vez mais polido e homogêneo, a agulha que aponta nosso lugar nessa travessia parece estar tensionada ao ponto de quebrar a qualquer momento. Me pergunto quanto dessa idealização sustentada ostensivamente pelo ambiente online – onde a comparação nos torna ainda mais autoconscientes e uma linha progressiva de avanços desejados se desenha na vida dos outros, mas nunca na nossa – está de fato nos adoecendo. 

No livro Happycracia: Fabricando cidadãos felizes, de Edgar Cabanas e Eva Illouz, publicado no Brasil em 2022 pela editora Ubu, somos confrontados com uma ideia de felicidade que passou a ser sinônimo de “uma atitude passível de ser engendrada pela força de vontade; resultado do treino de nossa força interior e nosso eu autêntico; única meta que faz a vida valer a pena; o padrão pelo qual devemos medir o valor de nossa biografia, o tamanho de nossos sucessos e fracassos, e a magnitude de nosso desenvolvimento psíquico e emocional”. Ao equivaler um pressuposto moral em que a produtividade pode ser lida como bondade e, ainda, normalidade, o culto à felicidade e a indústria de autoajuda nos condenam a um estado perpétuo de insatisfação e performance. Em trecho do livro, vemos como se dá esse mecanismo:

Tragédias são inevitáveis, não há dúvida, mas a ciência da felicidade insiste que sofrimento e felicidade são uma questão de escolha pessoal. Quem não faz da adversidade um meio de crescimento pessoal é suspeito de querer e merecer suas próprias desgraças, não importam as circunstâncias. No fim, então, não temos muita opção: a ciência da felicidade não só nos obriga a ser feliz, mas também nos culpa por não levar uma vida mais bem-sucedida e gratificante.

Validada em várias instâncias, de Hollywood a organizações e fundações privadas, de psicólogos a gurus de todo tipo, a ciência da felicidade e a ideia de que esta pode ser fabricada encontram na psicologia positiva a base do que se chama “código de cultura” nas empresas de tecnologia. Nesse ambiente, um coro de vozes ecoam os mais diversos clichês, que se proliferam sem encontrar nenhuma discordância: como maximizar a produtividade? Como fazer mais com menos? Como ludibriar e performar algo que você ainda não é (ou tem/ter = ser) para manipular como as outras pessoas te enxergam? Pai rico, pai pobre? Quais são os atalhos nessa busca por ascensão? Assistimos ao ideal de felicidade nas redes ad infinitum até que percebemos nosso próprio adoecimento, causado pelo sistema que nos falha diariamente.

Ironicamente, nós mesmos estamos na linha de frente da produção dos produtos e imagens das quais estamos nos tornando reféns.
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Por definição.

Certamente a luta contra esse cenário opressor, desmobilizante e doentio by design5, que parece congelar nossas ações alimentando ainda mais o nosso caos interno, passa por entendermos o quanto nossa contribuição ou recusa pode, aos poucos, mitigar essas pressões sociais por uma performance de felicidade e de produtividade que nos limita. Enxergar qual é a nossa parte nessa estrutura é um ponto de partida possível. Apesar de estarmos acostumados a buscar soluções visuais e materiais para os mais diversos problemas de clientes, parecemos ter pouca ou nenhuma proposta para como resolver esse impasse de forma coletiva. Ironicamente, nós mesmos estamos na linha de frente da produção dos produtos e imagens das quais estamos nos tornando reféns. Os briefings vêm de cima na estrutura empresarial, enquanto nós, designers, atuamos na linha de frente, com uma caneta na mão. Há como hackear essa hierarquia e corrigir a rota de projetos em movimento? Há como desobedecer?

