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5 de fevereiro de 2025

Ela é tão Julia: Charli xcx e a capa de brat

por Guilherme Falcão

A ilustração que acompanha este ensaio foi cedida por Antonio Luvs (@antonioluvs) para a Recorte.

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Em 2024, o dicionário Collins elegeu “brat” como a palavra do ano.

“Eu sou a sua referência favorita, bebê”, canta Charli xcx. E é com essas palavras que uma profecia autorrealizada acontece, logo nos segundos iniciais da primeira faixa de brat, mais especificamente, dez segundos após o ouvinte dar o play no disco. Mas o acontecimento que tornou isso possível veio muito antes, até mesmo do lançamento do single 360, de onde vieram, aliás, a frase que nomeia este texto e também a que decreta a profecia. Ele deu início a um fenômeno cultural que foi debatido, celebrado, polemizado, criticado, se tornou onipresente até ser exaurido e esgotado e, de alguma maneira, ressurgiu, de novo e de novo, para se tornar um artefato cultural, uma atitude e até um novo termo em um dicionário de referência1. Esse acontecimento é a capa de brat.

Design de capa por Brent David Freaney.

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Sigla da expressão em inglês fear of missing out, usada, principalmente, para representar o medo de perder eventos sociais.

Tenho para mim que o vórtex de FOMO2 retroativo, exaustão, colapso e policrises do pós-pandemia colocou o design – mais especificamente, o design visual – numa aceleração e vulgarização que o esvaziou de sentido. A vida passou a ser mediada apenas por telas; todo mundo virou um creator; o design como termo foi sequestrado pela engenharia de aplicativos e suas “experiências de usuário”. E talvez o maior choque que brat possa ter provocado, para além de sua cor estridente e enjoativa, para além de seu som abrasivo e letras confessionais, ou de sua tipografia em baixa resolução, foi o choque de ver o design visual, gráfico, como protagonista de uma narrativa cultural.

Em entrevistas, Charli comentou seu desconforto com o fato de toda artista pop precisar ter o corpo estampado na capa de seus álbuns, vendendo sua imagem mais do que seu trabalho musical.

Vamos começar olhando para ela. “A visão precede a palavra”, diz John Berger nos primeiros minutos – ops, na primeira frase – de Modos de ver (Fósforo, 2023). Ao ser divulgada, a capa provocou uma confusão: o que rolou aqui, gente? O estagiário subiu a imagem errada? Isso é intencional? Em seguida, vieram discussões e críticas em relação à sua simplicidade crua, ao recurso da tipografia grande, em caixa baixa, numa fonte não serifada renderizada em baixa resolução. Preguiça ou genialidade? Em entrevistas, Charli comentou seu desconforto com o fato de toda artista pop precisar ter o corpo estampado na capa de seus álbuns, vendendo sua imagem mais do que seu trabalho musical. Provocadora e iconoclasta desde sempre, a resposta da artista a esse incômodo foi criar uma imagem tosca, buscando destilar o máximo de significado a partir de gestos mínimos de informação de design: uma tipografia, uma cor e uma textura. O briefing que a cantora apresentou ao designer Brent David Freaney era de que a cor deveria ser pouco amigável e nem um pouco cool. Além de ter o mesmo efeito estridente de um laranja de emergência ou de um amarelo fluorescente de atenção. Segundo Freaney, mais de 500 versões de verde foram testadas ao longo de cinco longos meses: “eu quero sentir que a capa é de mau gosto”, Charli lhe dizia. A tipografia usa como base a Arial, tentando referenciar o generalismo neutro e asséptico da Helvetica, mas distorcida verticalmente. A palavra, posicionada de maneira estranha na capa e desacompanhada do nome da cantora, é incômoda e desagradável, com rasterização de baixa qualidade: os designers literalmente produziram uma imagem de 100×100 pixels em 72 dpi e a aumentaram até o tamanho final (numa discussão com amigos, refleti que deve ser um PNG transparente com a tipografia, ampliado e salvo dentro de uma arte 300 dpi).

Design de capa por Brent David Freaney.

Charli então aumentou a aposta: trocou as capas de seus álbuns anteriores nos serviços de streaming para variações da mesma família de brat: todas com tipografia pixelada sobre fundos estridentes, gerando contrastes desconfortáveis. Em diversas capitais do mundo, colocou para circular caminhonetes cujas caçambas traziam telões de LED com o nome do disco; seu próprio nome; termos provocativos como “charli sex tape”; nomes de colaboradores do álbum; e um QR code para o pre-save. E aí, nas semanas que precederam o lançamento de brat, a profecia enfim se realizou: a imagem virou meme. Ela era, então, nossa referência favorita. A cor se tornou onipresente no avatar de marcas e indivíduos nas redes sociais. No Brasil, de Rede Globo a Burger King abraçaram a trend em questão de dias; nos Estados Unidos, a MTA (Autoridade de Trânsito de Trens do estado de Nova York) referenciou a cor, análoga a uma das linhas de metrô do Brooklyn; e até a ex-vice-presidente norte-americana, Kamala Harris, se apropriou da cor ao lançar sua campanha como concorrente de Donald Trump pelo Partido Democrata. Memes de crítica social foram refeitos baseados na cor. Camisetas bootleg. Em algum lugar do mundo, alguma quitanda deve ter feito essa associação para vender folhas ou frutas frescas. Qualquer coisa verde era brat, a palavra-nome da cor sendo quase substituída.

A cantora foi cada vez mais longe (até mais do que a Pabllo). No TikTok, ela compartilhou uma parede que era pintada em tempo real para anunciar faixas bônus e remixes. Uma versão expandida do disco foi lançada no Storm King Art Center, próximo à cidade de Nova York, num evento com cabine de DJ e pista de dança, onde a capa do álbum aberta se transformou numa grande escultura a céu aberto. Um gerador online fez “versões oficiais” do meme, colocando qualquer frase que o usuário desejasse na tipografia brat: bastava printar a tela e pronto. Ecobags imitando as sacolas gigantes da Ikea (que já se tornaram até produto de alto luxo nas mãos da também iconoclasta Balenciaga) em verde brat foram vendidas como merchandising oficial de turnê.

De tão onipresentes, imagens se tornam vulgares. De tão repetitivas, se tornam cansativas.

Mais do que polêmica ou incógnita, a capa de brat é, na verdade, um comentário social disfarçado, uma reflexão sobre a relação entre commodity e vulgarização (oi, Byung-Chul Han) que temos com as imagens hoje em dia: elas são produtos, estão em toda parte, qualquer um pode fazê-las, elas tentam nos dizer muito, mas em demasia não significam quase nada. Temos em nossas mãos dispositivos pessoais com câmeras de altíssima qualidade e displays em altíssima resolução, além de uma infinidade de softwares e filtros para correção de imperfeições. Podemos contar com o auxílio da inteligência artificial para remover – em troca de muita energia e muitos litros de água – outros turistas naquela paisagem paradisíaca ou intrusos na foto da academia lotada. Ainda assim, compartilhamos obsessivamente imagens em baixa: estáticos e vídeos pixelados, mas sempre hiperproduzidos, a ponto de se tornarem fakes. O frame de um print da transmissão em 640p da cerimônia do Globo de Ouro, com Tilda Swinton de boca aberta celebrando a vitória de Fernanda Torres, circula aumentada em 10x num iPhone 16 Pro Max de titânio e retina. Vira sticker de WhatsApp para demonstrar sororidade. É disso que é feita a cultura hoje, e é assim que nos comunicamos. De tão onipresentes, imagens se tornam vulgares. De tão repetitivas, se tornam cansativas. O próprio designer admite que seu ponto de partida foram os avatares de redes sociais como o MySpace (quase o The Velvet Underground das redes, que durou pouco, mas teve um impacto que ressoa até hoje), em que a persona online era manifestada naquela pequena imagem quadriculada, o avatar. A capa de brat é também uma manifestação que concentra não apenas o caos estridente da cultura pop atual, mas toda a temperatura da fricção entre nossa vida on e offline.

