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28 de junho de 2021

letras para uma travessia circular

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nascido em salvador, tiganá santana é cantor, compositor, instrumentista, poeta, pesquisador.

há uma palavra banta, da língua africana kikongo, que significa coração e também memória.
tiganá santana1 ensinou que coração e memória operam juntos no saber de cor.
um saber entranhado, latente o tempo todo.
estamos sempre nos fazendo esquecer dessas potências, daquilo que nos é caro, esquecendo o que nos forma.
tudo precisa ser lembrado.
nada que tento trazer é novo.
tudo já foi dito, tudo já foi esquecido.
o conhecimento é memória, é desenho ancestral.
tudo precisa ser relembrado.

Phyllis Galembo – Omolu – Brasil, 1987

2

do latim, “palavras faladas voam, palavras escritas permanecem.

na tentativa de me relacionar e experimentar a palavra, percebi que pouco restava daquilo que aprendi enquanto escrita. uma das primeiras lições de caligrafia que tive me dizia, em letras garrafais e tronchas, “verba volant, scripta manent2.

3

pedra silva é macumbeire, artista multilingue, pesquisadore e arte-educadore da ancestralidade que transita entre as artes corp-orais e as artes (audio)visuais

desacreditar do poder da palavra falada, da tecnologia oral, aquela que acontece na presença e se manifesta no exercício, como me ensinou pedra silva3, diz muito a respeito de uma sociedade que cresce e se desenvolve em cima de contratos. de papéis (e aqui por papéis, lê-se papéis tanto físicos quanto simbólicos) que sustentam uma cadeia de movimentos exploratórios, herança das tradições europeias forçosamente instauradas. pois não se pode confiar apenas naquilo que se diz, é preciso estar escrito.

4

leda maria martins é poeta, ensaísta e dramaturga. doutora em letras-literatura comparada pela universidade federal de minas gerais

leda maria martins4 em seu precioso e generoso performances da oralitura nos convida a transpor a ordem da memória escrita para outros ambientes: a oralidade e as práticas rituais.

o domínio da escrita torna-se metáfora de uma ideia quase exclusiva da natureza do conhecimento, centrada no alçamento da visão, impressa no campo ótico pela percepção da letra. (…) a memória, inscrita como grafia pela letra escrita, articula-se assim ao campo e processo da visão mapeada pelo olhar, apreendido com janela do conhecimento. tudo que escapa, pois, à apreensão do olhar, princípio privilegiado de cognição, ou que nele não se circunscreve, nos é ex-ótico, ou seja, fora de nosso campo de contemplação, de nossos saberes.

é espiralando neste vasto espectro epistemológico, de meios de criação, passagem, reprodução e preservação de saberes, que venho desenvolvendo um um projeto tipográfico, na tentativa de bifurcar os caminhos, deixando para trás aquilo que não quero perpetuar.

 “a textualidade dos povos africanos e indígenas, seus repertórios narrativos e poéticos, seus domínios de linguagem e modos de apreender e figurar o real, deixados à margem, não ecoaram em nossas letras escritas”.

costumo dizer que esse projeto é uma tentativa e se faz nessa travessia circular, pois ele carrega uma história que começa em tempos imemoráveis, bem antes de mim e que não termina comigo. é como uma investida em redefinir a relação que desenvolvo com as formas de letras, minha principal ferramenta de criação de narrativas, de prática diária e que me acompanha há um tempo.

5

ao passo que o iorubá veio trazido de áfrica com os povos originários da áfrica ocidental que eram arrastados, em sua maioria, para as regiões norte e nordeste do brasil, outras linguagens da família nigero-congolesa, como a língua kikongo, citada no começo do texto, também atravessaram a kalunga grande, vinda de países como moçambique e angola. a palavra kalunga quer dizer, literalmente, mar. mas seu significado também ultrapassa a ideia de imensidão e grandeza.

o projeto é sobre a língua iorubá, uma das quatro línguas escritas oficializadas na nigéria que utiliza os caracteres latinos. o iorubá é utilizado por mais de 20 milhões de pessoas, em outros países da áfrica ocidental, como benin, togo e serra leoa. além de ser herança cultural em diversas partes da américa latina, onde a diáspora esteve presente5.

no brasil, país que mais  recebeu africanos escravizados nos últimos séculos, a língua iorubá é um dos principais suportes para a sobrevivência cultural e ontológica africana, presente em manifestações religiosas como o candomblé, umbanda, omolocô e o culto de ifá. em cuba, o iorubá se mistura ao castelhano derivando o lucumí, utilizado na santería. também está presente no haiti nas práticas rituais do vodum.

