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5 de julho de 2023

A minha inquietação com a palavra “referência”

A obra “Peruvian Chess”, que ilustra este ensaio, foi cedida pela artista Mariana Abasolo (@_abasolo no Instagram).

É comum, em conversas sobre projetos de design, haver curiosidade sobre a origem de determinada ideia ou sobre como foi tomada a decisão de adotar esse ou aquele processo para executar um acabamento. Ou, ainda, de onde veio a vontade de escolher um estilo tipográfico específico ou certa paleta de cores para o trabalho em questão. Em geral, a pergunta é: “quais referências você usou para o projeto?”.

Também é corriqueiro ouvirmos a pergunta “quais são suas referências profissionais?”, com o intuito de descobrir quem são as pessoas em quem nos inspiramos para fazer o trabalho que fazemos. Frequentemente a resposta para essa pergunta aponta profissionais da mesma área da pessoa que a responde. Às vezes, está mais relacionada com o estilo visual do trabalho do que com a forma como a pessoa citada articula seus pensamentos, quais processos e métodos ela usa, como ela gere sua empresa e trata seus funcionários ou mesmo como é sua postura profissional.

Assim como muitos profissionais que conheço, sempre tive essa curiosidade sobre as razões por trás de decisões projetuais e sobre as trajetórias de pessoas que atuam em diversas áreas e cujo trabalho me inspira. Também sou um tanto viciado em assistir entrevistas, principalmente as que revelam aspectos banais e corriqueiros da pessoa entrevistada. Acho importantíssimo o compartilhamento de informações a respeito da maneira como diferentes profissionais tocam seus negócios, lidam com planilhas, gerenciam seus e-mails, suas rotinas, hábitos e experiências pregressas. Essas particularidades sempre inspiram e elucidam pontos cegos na trajetória de quem ainda não teve a oportunidade de passar pelas mesmas situações, ou que não pôde aprender sobre aqueles cenários em outro ambiente. Não por acaso, em 2014, fundei o Visitei – iniciativa que proporcionava visitas de estudantes e curiosos em geral a empresas de design, comunicação e tecnologia. Nessas visitas, as pessoas eram recebidas, normalmente, por quem fundou o estúdio, e os assuntos giravam em torno de como era seu cotidiano.

Nessa direção, saber sobre a vida e a carreira de profissionais de quaisquer áreas de atuação pode ser muito frutífero: pessoas que atuam com escrita, teatro, biologia, cinema, políticas públicas, música, direito…

Acho fascinante descobrir elementos que me ajudam a montar o quebra-cabeça que imagino sobre cada pessoa que admiro. Nessa direção, saber sobre a vida e a carreira de profissionais de quaisquer áreas de atuação pode ser muito frutífero: pessoas que atuam com escrita, teatro, biologia, cinema, políticas públicas, música, direito… Seja qual for o campo profissional, sempre haverá experiências comuns que podem servir de aprendizado. 

Além do contexto das referências de projetos e de profissionais, há o terceiro cenário em que a palavra “referência” aparece: na pergunta mais geral “quais são as suas referências?”. A resposta, nesse caso, costuma se referir a uma corrente artística específica, a uma pessoa diretora de cinema ou, ainda, a algo mais genérico, no estilo “gosto de ver exposições, jogar videogame e ir ao cinema”, sugerindo que essas práticas, por si só, são suficientes para gerar insumos para os projetos que a pessoa cria. 

Antes de continuar o raciocínio, vale uma nota: no contexto acadêmico, a palavra “referência” é frequente e diz respeito, principalmente, à bibliografia utilizada para o desenvolvimento de um artigo, tese ou estudo. Uma vez ouvi uma definição muito bonita da professora Marianna Al Assal, numa aula de metodologia científica, sobre como cada pesquisa acadêmica serve como degrau para estudos que ainda estão por vir, e como citar essas referências, além de um sinal óbvio de respeito, é uma forma de deixar claro quem pensou naqueles temas antes de nós, para que novas pessoas acessem essas fontes. Portanto, a crítica à palavra “referência”, presente neste ensaio, não está relacionada a esse contexto. 

Entre outras acepções da palavra “referência” no dicionário Michaelis, encontramos as seguintes:

Ação de reportar-se a uma autoridade.
Aquilo que é referido, relatado ou contado.

O primeiro aspecto que chama atenção nessas definições é o fato de que quando tratamos pessoas que nos influenciam como referências – e, portanto, como autoridades –, há, nessa conexão, certo grau de obediência e, consequentemente, de poder. Nesse sentido, mesmo que continuemos colocando indivíduos nesse lugar, é importante saber quais diretrizes estamos seguindo.

