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18 de outubro de 2023

Na criação e na vida, o que pesa também pode flutuar

Secret Life IV (1928), de René Magritte (1928 – 1967)

Costumo esbarrar em sugestões de encarar a vida de forma mais leve, e a proposta é atraente. Por vezes, tais conselhos fazem parecer que esse é o objetivo máximo a ser atingido ou, então, um sinal de maturidade. Mas seria a leveza plenamente desejável? No trabalho de criação, em especial, o que ela pode significar?

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Italo Calvino, no livro Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas, publicado pela Companhia das Letras em 2002 e traduzido por Ivo Barroso. As próximas citações do autor fazem referência à mesma obra.

Pouco antes de morrer, em 1985, Italo Calvino listou as seis propostas para o próximo milênio que apresentaria em um ciclo de conferências na Universidade de Harvard. Embora o escritor radicado na Itália nunca tenha chegado a proferi-las, cinco delas ficaram registradas. Na primeira, intitulada “Leveza”, Calvino afirma ter realizado, ao longo de quatro décadas, o frequente esforço de subtrair o peso de seu trabalho como ficcionista, em especial aquele depositado na estrutura narrativa e na linguagem. O exercício era uma forma de atenuar o contraste entre o estilo ágil com que ele procurava representar o seu entorno e “o pesadume, a inércia, a opacidade do mundo – qualidades que se aderem logo à escrita, quando não encontramos um meio de fugir a elas”1.

Escrever seria sempre encontrar uma maneira de voar para outro espaço, escapando, assim, do incessante peso do viver contemporâneo.

Como sugere Calvino, seria muito difícil para uma romancista, ao ter como matéria-prima o movimentado mundo contemporâneo, não concluir que a leveza é objeto de uma busca inalcançável e sem fim:

Às vezes, o mundo inteiro me parecia transformado em pedra: mais ou menos avançada segundo as pessoas e os lugares, essa lenta petrificação não poupava nenhum aspecto da vida. Como se ninguém pudesse escapar ao olhar inexorável da Medusa.

Calvino evoca o mito para observar que, nesse mundo petrificado, aquele que corta a cabeça da Medusa é Perseu, leve o bastante para voar. Do sangue que flui da Medusa nasce Pégaso, um cavalo alado, mostrando que é possível transformar a pedra em seu oposto. Esse mito, para Calvino, é “uma alegoria da relação do poeta com o mundo, uma lição do processo de continuar escrevendo”. Escrever seria sempre encontrar uma maneira de voar para outro espaço, escapando, assim, do incessante peso do viver contemporâneo.

A proposta de Calvino enxerga na literatura uma função existencial e, na busca pela leveza, uma reação ao peso da vida. Ponderar a relação entre peso e leveza, no entanto, está longe de ser simples: um romance como A insustentável leveza do ser, de Milan Kundera, além de constatar o amargo peso do viver, mostra que o que é considerado leve também pode ser intolerável, como se percebe nesta passagem:

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Milan Kundera, no livro A insustentável leveza do ser, publicado pela Companhia das Letras em 2017 e traduzido por Teresa Bulhões Carvalho da Fonseca. A próxima citação do autor faz referência à mesma obra.

Mas será mesmo atroz o peso e bela a leveza?
O mais pesado dos fardos nos esmaga, verga-nos, comprime-nos contra o chão. […] Quanto mais pesado é o fardo, mais próxima da terra está nossa vida, e mais real e verdadeira ela é.
Em compensação, a ausência total de fardo leva o ser humano a se tornar mais leve do que o ar, leva-o a voar, a se distanciar da terra, do ser terrestre, a se tornar semirreal, e leva seus movimentos a ser tão livres como insignificantes.
O que escolher, então? O peso ou a leveza?2

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Byung-Chul Han, no livro Psicopolítica: o neoliberalismo e as novas formas de poder, publicado pela Âyiné em 2018 e traduzido por Maurício Liesen. As próximas citações do autor fazem referência à mesma obra.

