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9 de novembro de 2022

Em defesa do travessão

Sinais gráficos utilizados neste texto, retirados a partir do site Just The Punctuation.

Escritores se preocupam com seu uso excessivo. Não deviam – ele é ótimo.

Os escritores amam o travessão – mas todos temem usá-lo demais.

Percebi isso no outono passado quando lancei o Just The Punctuation, um aplicativo que remove tudo de um texto, menos a pontuação.

As pessoas começaram a usá-lo, o que foi divertido! Mas muitos escritores tuítaram que se envergonharam pela quantidade de travessões que usaram…

Mairead Small Staid (@maireadsmst): “Adoro esse aplicativo que reduz o texto à sua pontuação. (Criado pelo @pomeranian99, aqui: just-the-ponctuation.glitch.me). Coloquei as primeiras 5.000 palavras do Livro #2 nele e… talvez eu tenha um pequeno distúrbio de travessão.”

Outros se assumiram aterrorizados pela ferramenta, com medo de ver com quantos travessões escreveriam.

Por que o uso frequente de travessões tem essa péssima reputação? Tentei encontrar dados sobre sua incidência para identificar se houve aumento nas ocorrências ao longo do tempo. Talvez as publicações digitais tenham alavancado uma ampliação expressiva em seu uso? Não encontrei nada.

Acho que parte desse constrangimento vem dos editores, que frequentemente julgam autores que usam travessões livremente. No blog do jornal New York Times, Patrick LaForge argumentou que o uso excessivo poderia “encher a paciência dos leitores”. Na revista Slate, Noreen Malone temia que seu uso excessivo “desencorajasse a escrita realmente eficiente”.

Eles têm um ponto. Alguns dos exemplos que LaForge cita são coalhados de ocorrências. Há certa sabedoria em retirar elementos que possivelmente incomodem os leitores.

Mas o problema é… quando se trata de mim mesmo – não apenas como escritor, mas como leitor – putz, eu amo travessões! Adoro usá-los na escrita e amo ler textos em que são empregados de maneira espirituosa, exuberante e frequente.

O travessão se transforma, o que dificulta sua definição. Para mim, esse é também seu maior charme – sugere que você pode usar um travessão do nada, simplesmente porque deu na telha.

Talvez eu esteja em descompasso com a maioria dos leitores. É bem possível.

Mas, para deixar registrado, eu pensei sobre o assunto e criei seis razões para usar uma tonelada de travessões. 

1) Travessões são um pouco *anárquicos*

As pessoas têm uma ótima noção da função dos vários sinais de pontuação. A vírgula dá um descanso curto enquanto o ponto e vírgula une duas ideias relacionadas. Dois-pontos geralmente introduzem uma lista.

Mas e o travessão? Ele é estranhamente flexível. Pode ser usado no lugar de todos os sinais de pontuação mencionados acima, como observa o The Punctuation Guide: “O travessão é, talvez, o sinal mais versátil que exista. Dependendo do contexto, ele pode substituir vírgulas, parênteses ou dois-pontos – em cada caso com um efeito ligeiramente diferente”.

O travessão se transforma, o que dificulta sua definição. Para mim, esse é também seu maior charme – sugere que você pode usar um travessão do nada, simplesmente porque deu na telha.

Segundo Ben Yagoda, “ele é o símbolo que – ao contrário da vírgula, do ponto, do ponto e vírgula e de todos os outros – não parece sujeitar-se a qualquer regra”. Ou, segundo Kate Mooney do New York Times

[…] o travessão é enfático, ágil e ainda assim superindefinido. Às vezes indica uma reflexão tardia. Outras vezes, uma finalização enérgica, lacradora. Você pode chamá-lo de delinquente ou descolado. Um malandro. Um rebelde sem cláusula.

2) Eles são a melhor ferramenta para digressões

Adoro escrita digressiva.

Curto escritores que partem numa direção e então – no meio do caminho, como um cachorro subitamente distraído por um frango de padaria – lançam uma metáfora, um paralelo ou mesmo uma sentença completamente aleatória. Dá à escrita uma textura saborosa, de ótimo paladar mental.

 O travessão é o melhor instrumento para elaborar textos digressivos. Também gosto de parênteses, mas eles parecem (para mim) uma espécie de voz baixa, paralela. O travessão, em contrapartida, mantém alto o registro vocal.