O incômodo que ela nos causa é o de não sabermos exatamente quais eram as intenções de Charli: dizer um grande foda-se para a cultura e o capitalismo – com uma capa feia, pouco informativa, irrititante, repelente, originalmente memética –, fazendo um comentário crítico disfarçado de piada de mau (bom) gosto, ou simplesmente aceitar (de maneira nem um pouco passiva, mas muito estridente) o cansaço sistêmico em que nos encontramos como sociedade nesse estágio do capitalismo tardio.

Os quinze minutos de fama profetizados por Andy Warhol se tornaram os 1.440 de cada dia, em que estamos todos perpetuamente performando para o olhar do outro, dentro e fora das telas.

Reforçando uma ideia de forma-função, essa sensação paradoxal ecoa também nas letras do álbum, em que a ideia de um exterior bruto serve para esconder um interior vulnerável, e o jogo entre percepção externa e autoimagem é uma preocupação constante. As canções falam sobre o embate entre carreira e maternidade, rivalidade e sororidade feminina, exposição midiática e revolta. Como quero ser percebida versus como quero que me percebam, uma das questões que estão no cerne do uso de redes sociais e do mercado de marketing de influência. Os quinze minutos de fama profetizados por Andy Warhol se tornaram os 1.440 de cada dia, em que estamos todos perpetuamente performando para o olhar do outro, dentro e fora das telas.

Capa de uma matéria online do The New York Times, publicada em julho de 2024, sobre a capa de brat.

Com uma rudeza sofisticada e imperfeita, brat é o acontecimento cultural mais relevante de 2024. Sobrevivendo a tentativas de backlash online por sua capa, onipresença, vinculação com a situação política nos Estados Unidos, e se reinventando de verão a inverno, por três estações. É um lembrete a todos nós, do mercado criativo, sobre o poder que um artefato visual pode ter. Não nos esqueçamos disso. Em nosso dia mais normal, vendemos cartão de crédito, xampu ou chinelo. Mas quando isso transcende, um arquivo PDF pode virar cultura de massa. Substituir uma cor. Definir um comportamento. E se tornar a nossa referência favorita, bebê.

O que senti na primeira vez em que experimentei uma ferramenta de geração de imagens com inteligência artificial (IA), em 2022, foi um misto de espanto, empolgação e curiosidade. Como uma artista-designer nascida na década de 1980, que assistiu de camarote à aterrissagem dos PCs e smartphones sobre blocos de papel almaço e telefones de disco, desde cedo fui fascinada por processos que misturassem técnicas manuais e digitais. Também presenciei uma atmosfera de euforia libertária nos primeiros anos da internet (a utopia da cultura livre despontava em sites Geocities e chats no mIRC), que plantou em mim a admiração por métodos de criação coletiva. Por essas razões fiquei muito assombrada com o fato de que aquela interface de IA respondesse ao meu comando de poucas palavras com uma combinação de pixels reconhecível gerada a partir de uma base de dados compartilhada.

Em meio ao meu deslumbramento com essa tecnologia nova, comecei a me deparar com críticas contundentes de artistas e designers muito preocupados com seus desdobramentos. A primeira crítica que me chamou atenção foi em relação à precarização das condições de trabalho: quando o mercado assimilar essa tecnologia, os prazos e exigências ficarão cada vez mais duros e não teremos tempo nem condições de cuidar das saúdes mental e física, de descansar; não seremos capazes de cobrar um preço justo pelo trabalho ou o próprio trabalho desaparecerá. Ou seja: a IA desencadeou um medo generalizado da perda dos meios de subsistência.

Será que esse medo da precarização é mesmo um medo do futuro? Ou ele simplesmente reflete o receio de seguirmos vivendo nas condições de fragilização dos direitos trabalhistas a que já estávamos submetidos antes mesmo do boom da IA?

No entanto, observando de perto, mais do que uma simples reação à chegada de uma nova tecnologia, esse temor pode estar mascarando questões mais profundas e estruturais que já afetam os trabalhadores criativos há muito tempo. Será que esse medo da precarização é mesmo um medo do futuro? Ou ele simplesmente reflete o receio de seguirmos vivendo nas condições de fragilização dos direitos trabalhistas a que já estávamos submetidos antes mesmo do boom da IA?

Imagens produzidas por Larissa Ribeiro, Revista Comando e Midjourney.
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Apesar de ter citado apenas um trecho do livro Realismo capitalista: é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo? (Autonomia Literária, 2020), todo esse parágrafo tem a ver com a ideia central da obra de Mark Fisher. Em linhas gerais, o autor nos alerta – de forma brilhante, diga-se de passagem – para o fato de que o capitalismo, em última análise, se beneficia de ataques despolitizados aos seus subprodutos mais nocivos, à medida que eles desviam a atenção da questão principal: uma incapacidade generalizada de imaginarmos outras formas de organização econômica e social.

Precisamos ter o cuidado de analisar se essa ansiedade em torno da IA não estará cumprindo o papel de fornecer um inimigo perfeito contra o qual podemos lutar “sem precisar de nenhum tipo de solução política ou de reorganização sistêmica”1, ou seja, será que estamos deixando a política de lado para atender a uma emergência ética? É fundamental examinar o verdadeiro cerne da precarização para entender se a maneira como vamos pautar a muito necessária regulação está enraizada em um desejo real de liberdade ou se estamos presos em uma crise de imaginação capitalista, na qual até mesmo os protestos e exigências que fazemos acabam reforçando a ideologia que deveriam combater.

Isso leva à segunda crítica que me chamou a atenção, sobre a legalidade da obtenção da base de dados que treina as IA. Uma das maiores preocupações que vi surgir, principalmente entre ilustradores, é: se a IA for capaz de copiar o meu trabalho, eu não serei mais necessário ao mercado. Essa angústia bastante compreensível e aparentemente elementar envolve um emaranhado de afetos e crenças relacionadas ao funcionamento de um sistema de arte profundamente regido por uma racionalidade neoliberal.

Mais do que uma mera disputa sobre tecnologia, essa discussão toca em conceitos fundamentais sobre o valor do trabalho, a função da arte e o papel das instituições, tanto as que dominam o desenvolvimento tecnológico quanto as que supostamente deveriam regulá-lo.

A utilização de informações disponíveis na internet pelas empresas desenvolvedoras sem a devida autorização dos autores tem sido um dos principais argumentos para justificar a grande hostilidade dos artistas contra os softwares de IA generativa. Como pode uma corporação usurpar o fruto do meu trabalho para produzir derivações que, em última instância, levarão à perda do meu ganha-pão? É bem neste nó que moram algumas questões intrincadas que tensionam ideias de individualidade, originalidade e direitos coletivos, que, por fazerem parte da lógica fundacional do neoliberalismo, podem ser difíceis de encarar em sua complexidade. Mais do que uma mera disputa sobre tecnologia, essa discussão toca em conceitos fundamentais sobre o valor do trabalho, a função da arte e o papel das instituições, tanto as que dominam o desenvolvimento tecnológico quanto as que supostamente deveriam regulá-lo.

Uma das saídas de regulação apontadas por movimentos de artistas tem sido a da proteção dos direitos autorais e da propriedade intelectual, através da exigência de autorização prévia para a utilização de obras artísticas e literárias e consequente remuneração sobre o uso. Embora este seja um caminho que, a princípio, solucionaria o problema da valorização e da compensação financeira, há que se olhar mais a fundo para o cerne do pensamento que rege a lógica da criação intelectual: as ideias de autoria e originalidade, os próprios conceitos de original e cópia, assim como as implicações políticas das normas de circulação da cultura.

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E também de penalização de discursos transgressores, como aponta Foucault na conferência “O que é um autor”, de 1969, mas não é esse o ponto desta análise.