De maneira análoga, o filósofo sul-coreano Byung-Chul Han questiona se a possibilidade infinita de comunicação e acesso à informação nos torna verdadeiramente livres no mundo contemporâneo. Para ele, há dois polos: a racionalidade estável e a emocionalidade volátil. Assim, “as emoções surgem, sobretudo, com a mudança de estado ou de percepção. A racionalidade, por outro lado, está relacionada à permanência, à constância e à regularidade”3. Ou seja, a racionalidade seria aquilo que pesa, enquanto a emocionalidade seria aquilo que flutua. Nesse sentido, “a aceleração da comunicação também favorece a transformação emotiva, porque a racionalidade é mais lenta que a emotividade”.

O novo modo imaterial de produção descarta a racionalidade e privilegia as emoções, exigindo interação comunicativa ininterrupta e tornando os espaços de silêncio cada vez mais raros.

Não à toa, o novo modo imaterial de produção descarta a racionalidade e privilegia as emoções, exigindo interação comunicativa ininterrupta e tornando os espaços de silêncio cada vez mais raros. A técnica neoliberal explora a competência emocional, além da cognitiva, e retrata a emocionalidade como expressão de liberdade. Por isso, para aumentar a produtividade, o neoliberalismo “reduz cada vez mais a continuidade e instala a instabilidade, impulsiona a transformação emotiva do processo de produção”. Ou seja, a pressa suprime a possibilidade de contemplação e de crítica.

Por outro lado, os freios da aceleração neoliberal – que remetem ao peso e à lentidão – adquirem valor negativo. Se o pesado é lento, convidando à pausa e ao silêncio, no atual contexto de aceleração constante, se torna insuportável. Com isso, não há tempo para nos perguntarmos: rumo a que aceleramos? A pressa parece apenas adiar o confronto com o que se revelaria a partir da contemplação. Desse modo, sob a lente do neoliberalismo, a emocionalidade, em vez de remeter à expressão daquilo que é singular em cada um, nos leva ao esgotamento integral do ato de criar – daí, o aumento dos casos de burnout

Se a leveza está acelerando nossa exaustão e o adoecimento psíquico, não há saída senão nos defrontarmos com questões existenciais pesadas para, como disse Kundera, tornarmos nossa vida mais real e verdadeira. Poucas obras abordaram tais questões como A metamorfose, novela do tcheco Franz Kafka publicada em 1915. No livro, o personagem Gregor Samsa acorda em sua cama transformado em um “inseto monstruoso”, e sua família, que até então fora sustentada pelo trabalho de Gregor como caixeiro-viajante, precisa encontrar formas de lidar com a nova situação e com o fato de que ele se tornou, em muitos aspectos, um fardo. Será que alguém, hoje, já escapou de sentir-se como um “inseto monstruoso” que pesa na vida dos outros?

Sob a lente do neoliberalismo, a emocionalidade, em vez de remeter à expressão daquilo que é singular em cada um, nos leva ao esgotamento integral do ato de criar – daí, o aumento dos casos de burnout.

Não por acaso, uma referência à famosa primeira frase d’A metamorfose dá título a um dos álbuns mais celebrados do cantor e compositor pernambucano Otto. Seguro ao abordar temas universais como o amor, o auge da paixão e a dor da separação, Otto emplacou, em 1998, uma carreira solo que já dura 25 anos, atingindo o ápice da criação em seu quarto trabalho de estúdio, Certa manhã acordei de sonhos intranquilos (2009), que tem “Crua” como faixa de abertura. Essa canção traduz a relação de Otto com questões existencialistas. Sobre ela, o cantor afirmou em 2016 à revista NOIZE que, das dez faixas do álbum, essa é “a música que mais chega em Kafka. Nas minhas obras eu sempre busco os clássicos. […] E A metamorfose é isso, a coisa da pele, do bicho. O homem sempre vai ter esse lado bicho”.

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Som resultante da junção da vogal “a”, de “pesa”, e da vogal “e” que vem na sequência.

