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9 de agosto de 2023

A fotógrafa Lucia Moholy impactou para sempre como conhecemos a história da Bauhaus

Com um trabalho documental sobre a escola de arte mais influente do mundo, Lucia Schulz viu seus pares homens virarem lendas, enquanto suas obras eram usadas sem consentimento

Retrato de Lucia Moholy criado por Stella Bonici (@ttbonici no Instagram) para ilustrar este ensaio

Remoí a ideia de falar sobre mulheres designers por muito tempo. Entreguei meu TCC em 2018 – era uma tentativa de expor à sociedade como é ser mulher, como se sente uma mulher sendo mulher, sempre com a ideia do design (um produto) como facilitador, como meio de iniciar um diálogo. Foi uma imersão incrível, mas que gerou muita raiva. Graças a essa pesquisa que fiz durante a faculdade, pude entender o quanto o machismo é estrutural – enorme, largo, enraizado. Ainda hoje tenho dificuldade de lidar com essa raiva do mundo, raiva do ódio às mulheres, das opressões diárias que nos espremem, da lista interminável de mulheres incríveis que nunca conheci ou de quem nem mesmo ouvi falar. A raiva é um sentimento pesado, que se cristaliza em tristeza. Por isso tento equilibrá-lo com o cultivo diário de uma vivência feminista, mais leve e ativa.

Desde então, tenho certeza de que é necessário falar sobre mulheres. É preciso contar suas histórias, ouvir seus relatos, compartilhar suas vivências. Reescrever tudo. Sinto essa convicção até a célula mais minúscula do meu corpo. Mesmo assim, posterguei entregar este texto por meses, na ilusão de que precisaria justificar sua existência ao mundo. Como se o mundo estivesse saturado do tópico – thank you, next. Oi, você tem um minuto para falar sobre mulheres no design? Me sentia pedindo licença para poder falar delas. Mas nesse processo de autorização interna e debate com as editoras, entendi que falar de mulheres, em qualquer área, é um exercício contínuo que demanda fôlego e ritmo. Esse texto é, então, uma pequena contribuição para que a roda continue girando.

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Para conhecer as histórias de outras mulheres alunas da Bauhaus, sugerimos o livro Bauhausmädels: A Tribute to Pioneering Women Artists, publicado pela Taschen em 2020.

Quando esbarrei com a biografia de Lucia Schulz, entendi de cara que ela seria a primeira que eu mencionaria aqui. Dentro do grupo genérico que atende por “as mulheres da Bauhaus”1, Lucia despertou um estalinho em minha mente quando me deparei com seu sobrenome de casada: Moholy. Ao se casar com o húngaro László Moholy-Nagy, passou a usar um de seus sobrenomes até o fim da vida. Também passou a figurar na lista de mulheres que tiveram seu trabalho e legado na história da arte ofuscados pelo parceiro. Lucia, assim como inúmeras mulheres, é conhecida como “a esposa”. Está lado a lado de tantas outras que se uniram a “grandes mestres” do design e da arquitetura – entre elas, Marta Breuer (casada com Marcel Breuer) e Edith Tschichold (esposa de Jan Tschichold).

Lucia não foi estudante da Bauhaus, nem professora – posições que, talvez, tivessem lhe concedido um tantinho de prestígio –; estava fadada a ser, somente, a “esposa de um mestre”.
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Encontrei esta informação no ensaio “‘What I Could Lose’: The Fate of Lucia Moholy”, de Meghan Forbes, publicado em 2016 na Michigan Quarterly Review.

Lucia nasceu em 1894, em Praga (atual República Tcheca), onde estudou história da arte e filosofia. Quando conheceu László, ela já tinha poemas levemente anarquistas publicados sob o pseudônimo de Ulrich Steffen (1919) – um nome masculino, veja bem. Ela e László se casaram em 1921, em Berlim – há rumores de que isso aconteceu rapidamente para garantir a ele um visto alemão –, e se mudaram para Weimar em 1923, na ocasião do convite para que ele assumisse o cargo de “mestre” na Bauhaus. Lucia sustentou financeiramente o casal durante esse período, com seu trabalho como editora.2 Em Weimar, Lucia se envolveu com fotografia. Foi aprendiz de Otto Eckner (então proeminente fotógrafo, que tinha um estúdio na escola) e passou a experimentar com fotos, modelos de captura de imagens e impressões. Lucia não foi estudante da Bauhaus, nem professora – posições que, talvez, tivessem lhe concedido um tantinho de prestígio –; estava fadada a ser, somente, a “esposa de um mestre”.

