
A ilustração que acompanha este ensaio foi cedida por Antonio Luvs (@antonioluvs) para a Recorte.
Em 2024, o dicionário Collins elegeu “brat” como a palavra do ano.
“Eu sou a sua referência favorita, bebê”, canta Charli xcx. E é com essas palavras que uma profecia autorrealizada acontece, logo nos segundos iniciais da primeira faixa de brat, mais especificamente, dez segundos após o ouvinte dar o play no disco. Mas o acontecimento que tornou isso possível veio muito antes, até mesmo do lançamento do single 360, de onde vieram, aliás, a frase que nomeia este texto e também a que decreta a profecia. Ele deu início a um fenômeno cultural que foi debatido, celebrado, polemizado, criticado, se tornou onipresente até ser exaurido e esgotado e, de alguma maneira, ressurgiu, de novo e de novo, para se tornar um artefato cultural, uma atitude e até um novo termo em um dicionário de referência1. Esse acontecimento é a capa de brat.

Design de capa por Brent David Freaney.
Sigla da expressão em inglês fear of missing out, usada, principalmente, para representar o medo de perder eventos sociais.
Tenho para mim que o vórtex de FOMO2 retroativo, exaustão, colapso e policrises do pós-pandemia colocou o design – mais especificamente, o design visual – numa aceleração e vulgarização que o esvaziou de sentido. A vida passou a ser mediada apenas por telas; todo mundo virou um creator; o design como termo foi sequestrado pela engenharia de aplicativos e suas “experiências de usuário”. E talvez o maior choque que brat possa ter provocado, para além de sua cor estridente e enjoativa, para além de seu som abrasivo e letras confessionais, ou de sua tipografia em baixa resolução, foi o choque de ver o design visual, gráfico, como protagonista de uma narrativa cultural.
Vamos começar olhando para ela. “A visão precede a palavra”, diz John Berger nos primeiros minutos – ops, na primeira frase – de Modos de ver (Fósforo, 2023). Ao ser divulgada, a capa provocou uma confusão: o que rolou aqui, gente? O estagiário subiu a imagem errada? Isso é intencional? Em seguida, vieram discussões e críticas em relação à sua simplicidade crua, ao recurso da tipografia grande, em caixa baixa, numa fonte não serifada renderizada em baixa resolução. Preguiça ou genialidade? Em entrevistas, Charli comentou seu desconforto com o fato de toda artista pop precisar ter o corpo estampado na capa de seus álbuns, vendendo sua imagem mais do que seu trabalho musical. Provocadora e iconoclasta desde sempre, a resposta da artista a esse incômodo foi criar uma imagem tosca, buscando destilar o máximo de significado a partir de gestos mínimos de informação de design: uma tipografia, uma cor e uma textura. O briefing que a cantora apresentou ao designer Brent David Freaney era de que a cor deveria ser pouco amigável e nem um pouco cool. Além de ter o mesmo efeito estridente de um laranja de emergência ou de um amarelo fluorescente de atenção. Segundo Freaney, mais de 500 versões de verde foram testadas ao longo de cinco longos meses: “eu quero sentir que a capa é de mau gosto”, Charli lhe dizia. A tipografia usa como base a Arial, tentando referenciar o generalismo neutro e asséptico da Helvetica, mas distorcida verticalmente. A palavra, posicionada de maneira estranha na capa e desacompanhada do nome da cantora, é incômoda e desagradável, com rasterização de baixa qualidade: os designers literalmente produziram uma imagem de 100×100 pixels em 72 dpi e a aumentaram até o tamanho final (numa discussão com amigos, refleti que deve ser um PNG transparente com a tipografia, ampliado e salvo dentro de uma arte 300 dpi).

Design de capa por Brent David Freaney.
Charli então aumentou a aposta: trocou as capas de seus álbuns anteriores nos serviços de streaming para variações da mesma família de brat: todas com tipografia pixelada sobre fundos estridentes, gerando contrastes desconfortáveis. Em diversas capitais do mundo, colocou para circular caminhonetes cujas caçambas traziam telões de LED com o nome do disco; seu próprio nome; termos provocativos como “charli sex tape”; nomes de colaboradores do álbum; e um QR code para o pre-save. E aí, nas semanas que precederam o lançamento de brat, a profecia enfim se realizou: a imagem virou meme. Ela era, então, nossa referência favorita. A cor se tornou onipresente no avatar de marcas e indivíduos nas redes sociais. No Brasil, de Rede Globo a Burger King abraçaram a trend em questão de dias; nos Estados Unidos, a MTA (Autoridade de Trânsito de Trens do estado de Nova York) referenciou a cor, análoga a uma das linhas de metrô do Brooklyn; e até a ex-vice-presidente norte-americana, Kamala Harris, se apropriou da cor ao lançar sua campanha como concorrente de Donald Trump pelo Partido Democrata. Memes de crítica social foram refeitos baseados na cor. Camisetas bootleg. Em algum lugar do mundo, alguma quitanda deve ter feito essa associação para vender folhas ou frutas frescas. Qualquer coisa verde era brat, a palavra-nome da cor sendo quase substituída.