Colada a essa realidade, há uma indústria inteira explorando nossa vulnerabilidade e se valendo não só do viés positivista, mas também de um design vibrante e colorido. Ela finge acolher questões que nos assolam, mas apenas aponta caminhos individuais para problemas estruturais. Enquanto comunidade, nos tornamos novamente reféns de uma estética que oprime – caso você não se sinta compelido a aderir às receitas em carrossel que aparecem no Instagram. Os passo a passos de como resolver todos os problemas da sua vida – emocionais, financeiros, afetivos, familiares, trabalhistas, e a lista continua –, utilizam o conceito de autossuficiência e “resiliência” para provocar uma tensão tão forte que o seu corpo pode quebrar ao meio no processo caso você falhe nessa “missão”.

Há um dito popular que sugere que para conhecermos alguém o suficiente seria necessário comermos um quilo de sal com essa pessoa, ou seja, conviver por mais tempo para saber realmente do que essa relação é feita. O meu quilo de sal inclui, portanto, essas condições que informam minha experiência no mundo. Retorno ao meu período de faculdade antes de o caos se instalar, e percebo que, naquela época, havia uma idealização exagerada de como a minha linha do tempo devia se desenvolver, com etapas não exatamente de fácil execução, mas que garantiriam que eu atingiria certo nível de realização em médio e longo prazo. Essas são ideias comuns vendidas a pessoas emergentes, que são os primeiros de suas famílias a acessarem a universidade. Enquanto designer, meu projeto principal seria sair da linha da pobreza, ascender socialmente e provar o meu valor através disso. Pressão o suficiente, não? Ao ignorar os vários marcadores sociais aos quais eu estava submetido (homem negro, homossexual, periférico, e depois pessoa vivendo no espectro da psicose), não me preparei para essa rota ser infinitamente mais difícil para mim. 

O otimismo de ser o primeiro da família a ter oportunidades melhores de estudo, inclusive uma experiência fora do país, me cegaram para os problemas estruturais que eu enfrentaria, e esse letramento sobre a interseccionalidade das opressões que vivo veio um pouco tarde na minha trajetória. Após o adoecimento se instalar, tudo ficou ainda mais difícil. Tarefas simples se tornaram verdadeiros tour de force: lidar com os efeitos colaterais de um número cada vez maior de remédios e o cansaço inatural que eles causam fizeram do meu findo vigor uma coisa totalmente ultrapassada. Enquanto eu lutava para entregar algo minimamente coerente com meu próprio ideal de qualidade, parecia que eu estava sempre ficando para trás. Isso parece um sentimento comum quando você quer entregar o seu melhor, mas esbarra em uma parede intransponível de esgotamento mental e físico. Muitas vezes é difícil se sentir criativo e ter novas ideias quando você está triste e constantemente duvidando de si mesmo. Hoje entendo que a medicação é minha aliada, e que talvez realmente demore um pouco mais até que meu corpo se acostume a ela e eu me sinta melhor. Até para sermos medicados precisamos assumir riscos como: aumento de peso, perda da libido, disfunções sexuais de todo tipo, alteração na pressão arterial e toda sorte de insônias e noites mal dormidas. Esses são os custos que assumimos por tabela. 

Como profissionais criativos, é esperado que utilizemos nossos interesses e habilidades na criação de produtos cada vez mais questionáveis – sobra pouca agência para que possamos escolher trabalhos eticamente. Isso pode ser particularmente frustrante quando não se consegue dar vazão ao ímpeto de criação de uma forma mais livre e alinhada aos nossos valores pessoais. Esse “constrangimento” a que somos submetidos para poder pagar os boletos cria uma sensação de desconexão com o que estamos fazendo. Nos tornamos cada vez menos interessados nesses modelos, e, com isso, vamos criando espaço para ansiedade e tristeza paralisante, pois não parece haver saída.

Equilibrar o quanto você está derramando de si nos projetos nos quais se envolve e saber separar o seu valor pessoal inalienável do valor do seu trabalho (usualmente explorado) podem ajudar.