A outra acepção traz, a meu ver, dois pontos de atenção com relação ao que usamos como insumos em nossa prática criativa. O primeiro deles é quando reduzimos um filme, uma pintura ou um letreiro de lanchonete ao lugar de “elemento utilizado para outro fim” ou “aquilo que é referido”, esvaziando-os de significado e ignorando seus contextos originais. Já o segundo ponto de atenção ocorre quando, para criar um projeto de identidade visual, referenciamos um projeto de identidade visual; no caso de um projeto de arquitetura residencial, referenciamos um projeto de arquitetura residencial; ou na criação de uma peça de teatro sobre deuses gregos… Bem, já deu pra entender.

Ter como prática corriqueira o ato de colocar no posto de meras referências nossas experiências e leituras de mundo, as reduz a uma função e limita o valor de fruir algo ao seu simples uso.

Ter como prática corriqueira o ato de colocar no posto de meras referências nossas experiências e leituras de mundo, as reduz a uma função e limita o valor de fruir algo ao seu simples uso. Tantas horas de trabalho – de tantas pessoas diferentes – na construção de um filme, pra que ele se transforme em uma reles menção em um painel semântico. Pior ainda é quando só conseguimos assistir ao mesmo filme pensando em quais partes serão utilizadas para um projeto em andamento. Nesses casos, ao invés de mergulhar em um oceano de experiências e sensações interessantes, optamos por cruzar rapidamente sua superfície com uma lancha (munidos de uma rede de pesca).

Encontramos tudo o tempo todo. Da hora em que acordamos até a hora em que vamos dormir, vivenciamos centenas, milhares de cenas diferentes. Cruzamos com pessoas desconhecidas, utilizamos diferentes meios de transporte, caminhamos por ruas diversas, assistimos a um filme, a uma peça, escutamos diálogos na lanchonete, ouvimos histórias na papelaria, lemos um livro, observamos o ângulo formado pela sombra que bate no muro especificamente durante aquela hora do dia, vemos uma embalagem de parafuso, arrastamos o dedo pra cima no celular por cinco minutos sem perceber que acabamos de passar por sessenta imagens diferentes. A lógica produtivista, aliás, nos faz sentir certa culpa por ficar sem fazer nada olhando para o céu, ao mesmo tempo que nos induz a comportamentos nocivos para a saúde do corpo e da mente, como a rolagem infinita em um ambiente virtual que transforma ócio em consumo.

Com interesse suficiente, podemos nos aprofundar em várias dessas preciosidades que se apresentam casualmente a nós. Ao ouvir uma música num aplicativo de streaming, podemos buscar saber mais sobre a pessoa que está cantando, descobrir sua origem, de quais outras bandas ela já fez parte, qual era o contexto em que aquela música foi escrita, que outros artistas tocam músicas semelhantes – tudo isso, muitas vezes, sem que seja necessário sair do próprio aplicativo. Se aguçarmos mais ainda a curiosidade, essa pesquisa pode levar a inúmeras descobertas: às vezes, a cidade de origem de um integrante da banda é famosa por produzir determinado tipo de leguminosa, alimento este que deve ficar de molho por cerca de seis horas antes do preparo e que combina bem com louro, cuja árvore dá nome ao guitarrista de outro grupo que foi fundado após um membro ser demitido de outra banda que travou uma batalha contra o compartilhamento de músicas via sistemas peer-to-peer. A digressão é infinita e quem nunca passeou por horas pela Wikipédia que atire a primeira pedra.

Com o passar do tempo, as informações que vamos coletando ao longo de nossa vivência transformam nosso modo de perceber o mundo. Acho muito bonito quando a professora e crítica de dança Helena Katz diz que “cada indivíduo é uma coleção diferente de percepções”. Um dia, num desses passeios pela internet afora, me deparei com a informação de que um baralho, ao ser embaralhado, provavelmente apresenta uma combinação de cartas nunca antes vista na história da humanidade. O fato de haver uma quantidade bem grande de sequências possíveis (oito seguido de 67 zeros, mais do que a quantidade de estrelas de uma galáxia) pode ser associado à combinação única de experiências vividas, de informações compreendidas e de associações possíveis entre elementos que cada indivíduo compila ao longo de sua existência. Tudo isso, por si só, já me parece suficiente para demonstrar o quanto ter uma curiosidade aguçada sobre as coisas amplia nossa percepção de mundo.

Entender o funcionamento, a origem, o cerne de algo nos permite aplicar o mesmo raciocínio a outras situações com as quais nos deparamos em nosso dia a dia.