Em seu livro A cultura é livre: uma história da resistência antipropriedade (Autonomia Literária, 2021), Leonardo Foletto traça um panorama detalhado da origem das noções de propriedade intelectual e de domínio público, numa análise histórica ricamente ilustrada por exemplos das culturas ocidentais e orientais, sem esquecer dos povos originários das Américas. Não deveria ser surpresa para qualquer estudante de arte e de design a constatação de que o conceito ocidental de propriedade intelectual emerge entranhada no desenvolvimento do capitalismo, com o surgimento dos primeiros monopólios cedidos a impressores. Da mesma forma, a ideia de autor como indivíduo nasce do antropocentrismo renascentista e se reafirma com a noção iluminista de santidade da criação individual. Desde o surgimento do copyright, a evocação da proteção do autor em defesas jurídicas era mais de uma artimanha para proteger monopólios de certos grupos industriais e para restringir o acesso aos meios de produção cultural do que de uma proteção real a quem criava. Analisando as condições de surgimento dessas primeiras regras que ditavam quem podia ou não copiar com base em uma necessidade de mercado, sob a bandeira da defesa da remuneração do autor2, cabe a pergunta, muito bem colocada por Foletto: “Até que ponto a introdução do direito à propriedade intelectual, em vez de promover, não restringe o progresso do conhecimento, da cultura e da tecnologia?”.

Imagens produzidas por Larissa Ribeiro, Revista Comando e Midjourney.

E se não quisermos voar tão alto com o nobre (e talvez delirante?) objetivo de defender a livre circulação da cultura, mas manter os pés no chão e pensar em como o direito de autor efetivamente atua na vida do artista-trabalhador, basta um olhar pragmático para o funcionamento desse dispositivo nas relações de mercado em 2024: Foletto cita estudos econômicos que demonstram que, das receitas obtidas com vendas de cópias, 10% do lucro vai para 90% dos artistas, enquanto que 90% vai para 10%. Isso sem considerar na equação os intermediários, como grandes gravadoras, distribuidoras e conglomerados editoriais, que, na prática, acumulam a maior parte dos recursos gerados pelo trabalho, jogando aos artistas uma migalha do valor monetário extraído do processo de transmutação da arte em mercadoria.

A propriedade intelectual, longe de ser um valor neutro, está profundamente inserida na dinâmica neoliberal da privatização de tudo, que separa os indivíduos e transforma a cultura em um mercado de produtos.

Quando enxergamos essa mínima porcentagem sobre a comercialização do trabalho como uma das únicas formas de subsistência para artistas, sem perceber, temos nossos imaginários e sonhos sequestrados pelo capitalismo – nos tornamos defensores, às vezes ferrenhos, de uma lógica que desde sua origem está fadada a nos subjugar. A regulação da IA é necessária, mas será que ela precisa seguir o modelo neoliberal, em que a propriedade intelectual é vista como um dado inquestionável e o lucro é o único critério de sucesso? Somos capazes de fazer um exercício radical de imaginação para além das fronteiras do mercado? Podemos imaginar outros mecanismos de sustentação que não dependam exclusivamente da mercantilização das obras? Algumas saídas se desenham timidamente quando pensamos em renda básica universal ou no fomento do Estado à arte, mas é urgente começarmos a arar o terreno da nossa imaginação para que possamos semear novas saídas. A propriedade intelectual, longe de ser um valor neutro, está profundamente inserida na dinâmica neoliberal da privatização de tudo, que separa os indivíduos e transforma a cultura em um mercado de produtos.

Voltando à questão específica do desrespeito à propriedade intelectual pela IA, salta aos olhos a existência de dois pesos e duas medidas quando o assunto é a exploração do conteúdo que pessoas, artistas ou não, disponibilizam na internet. Como pode ser perfeitamente aceitável, e até desejável, que uma imagem, tal qual foi postada por seu autor em uma rede social, seja utilizada por uma big tech para gerar lucro em suas plataformas sem que o autor seja minimamente recompensado, mas no momento em que essa mesma imagem se torna matéria-prima para um embaralhado de pixels gerados a partir de um gráfico de milhares de eixos, sua utilização por uma empresa passa a ser inaceitável? Se julgamos e nos revoltamos contra a segunda forma, o que nos faz aceitar a primeira com relativa tranquilidade?

Um primeiro palpite é que a forma com que as redes sociais têm capitalizado em cima do conteúdo de seus usuários é tão pulverizada e fragmentada que dificulta a materialização de um sentimento de revolta. Em outra esfera, a utilização pela IA de conteúdos dissociados do crédito de autoria mexe com afetos ligados à propriedade intelectual, à medida que a identidade do artista é construída com base na originalidade/autenticidade de sua obra.

Se as imagens que produzimos estão divorciadas de uma motivação crítica, não existe nem existirá Inteligência Artificial que por si só nos redima ou nos condene.

Embora as vanguardas artísticas e o pensamento filosófico do século 20 tenham por vezes se ocupado em decretar o fim da autoria e da originalidade na arte, não é certo que as consequências desse pensamento tenham sido amplamente absorvidas. A ideia de autor como gênio criativo solitário, cristalizada pelo Romantismo no século 19, segue infiltrada no imaginário dos mesmos artistas que, por um lado, admitem que toda obra é produto de trabalho árduo e dedicação ao processo, e, por outro, sonham com o dia em que terão uma ideia singular e brilhante, que será reconhecida e embalada como a mercadoria que lhe renderá fama e dinheiro. Mesmo que para sustentar essa fantasia seja necessário ignorar que muitos dos processos que hoje chamamos de “originais” envolvem a repetição, modificação e citação de obras anteriores. A arte sempre foi um jogo de recombinação de padrões, um processo que a IA agora potencializa de maneira explícita, ameaçando levar ao limite o império da estética do pastiche e da releitura. E se nos arriscássemos a abandonar a ideia de autor como proprietário e detentor de toda a criatividade? E se imaginássemos um mundo em que todos pudessem usar qualquer obra de qualquer maneira? Se as imagens que produzimos estão divorciadas de uma motivação crítica, não existe nem existirá Inteligência Artificial que por si só nos redima ou nos condene.

Imagens produzidas por Larissa Ribeiro, Revista Comando e Midjourney.

Criticar a existência dessa mecânica da propriedade intelectual não quer dizer de modo algum defender que se abra a porteira para que mais uma corporação se aproprie da produção artística que, de modo mais ou menos compulsório, fomos levados a disponibilizar na internet. Pelo contrário, a crítica almeja desobstruir uma trilha que antes parecia interditada pelo pensamento neoliberal. E se a solução para o problema da coleta não autorizada de dados fosse, em lugar de fechar o cerco da propriedade intelectual privada, romper de vez a represa e obrigar que as empresas que se beneficiam da inundação devolvessem à sociedade códigos abertos, transparentes e de livre acesso? Indo ainda mais longe, se essa solução de abertura viesse aliada a uma política educacional que possibilitasse a inclusão de grupos do sul global no desenvolvimento dos códigos e pudesse ajudar a prever desafios éticos fora do eixo do capital e a gerar benefícios locais? Podemos ousar imaginar cenários assim e seus possíveis ganhos e desafios? 

Participar do novo, explorar as potencialidades intrínsecas à IA, investigar e tentar desenvolver uma visão crítica e informada sobre a tecnologia não é obrigação de todo e qualquer artista. Mas arrisco dizer que hostilizar iniciativas que se aventuram por esse caminho pode acabar sendo um tiro no pé de toda a classe artística. Fomentar uma atmosfera de condenação que não permita transparência em relação ao uso da IA fará com que ela penetre nas práticas de trabalho de maneira sombria e sorrateira, sem que as discussões necessárias sejam feitas abertamente, deixando mais uma vez o domínio da técnica e da força para aqueles que não estão absolutamente preocupados com o bem-estar coletivo.

As imagens que ilustram este artigo fazem parte da série In Vitro Illustration, na qual Larissa Ribeiro utiliza o Midjourney para misturar suas obras com as de outros artistas, como, nesse caso, o projeto Revista Comando.

