Eu não me lembro ao certo quando foi que The Gift entrou na minha vida. Mas eu tenho certeza de que foi através de Rob Giampietro. Minha cópia, comprada numa livraria de uma grande rede provavelmente já extinta (acho que Barnes and Noble?), tem uma capa em papel casca de ovo e um odor forte de papel. Aquele cheiro sedutor de livro novo, que com o passar do tempo se torna uma memória intoxicante daquilo que é antigo. O dia estava ensolarado. Devia ser maio ou setembro, e, de férias em Nova York, eu havia acabado de sair de um breve café com Giampietro, um dos profissionais que mais admirava na época. Professor, ensaísta, designer gráfico, ele ainda não havia realizado alguns dos trabalhos mais importantes de sua vida: primeiro, coordenar o redesenho, por duas vezes consecutivas, da comunicação visual do MoMA de NY; e segundo que é, na minha opinião, ter sido responsável por desenhar uns 33% do mundo e da experiência digital como a conhecemos: como designer e UX Sênior do Google, ele criou e coordenou a equipe e o departamento de design da gigante de tecnologia. Por suas mãos e de sua equipe passaram projetos como a linguagem do Material Design, Google Fonts e a própria ferramenta de busca. O trabalho de Rob é igualmente silencioso e gigantesco: nos cerca, influencia, forma nossa alfabetização visual — e a de nossos colegas, clientes, amigos, nossas mães, avós, nossos irmãos, filhos. E Rob é um cara gentil, educado e divertido; naquela manhã em que tomamos nosso café, e em que ele não tinha metade dessa experiência em sua carreira, ele me falou sobre um projeto que estava desenvolvendo, e sobre um livro que havia mudado sua vida. E não era um livro sobre design gráfico, mas sim de literatura. E não era de ficção, mas sim de crítica literária.
Lewis Hyde é estudioso de letras, teórico e tradutor. Por muitos anos foi professor de literatura inglesa em universidades como Harvard e Kenyon College. Com uma produção abundante, é também autor de livros, como o que mudou a vida de Rob Giampietro. Quando escreve sobre literatura, ele o faz por meio de uma ótica muito particular: a do autor. Hyde discute quais forças estão em ação não apenas no ato de escrever, mas no que constitui a literatura dentro de uma sociedade de trocas mercantis como a nossa. Essa tensão entre as relações comerciais que controlam nossa sociedade e a importância de enxergarmos a cultura como um patrimônio humano é central não só para sua ideologia, mas serve de tema de muitos de seus escritos teóricos. E essa abordagem nos permite enxergar claramente um paralelo com a atuação do designer gráfico na prática e também uma leitura de como muito da literatura e da teoria sobre design se apresenta. Atuar como designer é estar no cerne destas fricções: o trabalho criativo voltado para a comunicação e do consumo de produtos, serviços e experiências; a comunicação visual que tangencia outras áreas do conhecimento e produção, como as artes visuais, o cinema, a arquitetura, mas que é sistematicamente tratada como vulgar e inferior; mas diferente da literatura, o design possui uma jovem bibliografia, que, mesmo após centenas de anos, ainda parece fundamentada em sistematicamente reivindicar sua importância social, ao mesmo tempo que clama por uma emancipação como área de conhecimento e produção.
Em 1983 Lewis Hyde publicou The Gift, sua obra mais conhecida até hoje, e livro que inspirou o projeto de Rob Giampietro, nossa conversa naquela manhã e este texto. Unindo contos de folclore, a história da raça humana e uma visão muito contundente sobre a modernidade, o autor busca qualificar a maior contribuição que um criador pode ter para a sociedade. Mais do que o resultado em si de seu trabalho — um manuscrito literário, um livro diagramado, um filme, uma pintura, o que for —, ele tenta definir um aspecto imaterial: o do gesto, que coloca no mundo algo que não havia antes. Gesto inqualificável, indefinível e sobretudo inestimável. Como, então, sobreviver de seu dom na sociedade capitalista? Como podem contribuir aqueles que não lidam com a matéria, mas com um aspecto difícil de tangibilizar? Na medida em que avançamos cada vez mais e mais para uma sociedade em que a informação, o algoritmo e o dado se tornam valiosos, não deixo de pensar que as sábias e ternas palavras de Lewis Hyde são precisamente o tipo de conteúdo com o qual precisamos nos encontrar cada vez mais. Elas parecem nos reconciliar com algo que é inerente e fundamental à experiência humana. Pensar em reciprocidade e na ideia circular de um dom/presente (trocadilho infelizmente perdido na tradução para português), que eventualmente retorna para seu ponto de origem, é também pensar verdadeiramente numa ideia de “aldeia global” (como definiu Marshall McLuhan). É pensar que estamos todos, de alguma maneira, juntos. E nos permite visualizar essas ideias de uma maneira menos cínica, mais positiva e menos viciada em conceitos complexos, que muitas vezes não dão conta de responder sobre experiências muito simples. O presente de natal, a habilidade da comunicação, a autenticidade. Lewis Hyde descortina a cumplicidade entre o criador e seu público, estabelecendo uma zona neutra em que o trabalho só ganha sentido e completude com o olhar da audiência.
No verão de 2007, Rob Giampietro, inspirado por The Gift, disparou um convite para seus amigos mais próximos: que lhe fornecessem um material-base para o desenvolvimento de um panfleto de dezesseis páginas: “Vocês podem usar essas páginas para promover uma plataforma política, ou republicar seu conto favorito […] Eu aceito o que vocês decidirem me dar”. Ele iria fazer o design de cada um dos dez panfletos e compartilharia a tiragem com todos os envolvidos: cada um receberia dez cópias do seu próprio e uma cópia dos outros nove. Ele comenta que concebeu o projeto não apenas inspirado pelo livro de Lewis Hyde, mas também tentando entender como um profissional de design poderia tomar uma atitude diante de seu conteúdo. E também porque muitas vezes o trabalho de design para amigos resvala em produtos pouco sedutores ou nada interessantes em termos de conteúdo e compartilhamento — cartões de visita, por exemplo. Enquanto conversávamos sobre essa iniciativa, elaboramos um “trocadilho” com o nome do projeto: de Panfletos para Amigos (Pamphlets for Friends) para Panfletos Fazem Amigos (Pamphlets Make Friends), pensando no potencial de compartilhar tantos talentos e habilidades.
No fim das contas, apenas um dos amigos respondeu à chamada, gerando um panfleto que pode ser baixado gratuitamente no site de Giampietro. Mas prefiro pensar que a fagulha de The Gift atravessa transversalmente o trabalho dele até hoje. Está presente na interface simples do oráculo que responde às nossas perguntas para qualquer questão em nossa barra de busca; está nas cores, formas, efeitos de sombra e sobreposição que se tornaram a linguagem do design para telas nos últimos anos; está na interface deliciosa do Google Fonts, ou na simplicidade essencial do Docs. E note como é um trabalho carinhoso, feito por gestos quase silenciosos: seu design nos cerca o tempo inteiro, constrói o mundo que habitamos virtualmente e nem sequer nos damos conta.
Este texto foi publicado originalmente como leitura complementar do mês de setembro de 2020 do Clube do Livro do Design. O Clube, realizado por Tereza Bettinardi, promove debates mensais a partir da literatura do Design.