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3 de novembro de 2022

Por que o cuidado não vai salvar o design

“Care”, em inglês, significa “cuidado”.

Será que “cuidado” é apenas uma noção retórica ou é uma nova palavra da moda no discurso do design?

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A iniciativa Diversity Pride (diversitypride.org) propõe a substituição do sufixo “-fobia” por “-misia”. Enquanto o primeiro significa “medo de”, o segundo, também de origem grega, refere-se ao ódio destinado a um indivíduo por sua orientação sexual, identidade de gênero, religião ou origem. [N.E.]

Uma conferência sobre design e política com sanduíches de porco assado nos intervalos. Uma summerschool sobre design e democracia que cobra taxas exorbitantes aes participantes. Um simpósio sobre raça e tecnologia sem nenhume oradorie negre. Uma escola de design que anuncia ofertas de emprego remuneradas em “fama e honra”. Ume académique de renome que recebe a oferta de um honorário, enquanto é esperado que ume ativista emergente fale de graça. Um evento sobre descolonização que é promovido sem que um único banheiro de gênero neutro seja disponibilizado. Um evento sobre feminismo é cancelado e a organização recusa o pagamento aes palestrantes há muito contratades. Um simpósio sobre “desaprender design” escolhe um título capacitista. Uma revista científica sobre design e cuidado pede contribuições dando inicialmente o prazo de um mês.

Por que está a comunidade do design repentinamente interessada na noção de cuidado? Será o “cuidado” a nova palavra da moda prestes a tornar-se uma metáfora, tal como “descolonização”? Estaremos distorcendo o design para esse novo molde porque o capitalismo encontrou novas formas de capitalizar o cuidado? Existirá uma correlação entre a maior proeminência da palavra “cuidado” no discurso do design e o número crescente de mulheres e pessoas não binárias que colaboram na área? Será o design atualmente encarado como um remédio para as feridas abertas da supremacia branca, do capacitismo, da homomisia, da transmisia, da xenomisia1 e outras formas de opressão?

O cuidado permaneceu surpreendente e reveladoramente ausente do design. Nesse estranho campo que reivindicamos, prevalece a ideia de que o “cuidado” é reservado para aquelus que não podem cuidar de si mesmes.
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Carol Gilligan, In a different voice: psychological theory and women’s development. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 1982.

O pensamento crítico sobre o cuidado tem uma longa tradição feminista. Há quase quarenta anos, a psicóloga Carol Gilligan formulou a sua famosa e controversa noção de “ética do cuidado” no raciocínio moral das mulheres.2 Desde então, muites pensadories se juntaram à discussão, incluindo Nel Noddings, Joan Tronto, Donna Haraway, Joanna Latimer e outres.

Sendo nós uma designer negra de Trinidade e Tobago e uma brasileira que mora na Suíça, exercemos sempre cuidado ao abordar certos tópicos aparentemente polarizadores, como “apropriação”, “história” e “ignorância” — procurando estar “atentas” para não antagonizar os nossos frequentemente frágeis, mas manifestamente ruidosos interlocutores: homens brancos europeus.
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Nota des editories da coleção: A nossa intenção ao enquadrar o Alter-Cuidado como tema da bienal não pressupunha que o trabalho de cuidar é a função natural de mulheres e meninas. Entendemos o cuidar como uma responsabilidade de todes na sociedade. No entanto, percebemos que a nossa formulação pode ter sido entendida do modo assinalado pelas editoras deste número.

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The Care Collective, The Care Manifesto: The Politics of Interdependence. Londres: Verso Books, 2010, p. 16.

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The Care Collective, The Care Manifesto: The Politics of Interdependence. Londres: Verso Books, 2010, p. 5.

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Bonaventure Soh Bejeng Ndikung, The Delusions of Care. Berlim: Archive Books, 2021, p. 29.

