Alguns meses atrás, passados menos de 15 dias de “quarentena” – essa nova maneira de mensurar o tempo –, fiz uma consulta em vídeo com minha astróloga. Estávamos falando de trajetórias profissionais. Ela desenhou para mim uma distinção entre duas atitudes: a de maestria e a professoral. O mestre seria aquele que, por ventura de sua trajetória e aprendizados, fala para seus discípulos a partir de uma verdade interior; já o professor ensina a partir da escuta, não se colocando no topo, nem mesmo no centro da experiência educativa, mas sim se entendendo como um veículo, um meio. Pensar sobre essa distinção me fez pensar sobre Corita Kent.
Nascida Frances Elizabeth Kent (1918-1986), ela se juntou à Ordem do Imaculado Coração de Maria em 1936, se rebatizando como Sister Mary Corita. Estudou artes visuais e em sua carreira como artista juntou duas de suas maiores paixões: a técnica da serigrafia e a linguagem da arte Pop de Andy Warhol. Imagino que você deve estar pensando: MAS O QUÊ??? Em que universo ou fic seria possível combinar uma freira da Igreja católica, um movimento de arte intrinsecamente ligado à cultura de massa, e um artista claramente queer não apenas em sua orientação, mas em sua sensibilidade?! De fato, os primeiros trabalhos de Corita, como aquele que lhe garantiu o primeiro lugar em uma competição de artes do condado de Los Angeles em 1952, representavam temas religiosos de maneira explícita. Eram bastante literais: forma e fundo, anjos, entidades religiosas. Mas, dez anos depois, ao ver a exposição da série de latas de sopa Campbell’s de Warhol, ela teve uma… iluminação. Produziu então sua primeira obra Pop: um conjunto de formas abstratas, orgânicas, semicirculares, em tons vibrantes de laranja e amarelo, e em verdes, carmim. Corita já era autodidata em serigrafia, tendo escolhido essa técnica por dois motivos: queria que sua arte fosse acessível para as massas e facilmente multiplicável. Mas o descobrimento do Pop alterou seu percurso, e, deste ponto em diante, ela trabalhou para sofisticar sua voz e inventar um universo gráfico particular.
e.e. cummings (1894-1962) era poeta, pintor, ensaísta e dramaturgo cujo estilo é caracterizado como poesia de forma livre. Alguns de seus trabalhos mais notáveis experimentam com sinais de pontuação e arranjo tipográfico no espaço da página.
Gertrude Stein (1874-1946) foi escritora, poeta, dramaturga e colecionadora de arte. Vivia em Paris, onde promovia encontros de figuras importantes da cultura ocidental, como os artistas Pablo Picasso e Henri Matisse, e escritores como Ernest Hemingway e Ezra Pound. Seu estilo de literatura é caracterizado como sendo de fluxo de consciência e hermético, criando uma narrativa que parece se desenvolver no presente por meio de associações de imagens, cenas e ideias.
Marshall McLuhan (1911-1980) era teórico e escritor de mídias e comunicação, autor de livros como Understanding Media (1964) e Meio é a massagem (1967, em parceria com o designer Quentin Fiore), fundamentais no entendimento de semiótica e de como os meios pelos quais uma comunicação se dá influenciam em como a informação é recebida. Cunhou o termo “aldeia global”, para explicar como os meios eletrônicos estavam encurtando as distâncias entre os povos no mundo.
Stewart Brand (1938) é escritor e ativista. Sua obra mais importante é o Whole Earth Catalogue (1968, reeditada algumas vezes depois), uma autopublicação que mistura catálogo de produtos, guia de recursos, ferramentas e dicas para uma vida em comunidade e com menos exploração dos recursos do planeta. A obra é até hoje associada a movimentos sociais “do it yourself” (faça você mesmo) e de contracultura.
Alan Watts (1915-1973) era filósofo, escritor e palestrante notável por interpretar e popularizar ideias de filosofias budistas, taoístas e hinduístas para o público ocidental, em especial aos hippies e adeptos da contracultura. Ele também explorou a consciência humana por meio de psicotrópicos como LSD e mezcal e estudou a religião cristã, chegando a ser ordenado como padre.
Buckminster Fuller (1895-1983) era arquiteto, designer, inventor e professor. Tornou popular a estrutura de abrigo conhecida como “Domo geodésico”, desenvolvida em parceria com alunos enquanto era professor na Black Mountain College, considerada uma escola “herdeira” das ideias da Bauhaus.
