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29 de março de 2021

Zé Gotinha e o sequestro de símbolos

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Você provavelmente já se deparou com a imagem do Zé Gotinha, o maior símbolo da vacinação no Brasil, carregando uma seringa em formato de fuzil.

Ilustração compartilhada pelo deputado Eduardo Bolsonaro nas redes sociais

O “redesign” do personagem foi compartilhado por Eduardo Bolsonaro, deputado federal por São Paulo, policial federal e filho do atual presidente, no Twitter. A legenda acompanhando a ilustração inicialmente dizia “Nossa arma agora é a vacina”, mas logo foi excluída e republicada com uma alteração significativa na mensagem: “Nossa arma é a vacina”.

A movimentação nas redes sociais para reposicionar a família Bolsonaro em relação a vacinação contra a Covid-19 parece ter sido motivada pelo pronunciamento feito por Lula no dia 10 de março. As adaptações feitas em resposta à reabilitação política do ex-presidente ganharam até um nome, o “Efeito Lula”. Após Lula criticar o desserviço prestado pelo atual presidente na condução das medidas para o controle da pandemia, Bolsonaro aparece de máscara ao lado de seus ministros no mesmo dia; após Lula dizer que o presidente não sabe que a Terra é redonda, Bolsonaro posiciona um globo terrestre no cenário da sua live no dia seguinte.

Jair Bolsonaro transmite sua live semanal com globo terrestre sobre a mesa, um dia após discurso de Lula

E, finalmente, após Lula indagar “Cadê o Zé Gotinha!?”, Eduardo Bolsonaro reaparece com o mascote e o apresenta com uma nova roupagem. A repercussão nas redes da postagem de Eduardo foi tão negativa que imediatamente o personagem ganhou o apelido de “Zé Gotinha Miliciano”. No entanto, o que mais me chamou atenção na ilustração foram as fortes semelhanças com a estética da Ku Klux Klan, a famigerada organização supremacista e terrorista dos Estados Unidos.

A cabeça em forma de gota já é uma infeliz coincidência com o capuz pontudo da Klan. Vale lembrar que o design do Zé Gotinha frequentemente é alvo de críticas e piadas no exterior. Mas devido ao histórico de sucesso das campanhas de vacinação no Brasil e a presença do personagem no imaginário popular, os brasileiros saem em defesa do nosso querido “Joseph Little Drop” toda vez que algum gringo tenta associá-lo ao grupo supremacista norte-americano.

O problema é que a ilustração publicada por Eduardo Bolsonaro traz novos elementos que reforçam essa comparação. O fuzil, por exemplo. Não é novidade que a família Bolsonaro possui um certo “fetiche” por armas de fogo. Mas colocar um fuzil na mão do Zé Gotinha fortalece as associações feitas com a KKK e desvirtua o propósito inicial do personagem, que foi um sucesso justamente por ser uma figura amigável. A Klan é uma organização que se baseia na violência para incutir medo e a exibição de armas de fogo como um símbolo fálico (“quanto maior, melhor”) tem um papel fundamental nisso.

Outro detalhe difícil de ignorar é a presença da bandeira do Brasil como símbolo de patriotismo e ufanismo. O uso de bandeiras do país ou de bandeiras e símbolos que representam um ideal ou tradição “perdida” é um recurso comum empregado por organizações de extrema-direita. Os membros da Ku Klux Klan são frequentemente vistos com bandeiras dos EUA e dos Estados Confederados do Sul, que durante a Guerra Civil Americana, buscaram independência dos estados do Norte para impedir a abolição da escravidão.

Apoiador de Trump carrega uma bandeira dos Confederados durante Invasão do Capitólio em 2021. Foto: The Washington Post

No Brasil, é comum ver a utilização da bandeira nacional (e, às vezes, até a dos Estados Unidos) em manifestações pró-Bolsonaro e atos antidemocráticos, onde saudosos da Ditadura se inspiram nos discursos do presidente para clamar por intervenção militar. Em um desses atos, teve até gente usando bandeira de grupo neonazista da Ucrânia. As bandeiras são “vestidas” como se fossem capas, assim como faz o novo Zé Gotinha.

Apoiadores do governo Bolsonaro exibem bandeira usada por grupo neonazista da Ucrânia em manifestação. Foto: Ettore Chierguni / Estadão Contéudo

Lembra do filme Infiltrado na Klan (Spike Lee, 2018)? Nele, acompanhamos a história baseada em fatos reais de um policial negro que conseguiu se infiltrar na Ku Klux Klan nos anos 70.