“cresce, portanto, em significância o fato de as narrativas e as performances realçarem o agrupamento de diferentes nações e etnias africanas, sobrepondo-se às históricas divergências e rivalidades étnicas e linguísticas. o coletivo sobrepõe-se, pois, ao particular, como operador de formas de resistência social e cultural que reativam, restauram e reterritorializam, por metamorfoses emblemáticas, um saber alterno, encarnado na memória do corpo e da voz.

essa é a minha conexão com o idioma. seu som e mistério. os cantos, encantos, canções e orações para as divindades iorubás chamadas orixás. durante boa parte da minha vida jovem-adulta convivi com uma pessoa que era de terreiro e era também um terreiro por si só. a língua faz parte da minha construção subjetiva mas não foi o primeiro idioma com o qual eu aprendi a me comunicar.

as cores, texturas e sabores que vejo nesta linguagem são, no entanto, difíceis de transcrever sem os diacríticos adequados. por se tratar de língua pluricêntrica, o iorubá possui diversas versões padronizadas, que podem variar de acordo com o local onde é falada. é também uma linguagem tonal: a entonação faz parte da estrutura semântica, ou seja, uma mesma palavra poderá ter significados diferentes, dependendo do tom utilizado nas sílabas.

vocabulário iorubá composto com oniresi.

6

importante apontar que o primeiro registro que se tem de uma tradução do iorubá com caracteres latinos, data de 1843 e foi realizado por um líder religioso da igreja anglicana, o bispo samuel ajayi crowther.

isso me gerou muitas dúvidas, pois os livros que conseguia acessar traziam informações desencontradas e muitas das traduções do iorubá que chegavam ao brasil eram recheadas com textos que corroboram com uma visão racista dos saberes ancestrais de terreiro6. exemplo disso é a falácia de que o orixá exu seria a representação do diabo cristão, a figuração do mal, aquele que deve ser combatido e evitado a todo custo — a percepção maniqueísta ocidentalizada de “bem e mal” sequer existe na cosmologia iorubá. iré (bonança, bênçãos) e ibi (infortúnio, desgraças) habitam o mesmo espaço e estão em constante movimento para equilibrar-se. nesse entendimento, portanto, exu é atemporal, nos tira da dicotomia, como me ensinou dandara. exu é fonte de toda possibilidade, gerador de todo movimento, nos permite a comunicação. não tem começo nem fim. exu faz o erro virar acerto e o acerto virar erro.

então percebi que precisava parar e recomeçar. estudar com mais cuidado e mais tempo o idioma em si e o que o cerca. 

principais caracteres com diacríticos.

em uma breve sondagem no site my fonts, dito o maior entre os distribuidores digitais de fontes, utilizando os parâmetros “mais relevantes” e “mais recentes”, me deparei com um resultado absurdo (porém não surpreendente, pois é sintomático) de que apenas 10% das fontes serifadas contém os principais caracteres do iorubá. nas tipografias sem serifa, o número cai para drásticos 7,5%.

pesquisa realizada no site myfonts.com utilizando os critérios de maior relevância/mais recentes.

isso se deve, para além de outras coisas, ao fato de que os caracteres do iorubá propriamente ditos não são contemplados pelo consórcio da unicode, organização que coordena o padrão de codificação que permite a representação digital de textos em diversos sistemas de escrita. os diacríticos, imprescindíveis para o entendimento da língua, que estão disponíveis são emprestados de outras linguagens, como o vietnamita e o índico romanizado.

print screen myfonts.

na unicode, os diacríticos iorubás são inconsistentes, muitas vezes ilegíveis e dificilmente fazem a base da busca de texto. até hoje, nenhuma provisão adequada foi feita para esta língua (ou para qualquer uma de suas línguas irmãs na áfrica ocidental) na tecnologia tipográfica moderna, porque os diacríticos importantes (acima e, especialmente, abaixo das letras) são erroneamente considerados como opcionais ao invés de essenciais tanto para a leitura quanto para a escrita. a consequência disso, por exemplo, se mostra aqui.

declaração universal dos direitos humanos traduzida para o iorubá – e o que acontece durante os silêncios? tríptico parte I.

se traduzirmos os artigos primeiro e décimo nono da declaração universal dos direitos humanos, aqueles que sustentam a visão de liberdade de expressão, transmissão de ideias, independentemente de fronteiras pois somos todos livres e iguais em dignidade e direitos, os principais caracteres não contemplados pela unicode, não aparecem.

e o que acontece durante os silêncios? tríptico parte II.

e o que acontece durante os silêncios? tríptico parte III.

no decorrer da pesquisa,  encontrei um projeto chamado pan nigerian que foi desenvolvido na década de 80 pelo dr. victor manfredi (atualmente no centro de estudos africanos da universidade de boston) enquanto ele lecionava na universidade da nigéria.

the pan-nigerian archive.

naquela altura, a ideia era definir um mapa de caracteres unificado para máquinas de escrever e composição de tipos para acomodar os principais idiomas indígenas da nigéria (além do iorubá, o igbo, o hauçá e o inglês). como muitos projetos visionários da época,  pan nigerian perdeu o compromisso oficial e permaneceu apenas como uma tecnologia de nicho usada por estudiosos das línguas africanas, mas não acessível ao público em geral sem habilidades especializadas. e como muitos assuntos que excedem definições hegemônicas, o esforço de fazê-lo chegou muito cedo, pois se deu na improvisação de adaptar a ideia à tecnologia emergente, e muito tarde, pois as linguagens nigero-congolesas já estavam marginalizadas nos padrões globais.