 Obviamente, muitas digressões podem se tornar cansativas, e é por isso que os editores sabiamente nos controlam se formos longe demais.

 Está buscando a quantidade certa de pensamentos secundários? O travessão será imbatível.

3) O travessão como um elemento de design

Um travessão é uma barra dramática – o sinal mais espesso, largo e exuberante da pontuação. É um gesto tipográfico, um movimento teatral do braço, um golpe da batuta do maestro.

 De fato, ele parece mais um elemento de design do que uma unidade do conjunto de caracteres.

 Isso faz dele uma das poucas maneiras que nós, escritores, temos para controlar os elementos visuais e a aparência de nossa escrita. Todo o resto pertence ao povo do leiaute. Mas o travessão – ele é nosso.

4) É um poderoso marcador de tempo

A pontuação, para mim, refere-se fundamentalmente ao tempo.

Na verdade, é provável que eu tenha uma obsessão excessiva pelo ritmo do texto. Enquanto escrevo, repito baixinho cada frase procurando pelas pausas ou pela aceleração das sentenças, que transmitem a energia divertida de um tobogã.

Tendo a me debruçar sobre as mínimas diferenças de efeitos musicais entre diversos sinais de pontuação. A maior parte disso é coisa da minha cabeça, uma espécie de cânone particular, é bom lembrar. Duvido que outras pessoas, incluindo meus leitores, interpretem as pontuações exatamente como eu – ou seja, eu provavelmente fico imaginando efeitos rítmicos imperceptíveis para o leitor. 

 Enfim, amo como um ponto e vírgula conecta suavemente duas frases com uma pequena pausa – ou, como os dois-pontos criam uma breve interrupção antes de introduzir uma lista.

 E o travessão? É o mais versátil de todos os marcadores de ritmo!

 Ele carrega uma série de efeitos diferentes, como…

5) Ele é um conector: *isso* leva a *aquilo*

Talvez esteja sozinho nessa, mas adoro como o travessão pode parecer um conector, ou até mesmo uma flecha: essa coisa se conecta a → aquela coisa. Funciona como um pequeno fluxograma inserido na prosa.

 (Há um pouco desse efeito na maneira como implantei o primeiro travessão três parágrafos atrás.)

Melhor ainda…

6) O travessão define a cadência da conversa

Como Rachel Holliday Smith – repórter do site de notícias The City – observa, o travessão “enfatiza a maneira como as pessoas realmente falam”. 

Ela está certa! Isso é parte do que percebo quando estou lendo meus textos em voz alta. Os travessões costumam ter uma cadência curiosamente oral. Por isso, é possível que seu uso pareça violar totalmente as regras da gramática, mas, ainda assim, soar com perfeição.

Este ensaio maravilhoso de Adam O’Fallon Price para a revista digital The Millions menciona vários exemplos fantásticos de escritores usando travessões desse modo estranho, coloquial, como nesta passagem, de Vladimir Nabokov:

Lancei-me sobre a “Histoire abrégée de la poésie anglaise” para uma editora renomada, e então comecei a compilar aquele manual de literatura francesa para estudantes de língua inglesa (com comparações extraídas de escritores ingleses) que me ocuparia ao longo dos anos quarenta – e cujo último volume estava quase pronto para impressão quando fui preso.

Encontrei um emprego — ensinando inglês para um grupo de adultos em Auteuil.

Como Price aponta, “Observe como os travessões aqui, livres da prescrição imposta por qualquer necessidade gramatical (o primeiro poderia ser perfeitamente substituído por uma vírgula, e o segundo, eliminado), são usados para criar uma estrutura interna que conecta os parágrafos”.

E, claro, a estrela absoluta na aplicação de travessões com efeitos ilimitados é Emily Dickinson – quem não apenas quebrava, mas finalizava suas linhas com travessões, usando a pontuação para sugerir o ejetar de sua mente na espuma quântica da existência.

Há muitos outros motivos para amar travessões; esses são apenas os primeiros da minha lista.

Quais são os seus?

Este texto foi traduzido por Felipe Daros e Luciana Orvat, do Estúdio Claraboia, e publicado originalmente aqui.

é um jornalista canadense que escreve sobre tecnologia, ciência e cultura – às vezes misturados – em veículos como New York Times Magazine e Wired.
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