Cartazes de Infiltrado na Klan (Spike Lee, 2018)

O grande “vilão” da trama é o então líder da Klan, David Duke, interpretado por Topher Grace. O David Duke da vida real já não é mais líder da KKK, mas seguiu carreira política e hoje continua defendendo pautas nacionalistas, racistas e antissemitas.

À esquerda, Topher Grace como David Duke no filme Infiltrado na Klan; à direita, o verdadeiro David Duke em 1978.

Pois bem, em 2018, mesmo ano em que o filme de Spike Lee era lançado e Bolsonaro concorria à presidência, o ex-líder da Ku Klux Klan elogiou o agora presidente do Brasil: “Ele soa como nós”. E essa não foi a única vez que Bolsonaro teve o seu nome associado ao neonazismo.

David Duke discursa em frente à bandeira dos Estados Confederados em 2004. Foto: Burt Steel / AP

Alvim, Goebbels e Bastardos Inglórios

Como não lembrar de Roberto Alvim, ex-secretário da Cultura do governo Bolsonaro que foi demitido por conta da repercussão de um vídeo em que ele copiava um discurso nazista? Alvim fez um pronunciamento no qual não só parafraseava Joseph Goebbels, ministro da propaganda nazista, como também trazia referências que iam da composição visual do cenário até a trilha sonora (foi escolhida uma música de Richard Wagner, compositor queridinho de Adolf Hitler).

Goebbels foi uma das figuras mais importantes do regime nazista, era considerado o braço direito de Hitler. Para ter uma ideia do seu papel enquanto ministro da propaganda, podemos observar o filme Bastardos Inglórios (Quentin Tarantino, 2009), em que ele é um dos personagens.

Cartela de apresentação do personagem interpretado por Sylvester Groth: “Dr. Joseph Goebbells — O homem número dois no Terceiro Reich de Hitler”

Em Bastardos Inglórios, Goebbels é o responsável pela produção e exibição do filme fictício “Stolz der Nation” (em português, “Orgulho da Nação”) que exaltava as ações do soldado nazista Frederick Zoller, interpretado por Daniel Bruhl. O “filme dentro do filme” é uma sátira aos mais de 1.000 filmes produzidos durante o regime nazista. Hitler e Goebbels sabiam do poder do cinema como meio de comunicação em massa e assim transformaram a sétima arte em um dos pilares da máquina de propaganda nazista.

Cartazes de Stolz der Nation no filme Bastardos Inglórios (Quentin Tarantino, 2009)

Portanto, quando Alvim propõe que “A arte brasileira da próxima década será heroica e será nacional. […] será igualmente imperativa, posto que profundamente vinculada às aspirações urgentes do nosso povo ou então não será nada”, o que ele está fazendo, na verdade, é copiar uma fala de Joseph Goebbels de 1933, na qual ele afirmava que “A arte alemã da próxima década será heroica, […] será nacional com grande páthos e igualmente imperativa e vinculante, ou então não será nada”.

Por mais que Bolsonaro tente se desvencilhar desse flerte com o neonazismo ao dizer que recusa o apoio de supremacistas brancos ou até demitindo Alvim (que ele mesmo havia elogiado e escolhido para ser secretário), estudiosos ainda afirmam que o número de grupos e sites neonazistas cresceram no Brasil desde 2019, incentivados pelos discursos de Bolsonaro.

A origem de um verdadeiro herói nacional

Zé Gotinha simboliza uma das mais longevas e bem-sucedidas campanhas de políticas públicas de saúde no país. Ele ganha vida em 1986, como garoto propaganda do Programa Nacional de Imunizações (PNI), o qual ajudou a erradicar, por meio da vacinação, doenças de alcance mundial como a varíola e a poliomielite (paralisia infantil). A contribuição do PNI fez-se ainda mais relevante a partir da criação do Sistema Único de Saúde (SUS) algum tempo depois, em 1988.

Zé Gotinha em cartilha do Ministério da Saúde sobre o compromisso de erradicar a pólio. Imagem: Arquivo pessoal Darlan Rosa / Folha de S. Paulo.

O artista plástico Darlan Manoel Rosa é a pessoa por trás da criação do Zé Gotinha. Inicialmente, ele havia sido convidado pelo Ministério da Saúde para criar uma simples marca para representar o compromisso assumido pelo Brasil de erradicar a poliomielite até 1990. Entretanto, Darlan viu a necessidade de ir além do briefing que lhe foi passado. Em entrevista para a TV Câmara, Darlan revela que, durante o seu processo de trabalho, decidiu ver como a imunização acontecia na prática e percebeu que aquela experiência parecia mais como uma “operação de guerra”. Foi aí que ele teve a ideia de criar um personagem infantil que auxiliasse na divulgação da campanha. A ideia de fazer bonecos e elaborar uma fantasia do mascote surgiu logo em seguida, com o intuito de transformar o dia da vacinação em uma grande festa.