Entre 1925 e 1926, Lucia estudou na Academy of Graphics Arts and Book Production, em Leipzig. Lá, foi contemporânea de Walter Peterhans, que viria a se tornar professor na Bauhaus. Lucia, por outro lado, não teve o mesmo destino glorioso, apesar de ter habitado a escola de outras formas.

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O argumento de que as imagens produzidas por Lucia Moholy são fundamentais para que possamos estudar a Bauhaus, mais de cem anos depois de sua fundação, aparece no artigo “Images in Exile: Lucia Moholy’s Bauhaus Negatives and the Construction of the Bauhaus Legacy”, publicado por Robin Schuldenfrei em 1º de maio de 2013.

O casal Moholy documentou as instalações do corpo docente, assim como as oficinas e os objetos ali criados. Lucia fazia recortes do mundo por meio de suas imagens, com sofisticação e simplicidade perfeitamente calculadas – era capaz de capturar ângulos inesperados, literalmente. Sua produção estava em consonância com as propostas estéticas da Bauhaus.3 Lucia não foi remunerada pelo seu trabalho fotográfico, tampouco recebia dividendos pelo uso de suas imagens, comumente utilizadas em peças gráficas como panfletos e livros da Bauhaus. Entre seus temas frequentes, estão também autorretratos e fotografias de alunas e mulheres (esposas de fulanos) que visitavam a escola. Suas produções da época são frequentemente creditadas somente a László. De acordo com os relatos que encontrei, a dupla László e Lucia dependia inteiramente do conhecimento técnico dela para revelar, em um estúdio fotográfico na moradia do casal, as imagens que produziam.

Fotografias de Lucia do interior da casa ocupada pelo casal no campus da Bauhaus Dessau (1925-26). Harvard Art Museums/Busch-Reisinger Museum, Gift of Walter Gropius © President and Fellows of Harvard College

Enquanto esteve na Bauhaus, Lucia também atuou diretamente na edição, produção e criação de textos para a escola, junto de seu marido e de Walter Gropius. Edith Tschichold é a amiga que conta, em correspondência tardia (1982), que já não era sem tempo de se reconhecer o trabalho que Lucia empenhou em estruturar os escritos de László. “Você editou todos os livros e artigos de Moholy e os reescreveu em alemão adequado.” O alemão não era a língua nativa de László nem de Lucia, mas ela tinha muito mais capacidade e facilidade em usar o idioma e auxiliava na tradução, estruturação e desenvolvimento dos textos dele em alemão – textos esses que viriam a ser acessados inúmeras vezes devido ao peso do nome Moholy-Nagy.

Um golpe marcante na trajetória de Lucia veio de seu próprio companheiro, László, que deixou de creditá-la em sua participação em Malerei, Fotografie, Film, de 1925 (Painting, Photography, Film), uma publicação da Bauhaus que fez sucesso à época e é tido, até hoje, como um manifesto da fotografia moderna. O livro reflete e ilustra o impacto da fotografia na nova estética que se anunciava no mundo da arte. Em nenhuma das várias edições, que inclusive receberam revisões e adição substancial de materiais, o nome de Lucia foi incluído na página de créditos. Lucia Moholy fala sobre o episódio no livro Moholy-Nagy Marginal Notes (Scherpe, 1972), numa tentativa de passar a limpo o passado e expor seu papel de colaboradora no projeto.

O arquiteto e ex-diretor da Bauhaus deteve os originais de Lucia Moholy e, por mais de uma década, explorou seus negativos, por motivos financeiros e para a construção de seu próprio legado.
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O drama envolvendo os negativos de Lucia foi apresentado no episódio 225 do Podcast 99% Invisible, intitulado “Photo Credit: Negatives of the Bauhaus”.

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Para passar ainda mais raiva, leia a reportagem “Lucia Moholy, the Photographer Who Immortalized the Bauhaus, Finally Gets Her Due”, de Ann Binlot, publicada na revista Document em 6 de novembro de 2019.