20 de janeiro de 2025

Cartazes de cinema favoritos: 2024

por Gus Kondo

Desde 2020, faço uma seleção anual dos meus cartazes de cinema favoritos. O que começou como uma despretensiosa sequência de stories durante a pandemia evoluiu para um exercício mais profundo de reflexão e escrita. Com o passar dos anos, percebi que o ato de elaborar sobre os pôsteres que mais me marcaram é valioso não apenas para meu ofício como cartazista, mas também para descobrir e celebrar o trabalho de outros designers.


As listas de 2020, 2021, 2022 e 2023 foram publicadas nas minhas redes sociais (Instagram e Twitter). Este ano, tenho o prazer de apresentar a seleção em parceria com a Revista Recorte. Escolhi 15 cartazes lançados em 2024, nacionais e internacionais, e escrevi um pouco sobre cada um deles. Não é um ranking de melhores do ano, mas tentei ordená-los de uma forma que fizesse algum sentido. Espero que gostem e feliz ano novo!

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15. Anora
dirigido por Sean Baker
Estados Unidos

Cartaz de “Anora” (2024). Design por GrandSon.

Se teve uma fonte que, literalmente, brilhou nos cartazes de cinema em 2024, foi a Aguafina Script.

Desde Tangerine (Tangerina, 2015), o diretor e roteirista Sean Baker encontrou uma “musa tipográfica”, que passou a estrelar os cartazes de seus filmes seguintes. Essa forte identidade gráfica acompanha a recorrência temática dos roteiros de Baker: ao retratar pessoas marginalizadas e/ou sex workers como personagens complexas, ele escancara as contradições do sonho americano.

Cartazes de "Tangerine" (2015), por P+A; "The Florida Project" (2017), por InSync Plus; "Red Rocket" (2021), por GrandSon e ilustração de Steven Chorney.

Em entrevista à MUBI sobre “A Fonte Sean Baker”, o diretor revela: “Começou com Tangerine. Durante o design dos créditos de abertura […] eu precisava criar algo que fosse estilisticamente interessante e optei por uma fonte script, especificamente a Aguafina, porque parecia apropriada”. A fonte em questão foi criada pelos designers argentinos Alejandro Paul e Angel Koziupa, da type foundry Sudtipos, e está disponível gratuitamente no Google Fonts.

Escolhi o pôster de Anora como o homenageado justamente por ele simbolizar o ápice da relação entre um diretor autoral e os cartazes de seus filmes ao longo dos anos.

14. Paris, Texas – Restauração em 4K
dirigido por Wim Wenders
Alemanha e França

Cartaz nacional de “Paris, Texas” (2024). Design por Gus Kondo e Wim Wenders Foundation.

Nunca imaginei que um dia teria a oportunidade de criar o cartaz oficial de um dos filmes mais lindos e amados do mundo! Mas, graças à O2 Play e à minha função como produtor criativo na distribuidora, isso se tornou realidade. Em 2024, adquirimos os direitos da versão restaurada e comemorativa dos 40 anos de Paris, Texas (1984).

Cartaz internacional da versão comemorativa e restaurada de “Paris, Texas” (2024). Design por Wim Wenders Foundation.

O cartaz brasileiro é derivado da versão oficial internacional, lançada durante o Festival de Cannes 2024. Decidimos substituir a imagem do protagonista caminhando pelo deserto por uma foto de Nastassja Kinski como Jane, uma das personagens mais icônicas da história do cinema. Paris, Texas retorna aos cinemas brasileiros em 2025.

13. Motel Destino
dirigido por Karim Aïnouz
Alemanha, Brasil e França

Cartaz de “Motel Destino” (2024). Design por Check Morris.

Motel Destino é um filme ardente, no qual os corpos dos personagens são constantemente banhados pela luz do sol ou iluminados pelos neons coloridos da locação-título. O cartaz, criado pelo estúdio parisiense Check Morris, ilustra com precisão o que alguns críticos definem como “noir tropical”, além de remeter à Pop Art de Andy Warhol.

Cartazes de "Marinheiro das Montanhas" (2021), por Miro Denck; "A Vida Invisível" (2019), por Manuela Eichner; e "Nardjes A". (2020).

Assim como Sean Baker, o diretor cearense Karim Aïnouz também parece ter encontrado uma espécie de identidade visual para os cartazes de seus filmes. Mesmo assinados por designers diferentes, há uma certa coesão na combinação de cores vibrantes, no uso de colagem e nas ilustrações em estilo vetorial.

12. Evil Does Not Exist (O Mal Não Existe)
dirigido por Ryūsuke Hamaguchi
Japão

Cartaz de “Evil Does Not Exist” (2024). Design por Le Cercle Noir.

Nada mais apropriado para um filme que explora o desequilíbrio ambiental causado pelo avanço capitalista do que um cartaz em que a natureza impera e empequenece as figuras humanas.

Esse estilo “aquarelado” do cartaz, feito originalmente pelo estúdio Le Cercle Noir para o lançamento na França, contrasta com as pinturas mais singelas, frequentemente adotada nos cartazes japoneses dos filmes de Ryūsuke Hamaguchi.

Cartazes japoneses de "Evil Does Not Exist" (2023) e "Wheel of Fortune and Fantasy" (2021), por NEOPA Inc.; cartaz norte-americano de "Wheel of Fortune and Fantasy" por Elizabeth Yoo.

11. Good One
dirigido por India Donaldson
Estados Unidos

Cartaz de “Good One” (2024). Design por Tracy Ma e foto por Eric Ruby.

Em Good One, Sam, uma garota de 17 anos, parte para um acampamento em meio à natureza com seu pai e um amigo de longa data. Ela logo se vê diante de uma dinâmica masculina complicada. No cartaz, criado pela designer Tracy Ma com fotografia de Eric Ruby, a natureza ao redor de Sam é tomada por pinceladas agressivas de tinta, que podem tanto aprisioná-la quanto protegê-la. Essa inusitada intervenção gráfica traduz com perfeição o isolamento vivido pela protagonista frente ao pacto de masculinidade firmado entre os dois adultos.

10. Ainda Estou Aqui
dirigido por Walter Salles
Brasil e França

Cartaz de “Ainda Estou Aqui” (2024). Design por Claudia Warrak.

Não é exagero dizer que este é o cartaz de cinema nacional mais visto e reproduzido de 2024. Ainda Estou Aqui já levou mais de 3 milhões de brasileiros aos cinemas e reacendeu em nós a vontade de torcer por um filme na temporada de premiações com a mesma paixão de quem torce pelo Brasil na Copa do Mundo.

O que parece ser apenas um retrato comum de uma família feliz ganha um peso dramático quando percebemos o olhar distante da mãe, interpretada por Fernanda Torres. Enquanto o pai e os filhos olham diretamente para a câmera, ela observa algo fora do quadro, algo que ameaça a paz daquela família. O design do cartaz, assinado por Claudia Warrak, é sutil e nos guia na leitura da fotografia. Até mesmo a simples escolha de alinhar o título e a coluna de créditos à direita, logo acima do rosto de Fernanda, reforça a ideia de que a mãe é a protagonista da história.

9. Thelma
dirigido por Josh Margolin
Estados Unidos

Cartaz de “Thelma” (2024). Design por Gravillis.

Tendo a gostar de cartazes que simulam processos analógicos. Este pôster de Thelma, por exemplo, imita um bordado feito por uma vovó e é tão divertido e gracioso quanto a personagem que dá nome ao filme.

É muito provável que a principal referência do estúdio Gravillis nesse projeto tenha sido o clássico pôster de Fargo (dirigido por Joel Coen, 1996), que brinca com as mesmas técnicas.

Cartaz de “Fargo” (1996). Design por Armageddon Design & Advertising.

8. The Girl with the Needle (A Garota da Agulha)
dirigido por Magnus von Horn
Dinamarca, Polônia e Suécia

Cartaz de “The Girl with the Needle” (2024). Design por Yellow1.

O pôster minimalista do longa The Girl with the Needle traz um detalhe desconcertante: o buraco da agulha gigante gesta uma minúscula mulher em posição fetal. Assistir ao filme e descobrir como essa imagem se relaciona com a trama de uma costureira grávida é uma revelação tão sombria quanto a cor preta que toma conta de todo o cartaz.