Marca do programa de imunizações do Ministério da Saúde. Imagem: Arquivo pessoal Darlan Rosa/Folha de S. Paulo.

“Começamos a trabalhar em função da criança como agente do processo. A criança lembrava o pai do dia de vacinação e isso também tirou um pouco do medo da criança de ser vacinada.”

Darlan Rosa, criador do Zé Gotinha, em sua casa, em Brasília. Foto: Raul Spinassé / Folhapress

Questionado pela Folha de S. Paulo, Darlan diz que o Zé Gotinha compartilhado por Eduardo Bolsonaro é uma “imagem terrível”. Ele relembra que o personagem foi criado em uma época em que o Brasil usava o terror como método de campanha, o que não vinha funcionando.

“Era o vacine ou morra. E eu propus a quebra desse paradigma. Não se educa pela violência e pela imposição. A educação é pelo exemplo. E esse aí com a arma é péssimo.”

Esboço original do Zé Gotinha. Imagem: Arquivo pessoal Darlan Rosa / Folha de S. Paulo

E por que é tão importante proteger esse símbolo?

Nos Estados Unidos, uma outra forma de apropriação simbólica aconteceu com o Pepe The Frog, um personagem de quadrinhos que foi “raptado” e ressignificado pela extrema-direita.

Pepe The Frog é a estrela do documentário Feels Good Man (Arthur Jones, 2020)

O documentário Feels Good Man (Arthur Jones, 2020) faz um ótimo retrato da trajetória de Pepe e o drama vivido pelo seu criador, o artista Matt Furie, que viu sua inocente criatura se transformar em um símbolo de ódio. Em suma, Pepe se popularizou na internet como um meme, mas acabou sendo apropriado por grupos de extrema-direita, que redesenharam o personagem das formas mais abomináveis possíveis. Sempre associado com mensagens e estereótipos racistas, xenofóbicos e misóginos, as novas versões de Pepe eram proliferadas pelos chans, fóruns anônimos da internet. Sua imagem foi tão distorcida e desvirtuada que o inofensivo sapinho acabou entrando para a lista oficial de símbolos de ódio da organização ADL (Liga Antidifamação), ao lado de símbolos como a suástica e a vestimenta da Klan. No entanto, a inocência de Pepe vem sendo recuperada aos poucos, graças a campanha #SavePepe, criada em 2016 por Matt Furie em parceria com a própria ADL. A campanha mobilizou artistas de todo o mundo e ganhou ainda mais força com o lançamento do documentário em 2020.

As diversas versões de Pepe The Frog usadas pela extrema-direita.

Apesar de algumas semelhanças com o que está acontecendo com o Zé Gotinha, o maior perigo proveniente do sequestro de símbolos mora justamente nas diferenças entre os dois casos. Enquanto Pepe era apenas um personagem de quadrinhos criado em 2005, Zé Gotinha é o mascote de uma campanha bem-sucedida de vacinação que impacta positivamente o Brasil desde os anos 80. E o mais preocupante é que essa descaracterização do propósito original está sendo feita de maneira institucional, por representantes do próprio governo.

Trump compartilhou sua versão como Pepe The Frog no Twitter antes de ser eleito em 2016.

Mesmo com a demissão de Alvim, integrantes ou pessoas próximas ao governo Bolsonaro continuam fazendo uso da política do “apito de cachorro”, onde mensagens políticas são transmitidas para grupos específicos por meio de códigos ou símbolos, sem que a maioria das pessoas perceba. O caso mais recente foi o do assessor de Bolsonaro, Filipe Martins, que fez um gesto supremacista durante sessão no Senado.

Essas sinalizações são frequentes e consistentes o bastante para serem lidas como uma estratégia coordenada de comunicação; e não mais como manifestações individuais. É perceptível que a direita opera com o esvaziamento e apropriação de símbolos, conforme a necessidade de chegar ou se manter no poder. A família Bolsonaro agora se esforça para usurpar símbolos que até então rejeitava, enquanto propõe o esvaziamento do que o Zé Gotinha e o seu histórico de sucesso representam para os brasileiros. Não é à toa que a encarnação bolsonarista de Zé Gotinha descartou a marca do SUS e eliminou as características amigáveis do personagem. Ele agora é uma figura “heroica”, “nacional” e “imperativa” que, acompanhada do slogan “Nossa arma é a vacina”, substitui acolhimento e educação por autoritarismo e violência.

é cartazista, designer pro cinema e pra vida real. Fascinado pelo poder narrativo, cultural e político do design, abandonou a área de UX para unir o seu ofício com a sua paixão pelos filmes.
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