Em suma, a noção de cuidado foi adotada por muitos campos das ciências sociais e humanas, bem como por outras áreas de interseção, como a psicologia crítica, a teoria política, a justiça, a cidadania, os estudos sobre migrações, os negócios e a economia, o desenvolvimento, os estudos sobre ciência e tecnologia, os estudos da deficiência, as políticas da alimentação, a agricultura e o cuidado que vai para além do mundo humano. Mas esse cuidado permaneceu surpreendente e reveladoramente ausente do design. Nesse estranho campo que reivindicamos, prevalece a ideia de que o “cuidado” é reservado para aquelus que não podem cuidar de si mesmes: es fraques, es idoses e as crianças. Ao mesmo tempo, os limites da imaginação do design em torno do cuidado podem ser resumidos na ideologia recorrente do cuidado como “trabalho de mulher” — ecoada até mesmo pela estrutura curatorial original da Porto Design Biennale ’21.3

No seu recente livro The Care Manifesto, o Care Collective, com sede em Londres, denuncia o nosso inquietante “mundo des-cuidado” e as “comunidades indiferentes”, com o objetivo de defender a necessidade de políticas que priorizem o cuidado.4 Destacam como, historicamente, o cuidado e o trabalho de cuidar foram minimizados e desvalorizados, em grande parte devido a estarem associados às mulheres, ao feminino e ao que eram consideradas profissões de cuidado “improdutivas”. Como mulheres, sempre foi esperado que realizássemos atos de cuidado para com as nossas famílias, nosses parceires, irmães, amigues e colegas de escola — já para não falar em atos de cuidados que esperam que tenhamos para com estranhes que comentam a forma como nos vestimos ou a maneira como o nosso corpo expande durante a gravidez. Sendo nós uma designer negra de Trinidade e Tobago e uma brasileira que mora na Suíça, exercemos sempre cuidado ao abordar certos tópicos aparentemente polarizadores, como “apropriação”, “história” e “ignorância” — procurando estar “atentas” para não antagonizar os nossos frequentemente frágeis, mas manifestamente ruidosos interlocutores: homens brancos europeus. Além disso, ao longo da nossa educação e carreira, salvo raras exceções, o cuidado materializou-se através de um espectro de descuido e negligência. Estamos fartas dessas suposições rudimentares, mas sabemos que não somos as únicas. Evocando o Care Collective, acreditamos que o cuidado deve ser visto como “capacidade e atividade sociais que envolvem a promoção de tudo o que é necessário para o bem-estar e o florescimento da vida”. Isso significa compreender as nossas próprias vulnerabilidades e, acima de tudo, “reconhecer e abraçar as nossas interdependências”.5

Mas será que o capitalismo encontrou já uma forma de lucrar com as nossas interdependências? “O sistema do cuidado exige que ê receptore fique na extremidade de quem recebe e ê doadore na extremidade de quem dá”, explica Bonaventure Soh Bejeng Ndikung no seu recente livro The Delusions of Care.6 Essa lacuna de poder e privilégio é necessária para manter o status quo do capitalismo e da supremacia branca que prospera no individualismo, substituindo simultaneamente o nosso sentido de comunidade. As nossas sociedades neoliberais já não têm em conta o cuidado com es outres — es pobres, es vulneráveis e es fraques. Os governos e as grandes corporações optaram por minar o cuidado através de medidas de austeridade e priorizar os lucros sobre as pessoas, o que resultou na mercantilização do cuidado. A covid-19 acentuou radicalmente todas as desigualdades e negligência preexistentes nas atuais estruturas, levando ao crescimento da literatura sobre o cuidado durante os últimos doze meses. Será também por isso que o design de repente se preocupa com o cuidado?

Graças à sua tradição modernista ocidental, as instituições de design (assim como as indústrias) herdaram práticas, sistemas, conhecimentos e formas de conhecimento que são estruturalmente violentas e opressivas para muitos grupos historicamente marginalizados. De forma a reivindicar o cuidado, acreditamos que, antes de mais nada, o design precisa desafiar o seu próprio passado violento.
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María Puig de la Bellacasa, Matters of Care: Speculative Ethics in More than Human Worlds. University of Minnesota Press, 2017, p. 11.