A cantora foi cada vez mais longe (até mais do que a Pabllo). No TikTok, ela compartilhou uma parede que era pintada em tempo real para anunciar faixas bônus e remixes. Uma versão expandida do disco foi lançada no Storm King Art Center, próximo à cidade de Nova York, num evento com cabine de DJ e pista de dança, onde a capa do álbum aberta se transformou numa grande escultura a céu aberto. Um gerador online fez “versões oficiais” do meme, colocando qualquer frase que o usuário desejasse na tipografia brat: bastava printar a tela e pronto. Ecobags imitando as sacolas gigantes da Ikea (que já se tornaram até produto de alto luxo nas mãos da também iconoclasta Balenciaga) em verde brat foram vendidas como merchandising oficial de turnê.
Mais do que polêmica ou incógnita, a capa de brat é, na verdade, um comentário social disfarçado, uma reflexão sobre a relação entre commodity e vulgarização (oi, Byung-Chul Han) que temos com as imagens hoje em dia: elas são produtos, estão em toda parte, qualquer um pode fazê-las, elas tentam nos dizer muito, mas em demasia não significam quase nada. Temos em nossas mãos dispositivos pessoais com câmeras de altíssima qualidade e displays em altíssima resolução, além de uma infinidade de softwares e filtros para correção de imperfeições. Podemos contar com o auxílio da inteligência artificial para remover – em troca de muita energia e muitos litros de água – outros turistas naquela paisagem paradisíaca ou intrusos na foto da academia lotada. Ainda assim, compartilhamos obsessivamente imagens em baixa: estáticos e vídeos pixelados, mas sempre hiperproduzidos, a ponto de se tornarem fakes. O frame de um print da transmissão em 640p da cerimônia do Globo de Ouro, com Tilda Swinton de boca aberta celebrando a vitória de Fernanda Torres, circula aumentada em 10x num iPhone 16 Pro Max de titânio e retina. Vira sticker de WhatsApp para demonstrar sororidade. É disso que é feita a cultura hoje, e é assim que nos comunicamos. De tão onipresentes, imagens se tornam vulgares. De tão repetitivas, se tornam cansativas. O próprio designer admite que seu ponto de partida foram os avatares de redes sociais como o MySpace (quase o The Velvet Underground das redes, que durou pouco, mas teve um impacto que ressoa até hoje), em que a persona online era manifestada naquela pequena imagem quadriculada, o avatar. A capa de brat é também uma manifestação que concentra não apenas o caos estridente da cultura pop atual, mas toda a temperatura da fricção entre nossa vida on e offline.

O incômodo que ela nos causa é o de não sabermos exatamente quais eram as intenções de Charli: dizer um grande foda-se para a cultura e o capitalismo – com uma capa feia, pouco informativa, irrititante, repelente, originalmente memética –, fazendo um comentário crítico disfarçado de piada de mau (bom) gosto, ou simplesmente aceitar (de maneira nem um pouco passiva, mas muito estridente) o cansaço sistêmico em que nos encontramos como sociedade nesse estágio do capitalismo tardio.
Reforçando uma ideia de forma-função, essa sensação paradoxal ecoa também nas letras do álbum, em que a ideia de um exterior bruto serve para esconder um interior vulnerável, e o jogo entre percepção externa e autoimagem é uma preocupação constante. As canções falam sobre o embate entre carreira e maternidade, rivalidade e sororidade feminina, exposição midiática e revolta. Como quero ser percebida versus como quero que me percebam, uma das questões que estão no cerne do uso de redes sociais e do mercado de marketing de influência. Os quinze minutos de fama profetizados por Andy Warhol se tornaram os 1.440 de cada dia, em que estamos todos perpetuamente performando para o olhar do outro, dentro e fora das telas.

Capa de uma matéria online do The New York Times, publicada em julho de 2024, sobre a capa de brat.
Com uma rudeza sofisticada e imperfeita, brat é o acontecimento cultural mais relevante de 2024. Sobrevivendo a tentativas de backlash online por sua capa, onipresença, vinculação com a situação política nos Estados Unidos, e se reinventando de verão a inverno, por três estações. É um lembrete a todos nós, do mercado criativo, sobre o poder que um artefato visual pode ter. Não nos esqueçamos disso. Em nosso dia mais normal, vendemos cartão de crédito, xampu ou chinelo. Mas quando isso transcende, um arquivo PDF pode virar cultura de massa. Substituir uma cor. Definir um comportamento. E se tornar a nossa referência favorita, bebê.