Detalhe do cartaz de “A Garota da Agulha” (2024).

7. Mamífera
dirigido por Liliana Torres
Espanha

Cartaz de “Mamífera” (2024). Design por Collage Animations.

Neste pôster, a colagem do casal — que enfrenta uma gravidez inesperada, como a sinopse apresenta — remete a uma carta de baralho ou a uma pintura renascentista. Adoro o detalhe da mão segurando o dedo bem no centro do quadro e como a tipografia parece ter sido recortada letra por letra. Ainda não assisti ao filme, mas o trailer indica que a protagonista é uma colagista que sonha em formato de colagens, o que torna este pôster ainda mais especial.

6. Challengers (Rivais)
dirigido por Luca Guadagnino
Estados Unidos

Cartaz de “Challengers” (2024). Design por BLT Communications, LLC.

Alessio Bolzoni é o fotógrafo responsável pelos retratos usados na maioria dos projetos de Luca Guadagnino. Sua visão única é marcada pelo registro de corpos contorcidos ou interligados, que passeiam no limite entre conforto e desconforto. No cartaz de Challengers feito para o lançamento em IMAX, a fotografia de Bolzoni captura o triângulo amoroso em movimento, durante uma partida de tênis. As poses podem até parecer exageradas ou impossíveis, mas a intenção do pôster não é documentar com fidelidade o esporte, e sim traçar uma relação entre aqueles três corpos, permeados por rivalidade e desejo.

Fotografias promocionais de "Call Me By Your Name" (2017), "We Are Who We Are" (2020) e "Challengers" (2024) por Alessio Bolzoni.

5. Alien: Romulus
dirigido por Fede Alvarez
Estados Unidos

Cartaz de “Alien: Romulus” (2024). Design por Matt Ferguson.

O lançamento de Alien: Romulus nos cinemas veio junto com uma série de cartazes alternativos, de diferentes estilos, que funcionam quase como uma homenagem ao repertório imagético construído pela franquia Alien ao longo das décadas.

Na minha opinião, este cartaz ilustrado por Matt Ferguson é o que melhor captura a nostalgia e o sentimento de um pesadelo claustrofóbico, tão essenciais à franquia. A figura fálica do alien, dominando mais da metade do pôster, evoca os designs originais do artista suíço H.R. Giger. Acho fascinante o detalhe da baba branca da criatura pingando pela escada e banhando a letra “i” do título, perfeitamente centralizada.

Cartazes de "Alien: Romulus" (2024), criados por Concept Arts e LA.

4. The Substance (A Substância)
dirigido por Coralie Fargeat
Estados Unidos, França e Reino Unido

Cartaz de “The Substance” (2024). Design por MUBI Lab.

Uma mulher nua, com as costas costuradas de ponta a ponta, deitada no chão de um banheiro revestido por azulejos brancos. O horror corporal exposto nessa cena resume os temas abordados em The Substance: como a imposição dos padrões de beleza e os procedimentos estéticos podem causar transformações irreparáveis nos corpos das mulheres.

Gosto como a imagem idealizada pela diretora e roteirista Coralie Fargeat parece referenciar obras de outras artistas mulheres como Tree of Hope (1946), da Frida Kahlo, e a série Saunas e Banhos, da brasileira Adriana Varejão.

“Tree of Hope” (1946), de Frida Kahlo.

“O Místico” (2005), “O Sonhador” (2006) e “The Guest” (2004), da série Saunas e Banhos, de Adriana Varejão.

3. Cloud
dirigido por Kiyoshi Kurosawa
Japão

Cartaz de “Cloud” (2024). Design por Nikkatsu.

Este cartaz de Cloud faz jus ao título de “mestre do horror japonês” atribuído a Kiyoshi Kurosawa. Mais do que revelar a trama, é uma imagem que busca transmitir uma sensação, uma atmosfera densa e lúgubre, tão característica dos filmes mais cultuados do diretor, como Cure (1997), Pulse (2001) e Creepy (2016). A figura mascarada ganha uma aura quase sobrenatural e fantasmagórica quando vista através do vidro texturizado.

Em 2024, Kiyoshi Kurosawa lançou três filmes, e todos contaram com bons cartazes. A boa notícia é que a O2 Play também adquiriu os direitos de Cloud, que chegará aos cinemas brasileiros em 2025.

Cartazes de "Cloud" (2024) por Nikkatsu, "The Serpent's Path" (2024) por Kadokawa Corporation e "Chime" (2024) por Roadstead.

2. Moving (A Mudança) – Restauração em 4K
dirigido por Shinji Sōmai
Japão

Cartaz de “Moving” (2024). Design por Brian Hung.

O designer Brian Hung ilustra com delicadeza a história de Ren, uma criança que é forçada a amadurecer diante do divórcio dos pais. O mundo dos adultos, simbolizado pelo documento de “notificação de divórcio” ao fundo, se entrelaça com a infância, representada pelos desenhos e pinturas sobrepostas. As flores pintadas remetem ao padrão estampado no vestido usado pela protagonista ao longo do filme.

Cena do filme “Moving” (1993).

1. Amarela
dirigido por André Hayato Saito
Brasil

Cartaz de “Amarela”. Design por Gus Kondo; lettering por Tayná Miessa; foto por Alex Takaki.

Para encerrar a lista, achei que seria simbólico colocar o pôster mais pessoal e importante da minha carreira até agora. Selecionado para o Festival de Cannes de 2024, Amarela é um curta-metragem que conta a história de Erika, uma garota nipo-brasileira que se sente estrangeira em seu próprio país.

O processo de criação do cartaz começou após uma conversa com o diretor André Hayashi Saito, na qual compartilhamos nossas referências e vivências como nipo-brasileiros. Revisitei minha coleção pessoal de cartazes japoneses para encontrar a linguagem que melhor representasse esse trânsito entre Japão e Brasil. Percebi, então, que é nosscomum em cartazes de cinema do leste asiático — especificamente do Japão e da Coreia do Sul — o uso de delicados letterings e títulos escritos à mão.

Algumas das referências do pôster de "Amarela": cartazes de "My Broken Mariko" (2022), "Yi Yi" (2000), "On the Beach at Night Alone" (2017), "Jeju Prayer" (2013), "Jane" (2017) e "Asako I & II" (2018).

Pensando nisso, para desenhar o título de Amarela, convidei a artista Tayná Miessa, uma amiga de adolescência com quem estudei no Japão. Para a tipografia, escolhi a Nikkei Maru, desenvolvida por Caio Kondo, da foundry brasileira Inari Type, com participação das designers Satsuki Arakaki e Laís Ikoma. Ela é uma homenagem à imigração japonesa no Brasil: o desenho das letras foi inspirado nas pinturas dos nomes dos navios que trouxeram os imigrantes japoneses ao continente americano. E a diagramação dos créditos na vertical faz uma referência direta à forma de escrita e leitura dos caracteres da língua japonesa.

Cartaz alternativo de “Amarela” (2024). Design por Gus Kondo.

O pôster alternativo de Amarela segue a mesma identidade visual e apresenta outra belíssima fotografia de Alex Takaki. Assim, todas as pessoas envolvidas na criação do pôster, direta ou indiretamente, são asiático-brasileiras e se conectam de alguma forma com a história de Erika.

15 de janeiro de 2025

A vida é movimento: pessoas, design e mobilidade urbana

por Alexandre de Oliveira Lot

Imagem cedida por Gustavo Pedrosa (@guspedrosa) para ilustrar este ensaio da Recorte.