A partir de flutuações melódicas e oposições harmônicas, além de letra, entoação e arranjos instrumentais marcados, “Crua” explora e contrapõe a dicotomia peso/leveza. Para que você apreenda os elementos que extrapolam o texto (e, na verdade, pela beleza transcendente da faixa), sugiro que ouça a música completa. O primeiro verso é marcado pela dualidade que se descortina ao longo de seus pouco mais de três minutos: “Há sempre um lado que pesa e outro lado que flutua”. Otto segue, sem interrupção: “A tua pele / É crua”. Nesse refrão, que condensa a essência de significado da canção e introduz o tema melódico, existem dois grupos de palavras que rimam: pese4/pele e flutua/tua/crua. A canção começa a dar corpo à dicotomia daquilo que pesa e daquilo que flutua.

Na letra, por mais que a materialidade da pele seja análoga ao peso, o cancionista logo se dá conta de que essa mesma pele é crua, ou seja, ainda guarda relação com o lado mais instintivo do ser humano, o “lado bicho” de que Otto fala. O contraste é reforçado na estrutura harmônica: enquanto o tema afirma o tom soturno em Lá menor, a ascensão para acordes de Fá e Sol maiores cria uma expectativa positiva que não se resolve com o posterior retorno ao tom. Assim, o lado que pesa puxa de volta o lado que flutua. 

Quando o refrão é retomado, após um interlúdio instrumental, a entoação já não é a mesma. Ao reafirmar a crueza da pele do outro, a pronúncia de Otto é muito mais áspera, totalmente diferente do suspiro doce anterior, deixando entrever um riso. O interlúdio instrumental ganha, então, um novo significado: representa a metamorfose atingida após a passagem por um estado de transe que guarda, também, algo de festivo, uma sonoridade latino-americana que fala sobre o peso com leveza.

Por mais que a materialidade da pele pese, sua crueza guarda incontornável relação com o lado instintivo do ser humano, sendo também válvula para se transformar em leveza. Assim, a pele crua, o lado bicho que nos habita, faz-se fardo e libertação, transitoriedade e permanência. Tal qual o romance de Kundera, a canção de Otto sugere uma inversão da polaridade entre o peso e a leveza, já que o leve também é fugaz e transitório, enquanto o pesado sedimenta-se e fica, a exemplo das lembranças.

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Elena Ferrante, no livro História de quem foge e de quem fica, publicado pela Biblioteca Azul em 2016 e traduzido por Maurício Santana Dias.

Voltemos à literatura. Entre os títulos que compõem a tetralogia napolitana de Elena Ferrante, salta aos olhos a dualidade presente em História de quem foge e de quem fica. Ao longo deste terceiro volume, parte da saga que acompanha o desenrolar da amizade entre as protagonistas Lila e Lenu da juventude à maturidade, a narradora Lenu faz menção eventual a certo peso que ambas carregam. Em meio aos cuidados com a segunda filha, recém-nascida, e à tentativa de escrever seu segundo livro, que avança lentamente após o sucesso do primeiro, ela conta: “Dei aos trabalhos domésticos uma organização férrea e cuidei de Dede e Elsa com uma alegria inesperada, como se, além do peso do ventre, além do peso do livro, eu tivesse me livrado de outro peso, mais oculto, que eu mesma era incapaz de nomear”5. Lenu também narra como às vezes, em meio à profusão de acontecimentos da vida em Nápoles, a amiga Lila sentia um peso no peito.

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 Elena Ferrante, no livro História da menina perdida, publicado pela Biblioteca Azul em 2017 e traduzido por Maurício Santana Dias. As próximas citações da autora fazem referência à mesma obra.

No volume seguinte, História da menina perdida, as protagonistas vivenciam um terremoto em Nápoles, deflagrador da revelação de um sentimento que Lila, apesar de carregá-lo a vida toda, nunca havia conseguido colocar em palavras para a narradora Lenu:

Disse que o contorno de coisas e pessoas era delicado, que se desmanchava como fio de algodão. Murmurou que, para ela, era assim desde sempre, uma coisa se desmarginava e se precipitava sobre outra, era tudo uma dissolução de matérias heterogêneas, uma confusão, uma mistura. Exclamou que sempre se esforçara para se convencer de que a vida tinha margens robustas, porque sabia desde pequena que não era assim — não era assim de jeito nenhum —, e por isso não conseguia confiar em sua resistência a choques e solavancos6.