em outubro de 2020, consegui uma bolsa para uma vaga no curso principles of typeface design: display type, ministrado por juan villanueva, type @ cooper. decidi aproveitar esta oportunidade para projetar a primeira etapa do projeto, com uma versão display à qual dei o nome de oniresi. atravessamos o primeiro ano da pandemia de mãos dadas. eu, essas letras, a vontade, o silêncio e o processo. nada aconteceu por acaso. com a certeza de que oniresi se fez também por outras mãos.

oniresi é uma palavra que não pertence a um idioma propriamente dito mas remete à sonoridade do iorubá. e, em uma das conversas que tive com o victor, aprendi que com outra grafia,  e com os diacríticos corretos, ela tem um significado no iorubá: “shapeless” ou “sem forma”.

desde o primeiro momento, meu objetivo com esse projeto foi (e ainda é) aplicar uma visão crítica, ouvindo as necessidades de comunicação atuais dos usuários do iorubá na era digital. estive em diálogo com estudiosos da língua, tanto no brasil quanto pessoas vindas da nigéria, que cresceram no iorubá, pessoas de terreiro, autoridades civilizatórias de terreiro também como forma de respeito a uma ancestralidade aqui presente. é por isso que para mim este projeto é uma tentativa.

isso não é uma tipografia.

retomando leda maria martins, a memória do conhecimento não se resguarda apenas nos lugares de memória (bibliotecas, museus, arquivos, escritos oficiais), mas se transmuta e transmite pelos ambientes de memória (repertórios orais, corporais, gestos). o corpo é um instrumento de transmissão de saberes.

“como índice de conhecimento, a palavra não se petrifica em um depósito ou artigo estático, mas é, essencialmente kinesis, movimento dinâmico, e carece de uma escuta atenciosa, pois nos remete a toda uma poiesis da memória performática dos cânticos sagrados e das falas cantadas no contexto dos rituais.” 

durante algum tempo me questionei sobre a ideia contraditória de cristalizar num suporte rígido e muitas vezes estático como a tipografia todo o movimento dessa linguagem.

7

jota mombaça, de acordo com ela mesma, é uma bicha não-binária, nascida e criada no nordeste do brasil, que escreve, performa e faz estudos acadêmicos em torno das relações entre monstruosidade e humanidade, estudos kuir, giros descoloniais, interseccionalidade política, justiça anticolonial, redistribuição da violência, ficção visionária e tensões entre ética, estética, arte e política nas produções de conhecimentos do sul-do-sul globalizado.

porém, durante o processo, uma coisa que aprendi, principalmente com a jota mombaça7, e que também faz sentido na minha condição enquanto corpo dissidente, é que operar na contradição é estratégia de sobrevivência. é preciso criar mundos possíveis dentro da realidade que nos é dada. precisamos nos adaptar, mas não deixar de ser quem somos. e reivindicar esse lugar através dessa fonte, dessa tipografia, desse percurso e até dos erros é não permitir ser silenciada, e também não ser completamente traduzida.

repito em meu corpo, procuro caminhos.
apresento aqui meu corpo.
o corpo como conhecimento.
em constante e perene movimento.

há mais ainda para aprender, ouvir, descobrir, mais por fazer. 

pois há uma palavra banta, da língua kikongo, que significa coração e também memória.

agradeço aos que vieram antes de mim, agradeço aos que me acompanham: victor manfredi, moussa kone, juan villanueva, rodrigo lopes, rômulo silva, dámiláre fáladé, priscilla karen, félix ayoh’omidire, leda maria martins, aline furtado, jota mombaça, pedra silva, castiel vitorino brasileiro, henrique freitas, igor miranda, babá sidnei nogueira, equipe ilê ará, dandara suburbana, babá alexandre teles, marina mota, thais esmeraldo, diana fernandes, fernanda siebra, gabrielle tavares, cyla costa, andrea kulpas, fabricia ribeiro, ana laydner, luisa baeta, aline kaori, lygia pires, l leitenperger, flávia zim, flora de carvalho, fernanda martins, fátima finizola, zrinka buljubašić, zofia janina borysiewicz, ana michel, jamie otelsberg, beatriz lozano, jaamal benjamin, gen ramires, stephen nixon, henrique nardi, mark jamra, saki mafundikwa, tré seals, eduilson coan, leonardo buggy, henrique beier, álvaro franca, fernando mello, filipe negrão, guilherme menga, igor sturion, guadalupe gil, jackson alves, claudio reston,mateus moretto, rafo castro, márcio freitas, samuel tomé, jonas van holanda, valentina d’avenia, daniel rana, lucas blat, ramon cavalcante, eduardo vasconcelos, breno furtado, guillermo zetek, fernanda meireles, lucas cavalcante, igor gonçalves, johann freitas, yuri alexsander, magno leitão, clarisse figueiredo, lia sabino, maria do céu, josé geraldo, clélia maria, elvis ronaldo e sofia benedicto.

é designer de tipos e artista transdisciplinar não-binárie do ceará. pesquisa caligrafia, trabalha texturas, insiste e acha graça da sonoridade de algumas palavras.
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