Mais tarde, em 1933, já separada de Lázsló, Lucia fugiu da Alemanha nazista por conta de suas origens judaicas e de um relacionamento amoroso com um comunista. Ela precisou abandonar seus negativos em Berlim.4 O plot twist dessa história envolve outro homem que nós, designers, conhecemos bem: Walter Gropius (1883-1969). O arquiteto e ex-diretor da Bauhaus deteve os originais de Lucia Moholy e, por mais de uma década, explorou seus negativos, por motivos financeiros e para a construção de seu próprio legado.5 Para o público, aquelas fotografias haviam sido tiradas por ele. Lucia só descobriu esse fato quando o catálogo de uma exposição no MoMA, de Nova York, chegou até ela (depois, inclusive, de a mostra ter terminado) – seus trabalhos estavam impressos nele! Ela os reconheceu. Ao abordar László, ele contou que os negativos estavam com Gropius. Já Gropius, ao ser contatado, inicialmente negou possuir os originais e, por fim, recusou-se a devolvê-los à Lucia #boylixo.

Em 1939, Lucia Moholy publicou sua pesquisa sobre fotografia pela Penguin britânica, num volume chamado A Hundred Years of Photography 1839-1939. Apesar de não ter se popularizado, o livro profetizava que uma vida sem imagens era impossível e afirmava que já existia, antes mesmo da Segunda Guerra, “um fluxo constante e internacional de demanda por imagens”. 

Nesse meio tempo, Lucia morou em Londres e continuou atuando como fotógrafa, com comissões especiais e também com publicidade. Desde que deixou a Alemanha, no entanto, Lucia tentava emigrar para os Estados Unidos. Seu irmão Franz, que trabalhava como escritor em Beverly Hills, e László, que havia se mudado para Chicago em 1937, auxiliaram-na na tentativa de obter um visto estadunidense. A vontade de emigrar era motivada pela possibilidade de fugir permanentemente da Europa despedaçada pelo avanço nazista da Segunda Guerra, e também pela esperança de recuperar seus negativos – passo que consolidaria sua carreira. A essa altura, Walter Gropius também havia estabelecido residência nos Estados Unidos e lecionava em Harvard. A ausência de créditos em seu trabalho anterior virou questão de vida ou morte quando, em 1939, sua casa em Londres foi bombardeada. Seu visto foi definitivamente negado em outubro de 1941, com a principal justificativa de que ela não podia provar sua experiência como fotógrafa ou professora.

Em 1946, com a criação da Unesco, foi escolhida para acompanhar as filmagens de documentários culturais no Oriente Médio. No mesmo ano, László Moholy-Nagy morreu nos Estados Unidos e a busca de Lucia por seus negativos ganhou a ajuda de um advogado. Em 1957, depois de pouco mais de uma década de batalha judicial, cerca de duzentos a trezentos negativos, de um total de 560, foram recuperados. Entretanto, muitas de suas criações, ainda hoje, permanecem atribuídas a “artista desconhecido” (ou o nome da fotógrafa é acompanhado de um ponto de interrogação nos arquivos), devido à ausência de provas de sua autoria – sim, até mesmo de imagens que podemos entender como autorretratos. De acordo com os relatos que li, até mesmo a filha de László com sua segunda esposa, Sibyl, evita tomar parte no assunto e prefere simplesmente creditar ao pai alguns trabalhos pela “dificuldade” de confirmar que seriam de Lucia. 

Parte do acervo de Lucia Moholy, incluindo diários e correspondências, habita hoje as caixas do Bauhaus Archiv, que, como o nome sugere, compila materiais vinculados aos artistas da escola. Os negativos resgatados foram doados para o arquivo em 1992, após a morte da fotógrafa. No site da instituição é possível acessar imagens e algumas poucas correspondências da época. Ironicamente, suas obras também fazem parte da coleção de arte da Universidade de Harvard e é possível que tenham sido doadas por Ise Gropius, esposa de Walter, após a sua morte em 1969.

Fotografias de Lucia retratando produtos criados nos ateliês da Bauhaus que hoje fazem parte da coleção da Biblioteca de Harvard, onde Walter Gropius lecionou. Harvard Art Museums/Busch-Reisinger Museum, Gift of Walter Gropius © President and Fellows of Harvard College

Para entender o peso do trabalho de Lucia Moholy no mundo, é preciso dar um passo para trás. A documentação fotográfica feita por ela foi essencial para o que conhecemos hoje da Bauhaus. Se podemos estudar com atenção o que a escola propunha, parte desse conhecimento vem do acesso que tivemos à estrutura da escola e a produções de alunos – via fotos de Lucia!