John Cage (1912-1992) foi compositor, teórico musical e artista. Suas composições musicais incorporam ideias como indeterminação, silêncio e ruído, e o uso não convencional de instrumentos musicais. Foi um dos pioneiros nos “happenings”, acontecimentos artísticos mistos sem roteiro preestabelecido.
A justaposição ou “colisão” entre a alta e a baixa cultura é um modus operandi comum da arte Pop. Os trabalhos de artistas como o próprio Warhol, Roy Lichtenstein, Ed Ruscha e do brasileiro Claudio Tozzi fazem referência a histórias em quadrinhos, filmes de Hollywood e música popular ou a produtos da gôndola do supermercado. Corita também tomava de empréstimo a cultura da rua e do mundo “real”, se inspirando no desenho gráfico de marcas de grandes empresas, de cartazes e outdoors comerciais. Mas seu olhar tensionava essa estratégia de uma maneira ímpar, em sintonia com reformas que o Vaticano propunha para modernizar a instituição da Igreja católica diante de seus fiéis, enxergando na arte Pop uma forma de expressar e se conectar com os anseios de uma nova sociedade. Corita reproduzia, por exemplo, passagens da Bíblia em inglês em muitas de suas obras, o que teve um impacto no abandono do latim nas missas.
Em uma entrevista, ela afirmou que “[Por isso] as pessoas escutam música ou olham para pinturas. Para entrarem em contato com a totalidade”. Seus trabalhos emergem dessa busca pelo divino no cotidiano, crendo na possibilidade de paralelos entre diferentes contextos. Porém,nesse estado de euforia religiosa, tomam uma abordagem mais crítica, levando em consideração os contextos e preocupações sociais. Sua linguagem e seus temas caminham em paralelo com as lutas por direitos civis que marcaram muito da narrativa dos anos 1960 e 1970. Essas camadas, por sua vez, eram filtradas através de outras tantas referências: a literatura de escritores experimentais como e.e. cummings1 ou modernos como Gertrude Stein2; a abordagem de design do casal Charles e Ray Eames; o cinema de Alfred Hitchcock; a expressividade do artista gráfico Saul Bass. O trabalho de Corita então resultava em uma abordagem de mensagens textuais por vias gráficas. Suas serigrafias quase sempre traziam como protagonistas passagens da Bíblia combinadas a slogans políticos, trabalhados visualmente como texturas, acompanhados de formas abstratas coloridas, desenhos de tipografias que tomavam de empréstimo a linguagem comercial, repetições, gestualidade e a sugestão de movimentos, planos e tridimensionalidade. É um trabalho explosivo numa intersecção entre design e arte: fica evidente, ao olhar para qualquer uma de suas obras, a multiplicidade de referências, contextos e discursos sobrepostos.
E é essa estratégia de sobreposições, significados e camadas, a meu ver, que a posiciona não apenas como uma artista Pop (valorizada na época, mas hoje em dia reconhecida como parte do cânone histórico do movimento), mas como criadora de uma arte “Informacional”. O resultado de seus trabalhos me parece totalmente em sintonia com as ideias de teóricos como o semiótico Marshall McLuhan3 e o ativista Stewart Brand4, que, na década de 1960, olharam para como os meios eletrônicos – a televisão, os primeiros computadores – mudariam para sempre a nossa maneira de existir e nos comunicar. A sensibilidade de Corita parece representar não apenas a cultura de massa como linguagem visual, mas também como discurso: a cacofonia de narrativas e sensações, a velocidade do corte e edição, o tumultuado panorama comunicacional e informacional dos anos 1960 e 1970. A serigrafia “if i”, de 1969, é um exemplo dessa abordagem: sobre um fundo vermelho mistura-se uma silhueta religiosa em azul (cores que aludem à bandeira dos Estados Unidos), na qual estão sobrepostas as palavras “crucificação”, “redenção” e “ressurreição do espírito” em alto ou baixo contraste; a frase BLACK IS BEAUTIFUL (negro é lindo) aparece em preto, acompanhada de trechos de um discurso da ex-esposa do ativista Martin Luther King, assassinado um ano antes. Tipografias texturizadas e serifadas estão lado a lado de um texto em letras manuscritas de autoria do escritor britânico Alan Watts5, cujo conteúdo referencia filosofias religiosas do oriente e literatura romântica inglesa. São camadas e camadas de referências, discursos, personagens, paralelos e ideologias, num trabalho que vibra de maneira sinestésica. É visual, mas também auditivo, vocal: é quase possível “escutar” as palavras, seus volumes, tons.