Propor soluções para essas questões estruturantes em um único texto é certamente uma tarefa ambiciosa, e aqui segue o alerta de que talvez não seja mesmo possível. Mas equilibrar o quanto você está derramando de si nos projetos nos quais se envolve e saber separar o seu valor pessoal inalienável do valor do seu trabalho (usualmente explorado) podem ajudar. Desenvolver relações fora do trabalho, ou simplesmente ter uma vida satisfatória fora do 9 to 5 (ou 9 to 9), pode contribuir com a percepção de que há prazeres maiores a serem descobertos, e eles não significam exatamente não fazer nada, embora às vezes seja recomendável exatamente isto: fazer nada. Perder tempo. 

Quero contar de uma experiência que tem me ajudado a encontrar calma e relaxamento em algumas das minhas inquietações. Comecei a escrever como um mecanismo de enfrentamento da ansiedade e da depressão advindas da minha psicose. Em meio ao caos do qual esses textos emergiram, algumas frases ou esboços de poemas despontavam, e mais tarde eu voltava a essas passagens e criava poemas a partir de pontas soltas. O que começou como uma maneira  de aplacar quase imediatamente o sofrimento se tornou uma forma de terapia. Trata-se de um projeto em andamento, e a cada dia venho assumindo mais e mais a persona de poeta, participando de oficinas de escrita e me inteirando da comunidade de pessoas que escrevem. Minhas habilidades com InDesign me ajudaram a autopublicar três zines de poesia em pequenas tiragens. E tem sido um método de contentamento, no qual sinto que não preciso responder a nenhuma questão em particular que não seja extrair alguma beleza de um mundo fundamentalmente caótico. Afinal, há pouca ou nenhuma demanda para poesia nesse mundo excessivamente movido pelo dinheiro. Seu valor independe do mercado editorial, e com certeza há muitos outros [insira-aqui-uma-profissão]-poetas. 

É um longo caminho até que as discussões ao redor do tema na indústria criativa sobreponham as barreiras comumente associadas à nossa prática (horas extras, salários baixos, trabalho não remunerado, prazos apertados, abuso moral no ambiente de trabalho: racismo, misoginia, homofobia, transfobia, xenofobia, capacitismo). Todas essas questões são muito sérias, e é difícil pensar em saúde mental se alguma delas ainda prevalecer nas nossas experiências individuais e coletivas. Há interesse e disposição crescentes nessas discussões, principalmente acerca da depressão e da ansiedade, mas é importante também não esquecer de outras condições que impõem outros níveis de dificuldade àqueles que sofrem com desafios menos “palatáveis”, como espectros do autismo, bipolaridade e psicoses. Iniciar essa conversa é realmente difícil, mas isso não deveria ser impedimento para iniciarmos um diálogo sobre o tema. Também se faz importante a construção de uma rede de suporte com quem se possa contar. Tratar dessas questões com profissionais preparados para uma escuta ativa e atenta é a diferença que pode nos resgatar para um caminho de evolução. O apoio emocional de familiares e de amigos também é bem-vindo se você dispõe dessas pessoas. 

Minha intenção com este texto é contar um pouco da minha história e ressaltar que, mesmo lidando com essas questões há um bom par de anos, eu ainda não tenho todas as respostas, ou talvez nenhuma aplicável a outras realidades que não a minha. Ao falar abertamente desse recorte da minha experiência, espero que fique claro como a luta pela saúde mental é também uma luta por justiça social. É, portanto, um cenário em que precisamos nos unir ao grito antimanicomial e a um canto de alegria perene. Usar esse espaço para iniciar um debate dentro da comunidade já é uma forma de me orientar na direção de uma organização coletiva. Atentos e despertos seguimos. É a reafirmação que buscamos quando desviamos nossos olhares das telas brilhantes e olhamos nos olhos uns dos outros. É na certeza de que outras pessoas também são atravessadas por essas questões que eu acredito não estar sozinho, e essa consciência é uma importante aliada para continuar lutando. Um dia de cada vez.

é formado em Design pela Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) com passagem pela Cardiff School of Art & Design (CSAD) no Reino Unido. Vive e trabalha em Belo Horizonte (MG). Tem explorado o universo da escrita através da poesia e diários, tendo autopublicado muted / not much (2021), afago (2022) e exit door (2023)
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