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Uzma Rizvi, Decolonization as Care. In: Strauss, Carolyn F. & Pais, Ana Paula (eds.). Slow Reader: A Resource for Design Thinking and Practice. Amsterdam: Valiz, 2016, p. 94.

9

Bonaventure Soh Bejeng Ndikung, The Delusions of Care. Berlim: Archive Books, 2021, p. 59.

Em entrevista à revista Cura, a artista suíça Ramaya Tegegne fala sobre as instituições como “cuidadoras” que podem cuidar, mas também fazer mal, voluntária ou involuntariamente. Graças à sua tradição modernista ocidental, as instituições de design (assim como as indústrias) herdaram práticas, sistemas, conhecimentos e formas de conhecimento que são estruturalmente violentas e opressivas para muitos grupos historicamente marginalizados. De forma a reivindicar o cuidado, acreditamos que, antes de mais nada, o design precisa desafiar o seu próprio passado violento. Isso exigiria, como afirma María Puig de la Bellacasa em Matters of Care, “reconhecer os venenos nos terrenos em que habitamos, em vez de esperar encontrar uma alternativa externa, intocada por problemas”.7 Conforme explica a arqueóloga Uzma Rizvi no seu ensaio Decolonization as Care, quando reconhecemos que somos colocados em vários sistemas para nos manter no lugar, “paramos e depois realinhamos lentamente as nossas formas de experiência; e a nossa práxis muda radicalmente”.8 

Começamos este artigo listando um breve compilado de situações e experiências vividas recentemente por membros da comunidade Futuress, incluindo nós próprias. Estas experiências mostram como muitas instituições de design, como museus, galerias, bienais, estúdios e escolas tentam abordar tópicos políticos como feminismo ou descolonização — ao mesmo tempo que sistematicamente falham em aplicá-los. Não podemos deixar de nos sentir um pouco cansadas: parece haver uma desconexão entre o desejo de falar publicamente sobre a igualdade e a justiça e a capacidade de ver como essas questões se materializam nas estruturas e práticas que criamos como uma comunidade de design. Devido às condições precárias de trabalho, falta de tempo, recursos, infraestrutura, desigualdade de pagamento, falta de transparência e de responsabilidade, e ignorância epistêmica generalizada tão predominante na área, o design inflige por vezes mais danos às comunidades que deseja elevar sob o mote de “cuidado”. 

Sejamos claras: o cuidado não é uma poção mágica que curará os males do design. O cuidado não é um processo a ser desenvolvido, um método a ser implementado ou uma teoria a ser adaptada, adotada ou cooptada. O cuidado não é uma palavra que pode ser brandida como a próxima salvação da área do design na busca contínua dos sonhos e ideais capitalistas. Matamos todes es nosses salvadories; não vamos também matar o cuidado. Em vez disso, encaremos o cuidado como uma experiência incorporada, um compromisso e jornada contínua, que deve ser frequentemente revista, atualizada e renovada para se ajustar às necessidades das nossas comunidades e ecossistemas em mudança. Como afirma Bonaventure Soh Bejeng Ndikung, o cuidado “não deve ser apenas uma figura de retórica, não deve ser apenas uma metáfora ou uma analogia, mas um projeto”.9 Por outras palavras, o cuidado é o que realmente fazemos.

Cuidado é contratos assinados e honrados, salários pagos a tempo, códigos de conduta inclusivos, sistemas de reclamação que funcionam, reconhecimento de danos, desculpas genuínas e reparações.
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Inspirada pelo Protocolo de Nagoya sobre o acesso a recursos genéticos e a repartição justa e equitativa dos benefícios decorrentes da sua utilização, a Cultural Intellectual Property Rights Initiative® desenvolveu a Regra dos 3Cs para orientar melhores práticas. Os 3Cs significam: Consentimento (Consentimento Livre, Prévio e Informado de artesãe, comunidade indígena ou local), Crédito (reconhecimento da comunidade de origem e inspiração) e Compensação (monetária ou não monetária). Leia mais no site do projeto.