Uma mulher idosa precisa sair de casa para fazer compras em um hortifrúti a algumas quadras de casa. No entanto, ao pensar na calçada esburacada e no caminho irregular até a feira, acaba desistindo, por medo de sofrer uma queda, e pede para um parente buscar as compras para ela. Uma pessoa com deficiência física, usuária de cadeira de rodas, necessita se deslocar até outro bairro para fazer um exame médico, mas também opta por ficar em casa, pois a linha de ônibus de seu bairro está com o elevador de acessibilidade quebrado. Um ciclista, que diariamente passa por uma avenida mal sinalizada do centro da cidade, é obrigado a mudar de rota, adicionando 15 minutos a seu percurso, depois de saber que um amigo quase foi atingido por um carro no mesmo trajeto. Uma mãe demora mais de duas horas para chegar em casa após o trabalho, pois precisa fazer baldeações entre linhas de ônibus e metrô, e, ao retornar, sempre encontra seus filhos dormindo. Essas e muitas outras histórias, que se repetem diariamente no Brasil, possuem um denominador comum: elas retratam pessoas cujo deslocamento foi extremamente dificultado, ou que foram impedidas de se deslocar pela cidade.

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O site do Instituto Pólis contém uma vasta coleção de textos e discussões sobre direito à cidade, além de grande aproximação prática com diversos movimentos sociais no Brasil.

A mobilidade de péssima qualidade piora não somente a qualidade de vida, como também deteriora a relação e a conexão desses cidadãos com o espaço, perpetuando uma crise urbana e agravando desigualdades socioeconômicas. Esse deterioramento é resultado direto do reforço a modelos de desenvolvimento econômico e urbano implementados ao longo do século passado, tanto em nível local quanto global. No primeiro, destacam-se fenômenos conhecidos no Brasil, como a periferização e a precarização dos transportes públicos coletivos e demais equipamentos de infraestrutura de transporte ativo, como ciclovias, em favor da utilização de carros. No segundo, está a urbanização guiada pela especulação agressiva do uso do solo, como a gentrificação, a crise da moradia e o crescimento desenfreado do zoneamento urbano, que gerou impactos ambientais profundos e afetou diretamente o chamado “direito à cidade”1. O termo, cunhado pelo sociólogo francês e filósofo marxista Henri Lefebvre em 1968, fala justamente sobre o direito coletivo de transformar a cidade de acordo com necessidades, rotinas e desejos. Algo muito mais profundo do que apenas “acesso” a equipamentos ou “livre passagem”, pois diz respeito principalmente ao poder e à influência das pessoas e de seus cotidianos na organização do espaço urbano.

A mobilidade é um aspecto crucial da vida e afeta a todos. Nos organizamos, enquanto sociedade, em um perpétuo ciclo de ações de transporte [...].

Para que possamos alcançar nossos desejos e cumprir necessidades, quando associadas a um destino, é necessário nos empoderarmos da vontade de mudança entre estados no tempo (o antes e o depois) e exigirmos deslocamento com dignidade. A mobilidade é um aspecto crucial da vida e afeta a todos. Nos organizamos, enquanto sociedade, em um perpétuo ciclo de ações de transporte, representadas pelo alimento disponível no mercado; pelo exame médico no posto de saúde; pelo lazer em um parque público ou centro cultural; e pela casa e presença da família ao fim de um dia de trabalho. A vida é, portanto, movimento.

Entender o que possibilita esses diversos movimentos do cotidiano e reconhecer os aspectos críticos do transporte através de uma óptica que promova maior consciência dessas interrelações pode abrir caminho para discussões que ultrapassem a dimensão conjectural e levem à compreensão da mobilidade urbana e à análise dos sistemas em que ela se ampara. Como diz o teórico italiano Giulio Carlo Argan, autor de História da arte como história da cidade (Martins Fontes, 2019), “antes de considerar a cidade em relação a categorias estéticas, é preciso considerá-la em relação às técnicas que a tornam não apenas concebível, mas projetada, e, portanto, logicamente, em relação aos procedimentos e as técnicas do projeto”. O espaço urbano, assim como a mobilidade, é projetável e produto de um projeto.

Uma vez integrados ao pensamento sistêmico, e em contato com estruturas e ecossistemas, a pesquisa e o fazer em design podem resultar na compreensão holística das circunstâncias em que os deslocamentos ocorrem [...].

Por ocupar-se diretamente com as jornadas que indivíduos e grupos realizam no espaço urbano, o design, articulado de forma multi e transdisciplinar, pode oferecer uma óptica propositiva, que vai além de seu uso material e instrumentalizado. Enquanto ferramenta, ele influencia a interação das pessoas com o ambiente. Uma vez integrados ao pensamento sistêmico, e em contato com estruturas e ecossistemas, a pesquisa e o fazer em design podem resultar na compreensão holística das circunstâncias em que os deslocamentos ocorrem, identificando elementos, objetos, atores e contextos, observando e analisando estrategicamente as relações que se estabelecem entre esses agentes. Assim, é possível estabelecer conexões sem perder de vista os problemas que impactam a mobilidade, encontrar definições que nos ajudam a traçar as causas desses problemas, e a projetar/promover soluções de um futuro possível, no qual exista reconexão com o espaço. Futuro este concebido através da compreensão dos papéis das gestões políticas e das instituições, com foco na qualidade de vida, por meio de investimentos públicos mais eficientes, integrados a planejamentos de longo prazo voltados a pessoas/usuários. Em seu livro Marcas – Design estratégico: do símbolo à gestão da identidade (Blucher, 2015), a designer e professora doutora Cecilia Consolo afirma que:

O design, no sentido profundo da atividade, é sempre estratégico. […] o processo de trabalho envolve empatia com as necessidades dos usuários, metodologias para traçar o maior número de hipóteses possíveis, elaborar suposições, revogar parâmetros, explorar e analisar probabilidades para convergir em uma síntese. O projeto de design é a resposta a um problema apresentado com uma visão de um futuro possível.

A partir daqui, podemos pensar nas inúmeras definições e conceitos acerca deste tema através de diversos canais, debates e disciplinas. A palavra “mobilidade” deriva do latim mobilis ou mobile, que significa “móvel”. No dicionário Michaelis, é definida como “característica do que é móvel”. No entanto, a “mobilidade urbana” é inicialmente referida como “acesso ao transporte“ em definições regulatórias. Ela é um dos direitos sociais citados no Artigo 6º da Constituição Brasileira de 1988 e foi regulamentada no Código de Trânsito Brasileiro, de forma mais precisa pelos Estatutos das Cidades e das Metrópoles e pela Política Nacional de Mobilidade Urbana, em que é descrita como “a condição em que se realizam os deslocamentos de pessoas e cargas no espaço urbano”. Essas definições, apesar de bastante objetivas, não nos fornecem pistas quanto aos elementos decisivos do transporte e não revelam a natureza sistêmica de como ocorrem esses deslocamentos, aspectos fundamentais para conseguirmos definir um repertório de possíveis transformações relacionais.

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No mesmo artigo.

Encontramos no então chamado fenômeno do transporte, definido pelos pesquisadores Marcos Thadeu Queiroz Magalhães, Joaquim José Guilherme de Aragão e Yaeko Yamashita, como uma esquematização elaborada dentro do pensamento sistêmico que mapeia as principais relações e elementos para que a mobilidade ocorra, ou melhor, para que a mobilidade seja enfim uma “propriedade daquilo que pode ser transportado”2. Essa esquematização, que inclui de pessoas a objetos, é fundamental para a compreensão das relações que possibilitam os deslocamentos e, a partir dela, podemos construir um repertório: “um objeto é móvel (possui a propriedade mobilidade) se, e somente se, o sistema de transporte é acessível ao sujeito de transporte e ao objeto de transporte”3.

É justamente essa perspectiva sistêmica, na qual a acessibilidade está em jogo, que torna possível qualificar a mobilidade.

O ecossistema do fenômeno do transporte contém elementos para além da mobilidade em si, que são: sujeito do transporte (as pessoas), objeto de transporte (os veículos e demais modos de transporte), meio de transporte (meios de transporte e suas infraestruturas). Esses três fatores estão inter-relacionados como uma espécie de tripé, e o mais interessante é notar que o quarto elemento é a acessibilidade, como propriedade do meio de transporte, conectada às inter-relações de sujeito e objeto. 