Serigrafia e Arte Pop eram duas de suas paixões, mas a terceira, na qual atuou paralelamente por boa parte de sua vida, era a educação. Foi professora e chegou a se tornar chefe da cátedra de arte na Immaculate Heart College. Tinha em suas aulas a mesma abordagem vanguardista de sua arte, propondo exercícios não convencionais e em igual sintonia com as discussões de crítica, teoria e sociedade de seu tempo. Entre os convidados que trazia para falar a suas aulas estavam o arquiteto e estudioso Buckminster Fuller6, o casal Eames, e o músico experimental John Cage7 – a quem referenciou em um de seus trabalhos artístico-educacionais mais importantes. Pregadas nas salas de aula e ateliês da instituição, estavam as “Regras do Departamento de Arte da Immaculate Heart College”, uma lista de 10 itens que apresentam um modo de educar zero prescritivo e nada dogmático:
Regra 1: Encontre um lugar em que você confia e tente confiar por um tempo.
Regra 2: Deveres gerais do estudante: Retire o máximo de seu professor. Retire o máximo de seus colegas.
Regra 3: Deveres gerais do professor: Retire o máximo de seus estudantes.
Regra 4: Considere tudo como um experimento.
Regra 5: Seja autodisciplinado. Isso significa encontrar alguém sábio ou esperto e escolher segui-lo. Ser disciplinado é seguir de uma boa maneira. Ser autodisciplinado é seguir de uma maneira melhor.
Regra 6: Nada é um erro. Não há vitória nem falha. Há apenas o fazer.
Regra 7: A única regra é o trabalho. Se você trabalhar, isso te levará a algo. São as pessoas que fazem todo o trabalho a todo tempo que um dia entendem as coisas.
Regra 8: Não tente criar e analisar ao mesmo tempo. Esses são processos diferentes.
Regra 9: Seja feliz quando você conseguir sê-lo. Divirta-se. É mais fácil do que você imagina.
Regra 10: “Estamos quebrando todas as regras. Até mesmo as nossas regras. E como fazemos isso? Deixando bastante espaço para quantidades X.” John Cage
Dicas úteis: Sempre esteja por perto. Venha ou vá para tudo. Sempre vá às aulas. Leia tudo o que você tiver em suas mãos. Veja filmes cuidadosamente. Frequentemente. Guarde tudo – pode ser que seja útil mais tarde. Deve haver novas regras na próxima semana.
Corita explicitava ali a ética de seu trabalho como educadora, sugerindo como cada um deveria encontrar em si e em sua prática não apenas as perguntas, mas também as respostas para seus questionamentos. A influência das literaturas experimentais e modernas fica explícita no item 7: a única regra é o trabalho (mas como ficam as outras 9 então, coitadas?) – grafado maior que todos os outros. Imagino que sua intenção era que ele pudesse ser visto ao longe, imediatamente ao se entrar na sala de aula, como uma espécie de desafio e alento: na dúvida, basta trabalhar. As regras abrangem a todos: alunas, professores. E terminam com a citação de John Cage, que estimulava a quebra das outras 9.
Após um sabático para refletir sobre sua fama e a projeção de seu trabalho, no final da década de 1960, ela abandona a Ordem, também por desavenças com os setores mais conservadores da Igreja, que viam em seu trabalho um teor político exacerbado. Funda a Immaculate Heart Community, e segue trabalhando até o final de sua vida, desenvolvendo serigrafias, selos postais e outdoors.
Tese e antítese, todas provocativas e meio paradoxais, as regras de Corita se orientam pelos mesmos princípios que me fazem compreender a múltipla plenitude de sua existência – religiosa, artista Pop e informacional, ilustradora, educadora – como sendo, sobretudo, de uma atitude professoral. Sempre se entendendo como um meio, um veículo para a palavra, para as linguagens, para as referências, para as regras e as não regras, para a religião, para a sociedade e as mensagens urgentes, para suas alunas. Não há mulher, não há freira, não há Corita: há apenas o trabalho.
Este texto foi publicado originalmente como leitura complementar do mês de agosto de 2020 do Clube do Livro do Design. O Clube, realizado por Tereza Bettinardi, promove debates mensais a partir da literatura do Design.