Ao tomar as rédeas de nossa experiência, enquanto seres que vivem no século XXI, bombardeados de informações da hora que acordamos até a hora que nos deitamos, urge afiarmos nossa atenção para as perguntas, mais do que para as respostas com as quais nos deparamos. Tentar buscar a essência das coisas torna-se fundamental para realmente compreendermos um fenômeno, e esse entendimento faz sentido à medida que se junta a outras noções vindas de diferentes origens. Nossa vivência é alargada cada vez que nos perguntamos como funciona uma máquina, o que mais poderia ser produzido por ela, quais são as peças que a compõem, como ela é manuseada, quais princípios físicos a regem, em qual contexto histórico ela foi concebida, que outros formatos ela já teve… Quando observamos a folha de uma planta, cabe tentar entender a função de seu formato, se ele faz com que ela absorva mais ou menos água, se sua tonalidade indica sua preferência por ambientes mais ou menos iluminados. Indo além, também temos acesso a fontes confiáveis que podem responder a outras dúvidas, como que efeitos ela causa ao ser ingerida, para quais doenças seu uso é recomendado ou ainda como gravar uma imagem sobre sua superfície. Entender o funcionamento, a origem, o cerne de algo nos permite aplicar o mesmo raciocínio a outras situações com as quais nos deparamos em nosso dia a dia.

Para além de afiar nossa atenção às perguntas que podemos formular, é saudável também criarmos condições para que encontros fortuitos aconteçam. Semana passada, eu estava tomando café da manhã e, olhando despretensiosamente para o céu, fui presenteado com uma estrela cadente. Me pergunto quantas delas atravessam o céu diariamente enquanto nossos olhos estão voltados para telas e outros cenários. Ao escolher deliberadamente olhar para o céu, abrimos espaço para que momentos como esse aconteçam, assim como surpresas podem acontecer quando nos permitimos mergulhar fundo em um assunto diretamente relacionado ou não ao projeto sobre o qual estamos debruçados no momento. Não temos o poder de fazer um corpo celeste passar pela atmosfera terrestre, mas se orientarmos cotidianamente nossas decisões para que essas situações sejam possíveis, e estivermos atentos ao momento presente, ocasiões como essa podem cruzar nosso caminho.

Criatividade pode ser entendida como a capacidade de conectar coisas existentes de um modo singular ou, ainda, de dar novos usos para ferramentas e materiais concebidos para outros fins.

Criatividade pode ser entendida como a capacidade de conectar coisas existentes de um modo singular ou, ainda, de dar novos usos para ferramentas e materiais concebidos para outros fins. Portanto, absolutamente tudo com o que cruzamos até hoje tem potencial para se tornar insumo para trabalhos criativos. Basta embaralharmos nossas cartas e olharmos atentamente para o problema que queremos solucionar – e formular as perguntas adequadas. A busca obstinada por referências para um projeto pode obliterar sua essência, ocultando observações preciosas a respeito do problema em questão. Essa fixação em tentar, desde o início, conectar algo a uma referência, sem levar em conta sua especificidade, faz com que a solução já venha pré-moldada. Se aquilo que é referido é uma solução para um problema similar, há aí apenas a repetição de soluções previamente concebidas. Claro que nem sempre é necessário reinventar a roda, mas recorrer a aspectos superficiais de exemplos existentes, sem o devido entendimento de seu contexto e construção, geralmente leva a respostas rasas e que não se sustentam.

Estar permeável e praticar a escuta ativa em nosso cotidiano não deixam de ser formas de resistência a esse sistema econômico no qual estamos inseridos, que faz com que nos sintamos obrigados a pensar em causa e efeito, eficiência, otimização de processos, agilidade; que nos convence da necessidade de acompanharmos as últimas tendências de todos os assuntos para não sermos deixados para trás e nos condiciona a usar tudo o que encontramos como capital. Esse contexto criou o estado de imediatismo e de superficialidade ao qual estamos subordinados. Cabe a nós, portanto, perceber que a vida, em si, já é farta – e reverenciar as coisas pelo que elas são. Nesse sentido, pautar o trabalho criativo no acúmulo de referências que estejam sempre a serviço de nossas necessidades parece um modo frágil de experimentar o mundo.

é natural de Ribeirão Pires e hoje vive na cidade de São Paulo, onde só se locomove de bicicleta. Gosta de olhar para o céu, de fazer longas caminhadas e de estabelecer conexões aleatórias. É sócio e cofundador do estúdio de design Daó.
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