É importante compreender como cada um desses elementos do fenômeno/sistema são definidos. Tomamos por exemplo um cadeirante (sujeito), que se desloca sob a calçada (meio) com a sua cadeira de rodas (objeto). Remova um dos elementos ou piore as relações entre eles – em especial as que dizem respeito ao meio e ao objeto – e o movimento será interrompido. É justamente essa perspectiva sistêmica, na qual a acessibilidade está em jogo, que torna possível qualificar a mobilidade.

Sujeitos do transporte são as pessoas: o indivíduo ou coletivo de indivíduos que possui alguma necessidade ou desejo, presente em um destino, seja longe ou perto de onde se localiza no momento do início do deslocamento, e cuja satisfação pressupõe o deslocamento de um objeto/modo de transporte. Existem muitos motivos pelos quais nos deslocamos: trabalho, educação, saúde, lazer. Porém, entende-se também que diferentes grupos de pessoas (idosos, crianças, mulheres, pessoas com deficiência, população negra e LGBTQIAPN+, entre outros) encontram particularidades quando se deslocam. Por conta disso, é imprescindível compreender o grau de inclusão desses sujeitos em seus trajetos diários, ou seja, quais fatores afetam, em cada caso, a acessibilidade. Nos estatutos da Criança e do Adolescente (1990), do Idoso (2003) e principalmente no da Pessoa com Deficiência (2015), existem dispositivos importantes que viabilizam alguns recursos de inclusão, como: os acessos prioritários com sistemas de comunicação e informação compreensíveis; a gratuidade no transporte; a reserva de vagas; a adaptação de equipamentos urbanos; a construção de infraestruturas; e o planejamento arquitetônico de edificações quando de uso coletivo, entre outros.

É imprescindível que os comitês e conselhos sejam ativos como meios para canalizar a luta e as reivindicações dos movimentos sociais pela qualidade da mobilidade, através de inclusão e acessibilidade nos meios de transporte.
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Trecho retirado do livro O design do dia a dia (Rocco, 2006), de Don Norman.

No entanto, ainda é necessário olhar mais a fundo. É fundamental estabelecer um paralelo entre a definição de sujeito do transporte e o que preconiza o design centrado no humano (ou humanidade) de Don Norman: “[…] As necessidades e exigências das pessoas devem constituir a força que impulsiona grande parte do trabalho ao longo de todo o processo […]”4. Uma vez que o processo projetual e o planejamento devem focar na ampliação, na inclusão e na acessibilidade, pessoas podem ser empoderadas tanto com instrumentos que as ajudem a superar dificuldades de deslocamento quanto com novas formas de atuação direta e democrática sobre as forças que influenciam e definem a mobilidade e a formatação dos sistemas de meios de transporte. Uma das ferramentas mais eficientes de participação da população e do pluriverso desses grupos na fiscalização das políticas de trânsito dos municípios de forma qualificada é a lei que institui a criação dos Comitês de Trânsito e Transporte e de Conselhos Municipais de Mobilidade Urbana. É imprescindível que os comitês e conselhos sejam ativos como meios para canalizar a luta e as reivindicações dos movimentos sociais pela qualidade da mobilidade, através de inclusão e acessibilidade nos meios de transporte.

Meio de transporte é o conjunto de infraestruturas de transporte que possibilitam o deslocamento de fato. É por onde os sujeitos e objetos do transporte se deslocam, como os sistemas rodoviário, cicloviário, ferroviário, hidroviário, aeroviário, e, no caso dos pedestres, as calçadas. O meio de transporte é também proprietário da acessibilidade e, por ser o espaço do deslocamento, seu nível de inclusão na acessibilidade é ditado pelos níveis de planejamento do desenvolvimento urbano e por como ele opera nos sistemas de transportes.

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Definição encontrada no livro Transporte urbano nos países em desenvolvimento (Annablume, 2003). Eduardo Alcântara Vasconcellos é também assessor na Associação Nacional de Transportes Públicos, pesquisador e autor de uma vasta bibliografia sobre mobilidade urbana no Brasil, sistemas de transporte e políticas para transporte público.

Acessibilidade pode ser definida, segundo o engenheiro, sociólogo e doutor em ciência política Eduardo Alcântara de Vasconcellos5, como a facilidade de circular e ter acesso ao espaço urbano, atingindo os destinos desejados. Além disso, pode ser medida pelo número e natureza desses mesmos destinos. A acessibilidade é propriedade do meio de transporte, mas também é determinada pelas relações do sujeito e do objeto com o meio. Afinal, retornando a Magalhães, Aragão e Yamashita, a mobilidade só ocorre se “o sistema de transporte é acessível ao sujeito de transporte e ao objeto de transporte”. Essas relações, por sua vez, podem ser tipificadas. Vasconcellos nos apresenta duas subcategorias: micro e macroacessibilidade.

Microacessibilidade é a facilidade de acesso aos equipamentos, oportunidades e destinos, determinados pelo indivíduo. Isso vai desde o seu ponto de partida aos diferentes tempos encontrados durante o deslocamento. Alguns deles, por exemplo, são: o tempo até alcançar um veículo; o tempo em trânsito; o tempo parado; o tempo de transferência entre veículos e nas baldeações entre linhas; e o tempo do veículo até o ponto de chegada. Por mais que a microacessibilidade seja desempenhada pelo indivíduo, ela é completamente determinada e englobada pela macroacessibilidade, em uma relação de direta dependência.

Macroacessibilidade é a facilidade de cruzar o espaço. Ela é determinada pelas decisões de órgãos específicos e alheios ao indivíduo, que atuam sob os sistemas e infraestruturas dos meios de transporte, por políticas públicas e por decisões de mercado, em relações institucionais que fazem prevalecer os modelos de desenvolvimento urbano e econômico vigentes. No Brasil, a macroacessibilidade é regulada em três níveis. No primeiro, pelo planejamento urbano estabelecido pelos estatutos das Cidades (2001) e das Metrópoles (2015); no segundo, pelo planejamento de transportes configurado hoje no Plano Nacional de Mobilidade Urbana (2012); e em terceiro, pelo planejamento de circulação no Código Nacional de Trânsito (desde 1997- até hoje) junto de companhias e órgãos de Engenharia de Tráfego. Podemos então concluir que é nesse conjunto que se encontram os aspectos mais críticos e estratégicos para que prevaleçam os problemas de mobilidade e exclusão.

Objeto do transporte ou modo/modal de transporte é o veículo. E são modais os diferentes tipos de veículos que transportam pessoas ou coisas de uma origem a um destino. No caso do deslocar sob a calçada, por exemplo, o pedestre é duplamente objeto e sujeito do transporte, proprietário direto da mobilidade, porém dependente da acessibilidade e do meio de transporte. Essa definição nos alerta para o quão pouco acessíveis são as calçadas no Brasil se considerarmos as necessidades de pessoas idosas ou com deficiência, por exemplo. Os modais variam conforme os sistemas de meios de transporte e, segundo a Lei da Política Nacional de Mobilidade Urbana, são definidos por diferentes tipos de: tração (não motorizados: animal, humana; motorizado ou autopropelido); classificação (de passageiros ou cargas); natureza do serviço (público ou privado); característica do serviço (individual ou coletivo). Podemos nomear e categorizar cada tipo de veículo dentro dessa sistematização. Lembrando sempre que, se a acessibilidade é considerada um fator determinante da mobilidade, a acessibilidade, por sua vez, também é impactada pela relação entre meio e objeto de transporte.

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Rafael Cardoso no livro Design para um mundo complexo (Ubu, 2022).

Essa relação de complementaridade pode significar que alguns tipos de veículos podem ser mais ou menos inclusivos. E quais seriam esses veículos mais inclusivos? Ou ainda estão para serem criados? Encontramos aqui o terceiro paralelo, também contido no campo design, que abre um amplo espectro de desdobramentos e possibilidades de soluções, algo que o escritor e historiador Rafael Cardoso6 compreende no questionamento de “[…] quais seriam os sentidos possíveis do objeto dentro de um sistema complexo, abrangendo um leque mais amplo de usuários e situações, abriremos a possibilidade de pensar o projeto de modo plural e polivalente”. Podemos aqui considerar a natureza projetual das soluções, mas também é preciso partir do pensamento sistêmico, da ideia de integração, seja por meio de contextos diversos que contribuam para o surgimento de novos artefatos – ferramentas, fontes de energia e sistemas que ajudam as pessoas –, seja de outras estruturas e organizações capazes de regenerar o ambiente e favorecer a interface de novas relações sociais do espaço urbano e além, superando os modelos existentes.