A reputação da escola está respaldada pelas produções de Moholy. Entender isso rapidamente foi o “pulo do gato” (leia-se “o crime”) de Walter Gropius. Ele foi capaz de perceber o impacto que as fotografias teriam no entendimento, na celebração e na perpetuação do movimento artístico iniciado pela Bauhaus. Após a dissolução da escola, Gropius tornou-se uma figura mundialmente famosa e até hoje é visto como um arquiteto visionário. Parte de sua notoriedade está vinculada à Bauhaus. Profissionais homens como Joself Albers, Wassily Kandinsky, Herbert Bayer, Ludwig Mies van der Rohe e muitos outros conseguiram alavancar suas carreiras quando precisaram fugir da Alemanha nazista com base no que foi construído na Bauhaus – e estava registrado.

As fotografias documentais respaldam o legado dessa escola [a Bauhaus] que, até hoje, mais de cem anos depois de sua criação, continua sendo referência em arte e design (ainda que cada vez mais questionada).

As fotos de Lucia são valiosas e eternizaram o modo de pensar e projetar dos professores e alunos. São um atestado das visões artísticas e estéticas da escola, um reflexo do seu tempo e constituem o patrimônio visual da instituição. Pode ser difícil entender a importância delas em um mundo que é inundado por imagens a cada segundo, mas se hoje temos ideia de como a escola se organizou, o que projetou ou como produziu objetos é graças à potência das fotografias de Lucia. Inclusive itens que nunca foram produzidos em escala só são conhecidos graças ao seu registro fotográfico. As fotografias documentais respaldam o legado dessa escola que, até hoje, mais de cem anos depois de sua criação, continua sendo referência em arte e design (ainda que cada vez mais questionada). São parte do processo para entendermos por que motivos essa bendita escola, ocupando cidadezinhas provincianas na Alemanha após a Primeira Guerra, ainda hoje encontra eco – estou falando da relevância que creditamos a trabalhos como os de Marcel Breuer, Wassily Kandinsky, Gunta Stölzl, Lilly Reich (dupla de Mies van der Rohe), Anni Albers, Paul Klee. As fotografias de Lucia Moholy cumprem a função de construir e solidificar a identidade, a reputação e a comunidade da Bauhaus. Hoje, as residências da escola são consideradas patrimônio pela Unesco e foram reconstruídas após bombardeios da Segunda Guerra. Não fosse a reconstrução, talvez seríamos capazes de perceber melhor o valor inestimável dos registros de Moholy, que seriam o único registro da escola. 

Foto de Lucia Moholy da icônica fachada da Bauhaus em Dessau (1925-26). Harvard Art Museums/Busch-Reisinger Museum, Gift of Ise Gropius © President and Fellows of Harvard College

Lucia se mudou para a Suíça em 1959, onde trabalhou com educação, crítica de arte e na área editorial, mas se aposentou como fotógrafa. Ela faleceu no país em 17 de maio de 1989.

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Um dos exemplos mais recentes é a exposição Lucia Moholy: The Image of Modernity, que aconteceu entre 1º de outubro e 22 de janeiro de 2023 no Bröhan-Museum em Berlim.

Escrever este texto sobre a vida e o trabalho de Lucia Moholy foi duro – passei muita raiva, quis gritar o nome de Lucia e tive muita dificuldade para averiguar informações. Na Europa, já aconteceram exposições individuais de seu trabalho6, sempre mencionando a tentativa de se retificar a história e dar os devidos créditos à artista. Alguns trabalhos foram de extrema ajuda na construção desta pesquisa, e espero que o meu também possa contribuir para algumas mais. Hoje, o MoMA já retifica os créditos do catálogo para acomodar o nome de Lucia, inclusive online – assim como muitas outras frentes continuam tentando valorizar a artista e sua produção.

atua como designer há 5 anos. Graduada em Design Visual pela UFRGS, é parte do capítulo de Porto Alegre do Ladies, Wine & Design desde 2019 e trabalhou por 4 anos no clube de livros TAG Experiências Literárias. Trabalha com livros e produtos e se aventura na vida de freelancer. Também adora ler e falar sobre as leituras, no projeto pessoal Kaly Out Loud, e acredita no poder dos analógicos para despertar a sensibilidade das pessoas.
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