Lila fora assombrada a vida toda pela sensação de que tudo à sua volta poderia se diluir e, assim, deixar de ser compreensível a qualquer momento. A catástrofe do terremoto, que destruiu uma parte do universo físico que Lila conhecia e ameaçou destruir tudo, catalisou essa percepção a ponto de tornar possível colocá-la em palavras. A personagem sabe que sua doença não é do corpo, mas da mente: “Mas por acaso eu estava doente, tinha mesmo um sopro no coração? Não. O único problema sempre foi a perturbação da cabeça”.

A essa perda de segurança seguem-se outras. Em dado momento, a filha pequena de Lila desaparece e não há um corpo a ser velado. A vida insuportável que se desenrola a partir disso leva ao acontecimento narrado no início de A amiga genial, primeiro romance da tetralogia: Lila decide, ela mesma, sumir sem deixar rastros. Não só retira o corpo de cena, como destrói todas as fotografias e registros que pudessem comprovar que, algum dia, havia pisado neste mundo. Antes disso, ela já havia afirmado: “Os bons sentimentos são frágeis, comigo o amor não resiste. Não resiste o amor por um homem, nem mesmo o amor pelos filhos resiste, logo se esgarça”.

A percebida ausência de margem nas coisas acaba por se traduzir num peso em viver: enquanto o leve foge, o que pesa fica.

A busca essencial de Lila é pela solidez. Não do mundo externo, incontrolável, mas do mundo interior, capaz de determinar a própria constância, ainda que em meio à desordem e à imprevisibilidade. A percebida ausência de margem nas coisas acaba por se traduzir num peso em viver: enquanto o leve foge, o que pesa fica. O equivalente à fugacidade daqueles que ama e do prazer advindo desse amor é, para Lila, a dissolução de qualquer matéria ligada a ela mesma.

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Aline Bei, no livro O peso do pássaro morto, publicado pela Nós em 2017.

A Lila de Ferrante tem em comum com a narradora de O peso do pássaro morto, de Aline Bei, a grande dificuldade em sentir e expressar amor. Os acontecimentos traumáticos e as perdas sequenciais levam a protagonista do livro de Bei, gradualmente, a ficar sem voz diante de uma pessoa ou situação perante a qual poderia se impor. Em dado momento, ela descobre que seu filho, ainda criança, tem matado pássaros com um estilingue. Ao pensar no significado da morte prematura daqueles animais, atingidos por pedras, a narradora reflete: “isso / é o lugar onde nasce / a dor. / isso é / tudo o que destrói a possibilidade de um mundo um pouco menos cruel / com os mais fortes abusando dos / mais fracos e o pai do lucas / dentro dele / e o pai / do lucas / dentro de / mim”7.

O peso do silêncio só pode se tornar leveza no exercício da criação, a partir do momento em que se narra, fala e escreve.

Anos mais tarde, a personagem pensa que a morte dos pássaros e a noite em que foi violentada serão os dois únicos episódios que será capaz de lembrar pelo resto da vida. É esse, portanto, o peso que carrega, ela mesma como um pássaro destituído cedo demais da possibilidade de voar. Mas, apesar de mostrar-se uma mulher calada, a personagem encontra na escrita de cartas e no próprio ato da narração um meio de organizar e comunicar sua verdadeira história. Mais uma vez, o peso do silêncio só pode se tornar leveza no exercício da criação, a partir do momento em que se narra, fala e escreve.

“Só uma coisa é certa. A contradição pesado/leve é a mais misteriosa e a mais ambígua de todas as contradições”, afirma Milan Kundera. A solidez do peso, enfim, pode ser fundamental para que se atinja a leveza. Quando se foge do que a lentidão revela, a própria imaterialidade da leveza torna-se insustentável: sucumbe-se a ela, que acaba por se expressar como seu exato oposto.

é editora de livros e mestra em literatura e escrita criativa pela UFRGS. No mercado editorial desde 2017, tem passagens por casas como L&PM e TAG – Experiências Literárias. Dedica-se também ao canto e à escrita.
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