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The Care Collective, The Care Manifesto: The Politics of Interdependence. Londres: Verso Books, 2020, p. 22.

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María Puig de la Bellacasa, Matters of Care: Speculative Ethics in More than Human Worlds. University of Minnesota Press, 2017, p. 20.

Cuidado é consentimento, crédito e compensação.10 Cuidado é contratos assinados e honrados, salários pagos a tempo, códigos de conduta inclusivos, sistemas de reclamação que funcionam, reconhecimento de danos, desculpas genuínas e reparações. Cuidado é quem citamos e quem nos recusamos a citar. Cuidado é recusa e ruptura com a toxicidade. O cuidado passa também por tirar férias. Acima de tudo, o cuidado é a disposição para fazer o trabalho, e fazê-lo cada vez melhor. Trabalhar com cuidado, portanto, exige que desmontemos o que realmente é feito sob a categoria geral de cuidado. Precisamos questionar, em todos os níveis da nossa prática: quem somos e com quem nos importamos? Como criamos estruturas para que o cuidado prospere? Como ouvimos realmente aquelus que foram historicamente silenciades? Como es levamos a sério, ao mesmo tempo que nos responsabilizamos e somos a mudança que queremos ver no mundo?

E, mais importante ainda: o peso de fazer perguntas críticas não pode estar apenas a cargo des que foram historicamente afastades e marginalizades, nem pode ser tarefa daquelus que são relegades ao trabalho de cuidado. Para acolher o cuidado como um princípio organizador em todas as partes da vida, devemos fazê-lo coletivamente – como tão claramente defende o Care Collective — para “elaborar uma perspectiva feminista, queer, antirracista e ecossocialista, onde o cuidado e as práticas de cuidado são entendidos tão amplamente quanto possível”.11 O cuidado significa aprender com o conhecimento que foi colocado abaixo da linha de mérito e com os grupos que foram colocados na periferia da agenda capitalista neocolonial global. Significa elevar e ampliar as vozes das comunidades onde o cuidado tem sido praticado e implementado, ao invés de apenas discutido ou teorizado.

O design quer mesmo “cuidar das pessoas”? Talvez. Talvez o design queira se importar, queira ter cuidado, mas ainda não saiba como. Estamos certas de que o cuidado não pode ser um tópico, nem pode ser um conceito estabilizado. Como diz María Puig de la Bellacasa, devemos resistir a categorizar o cuidado e, em vez disso, “procurar sublinhar o seu potencial para perturbar o status quo”.12 Vamos perturbar o cuidado tradicionalmente atribuído ao design e deixar que o cuidado surja melhor do que como o encontramos. Vamos incorporar o cuidado no design, mas também — e principalmente — ao longo das nossas vidas.

Este ensaio foi originalmente escrito em inglês para o periódico Alter-Care e editado pela Futuress (Cherry-Ann Davis and Nina Paim).

Ele inaugura o intercâmbio de ensaios entre Recorte e Futuress, uma comunidade de aprendizagem e plataforma de publicações que trata do design a partir de seus aspectos políticos e sociais. Sua missão é democratizar radicalmente o ensino do design e amplificar vozes marginalizadas.

são autoras deste ensaio. Nina Paim é designer gráfica, pesquisadora, curadora e ativista brasileira atualmente radicada em Portugal. Atualmente faz doutorado na Esdi/Uerj. É diretora da Futuress, uma plataforma editorial sobre feminismo, design e política. Coeditou o livro Design Struggles: Intersecting Histories, Pedagogies and Perspectives e editou Talking a Line for a Walk. Cherry-Ann Davis é designer, escritora e estrategista de marketing de Trinidad e Tobago. Um fio comum na sua prática no design é criar histórias caribenhas de maneira autêntica e em formatos acessíveis, respeitando o passado e, ao mesmo tempo, olhando para o futuro. 
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