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Paris Marx é escritor canadense, autor do livro Estrada para lugar nenhum: o que o Vale do Silício não entende sobre o futuro dos transportes (Ubu, 2024), onde revisita a história das cidades estadunidenses e dos avanços tecnológicos nos transportes e serviços de deslocamento para criticar a visão de futuro, no que diz respeito à mobilidade, das big techs. Também é apresentador do podcast Tech Won’t Save Us.

O modelo estadunidense de planejamento urbano rodoviário do início do século 20, depois consolidado e difundido através da Highway Act de 1956 – lei de auxílio federal para investimento e construção de rodovias e um dos maiores projetos de infraestrutura pública dos Estados Unidos, que foi implementado em grandes metrópoles como Nova York, Detroit e Chicago –, abriu caminho para projetos audaciosos nas cidades e nos subúrbios. No entanto, as ações de “renovação” urbanas, como as do engenheiro e planejador urbano Robert Moses, que, segundo Paris Marx7, provocaram a demolição de bairros pobres e vizinhanças de comunidades negras, são um grande exemplo de como o racismo também faz parte de estruturas de segregação e inacessibilidade.

O modelo europeu moderno de cidades planejadas no século 20, que inspirou gerações de projetos de desenvolvimento urbano e de transportes, teve desdobramentos semelhantes. Não à toa, processos de projeto que geram desigualdades de oportunidades e socioeconômicas, fragmentação do espaço urbano e gentrificação, também acarretam impactos ambientais extremamente negativos. Portanto, o paralelo que podemos estabelecer aqui é na urgência de que esses modelos, tanto o americano quanto o europeu, sejam superados e substituídos. E a insatisfação coletiva é a faísca para o surgimento de movimentos sociais que reivindicam melhores modelos.

Não à toa, processos de projeto que geram desigualdades de oportunidades e socioeconômicas, fragmentação do espaço urbano e gentrificação, também acarretam impactos ambientais extremamente negativos.

Entre eles, podem-se destacar as atividades da campanha Mobilidade Sustentável nas candidaturas em eleições municipais de todo o país, encaminhando e colhendo assinaturas em cartas propostas com diretrizes para transportes mais sustentáveis e melhor desenvolvimento urbano. Também estão em linha as resistências de coletivos de bicicleta e mobilidade ativa, e os importantíssimos movimentos pelo passe livre e as ações pela tarifa zero no transporte público – que ganharam força a partir dos anos 1990 nas propostas da então prefeita de São Paulo Luiza Erundina e do secretário de transportes Lúcio Gregori, cujo trabalho ainda inspira e ecoa na luta dos dias de hoje. 

Até 2023, a Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU) constatou que cerca de 67 municípios no Brasil já adotaram o passe livre. Atualmente, está em discussão no Congresso Nacional uma proposta de emenda à Constituição (PEC), de coautoria de Luiza Erundina, hoje deputada pelo Partido Socialismo e Liberdade (Psol-SP), e de Jilmar Tatto (PT-SP), para a criação do Sistema Único de Mobilidade (SUM), um programa de gratuidade nos transportes nos mesmos moldes do Sistema Único de Saúde (SUS).

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David Harvey é geógrafo britânico, autor de textos fundamentais sobre geografia crítica e o desenvolvimento geográfico sob a óptica marxista, na produção do espaço a partir da dialética entre capital e trabalho.

David Harvey8 explicita esse fenômeno no importantíssimo livro Cidades rebeldes: do direito à cidade à revolução urbana (Martins Fontes, 2019) e comenta sobre o andamento de um “grande e diversificado número de lutas e movimentos sociais urbanos […]. Em muitas partes do mundo, são abundantes as inovações urbanas acerca da sustentabilidade ambiental, […] da incorporação cultural […], e do desenho urbano dos espaços”. No campo da sustentabilidade, temos como possíveis alternativas aquelas que nos são indicadas como metas nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Organização das Nações Unidas (ONU), especialmente os ODS 11 – Cidades e comunidades sustentáveis e 3 – Saúde e bem-estar. Já o arquiteto e urbanista dinamarquês Jan Gehl, autor de Cidades para pessoas (Perspectivas, 2013) e fundador do Gehl Institute, contribuiu significativamente para a discussão ao propor diretrizes para o desenvolvimento de cidades vivas, sustentáveis e saudáveis. Proposta essa que pode favorecer o surgimento de projetos nos mais diversos níveis, além de motivar as lutas já existentes.

Entender as definições da mobilidade a partir da acessibilidade pode nos ajudar a atuar de forma mais apropriada na promoção de soluções e perspectivas de mobilidade mais focadas nas pessoas [...].

Entender as definições da mobilidade a partir da acessibilidade pode nos ajudar a atuar de forma mais apropriada na promoção de soluções e perspectivas de mobilidade mais focadas nas pessoas, construindo aos poucos as bases e os valores que, mais uma vez, retornam à visão do design. Isso, segundo Cecilia Consolo, se fundamenta principalmente na busca da premissa da “facilitação e da interação ágil entre os indivíduos por meio do desenvolvimento de novos sistemas, ou dispositivos, que frente às constantes inovações tecnológicas e midiáticas são repensados sistematicamente”. 

Assim como as definições de mobilidade ainda não foram encerradas, o debate aqui introduzido pode servir de guia a todos que desejam cidades, transportes e relações no espaço urbano mais saudáveis, além de uma vida urbana mais integrada, inclusiva e conectada. O projeto e a implementação de futuros humanos e de qualidade ainda estão em aberto e são um movimento coletivo.

Este ensaio foi baseado e adaptado do artigo “Design for new perspectives in urban mobility”, que o autor escreveu, com orientação e coautoria da designer e consultora Profa. Dra. Cecilia Consolo, para o oitavo volume e edição da revista Base Diseño y Innovación, da UDD Diseño, do Chile, sobre Cidades Sustentáveis, Humanas e Inteligentes.

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O verso “o que em mim sente está pensando” faz parte do poema “Inconsciência”, de Fernando Pessoa (1888-1935). [N.E.]

Irreverente, inquieto, polivalente, o talento de Ziraldo saía pelos poros. Ou melhor, pela ponta do lápis – na obra de Ziraldo, parece haver uma linha direta entre o cérebro e o lápis. Talvez ele tenha proclamado algum dia, parafraseando o poeta português: “O que em mim sente está desenhando”1.

Ziraldo foi escritor também e, claro, prolífico. No entanto, é como se nele a própria escritura fosse gestada como imagem. Trata-se de um caso raro de escriba que redigiu como desenhava; ou, dizendo de outro modo: um pensador não verbal que por vezes usou o verbo para se expressar.

Ele era capaz de absorver cada estímulo que aparecia à sua volta, mas soube ir muito além disso: Ziraldo reprocessava imediatamente o que seus radares captavam, introduzindo em tudo que fazia uma indelével dicção pessoal – esse parece ter sido seu segredo como criador.

Desde o início da carreira, Ziraldo mostrou ser um criador polivalente, sua inventividade gráfica indo além do traço marcante que depois se tornou sua marca registrada.

Desde o início da carreira, Ziraldo mostrou ser um criador polivalente, sua inventividade gráfica indo além do traço marcante que depois se tornou sua marca registrada. Nos três cartazes aqui reproduzidos temos um breve painel de sua versatilidade criativa: em O assalto ao trem pagador, de 1962, ele faz uma citação à linguagem gráfica dos jornais populares, aqueles dos quais se dizia que “se torcer, sai sangue”; ao jornal ele acrescenta justamente uma mancha de sangue realizada com especial maestria; digo maestria no sentido literal do termo: coisa feita por quem é mestre no seu ofício. Em Os fuzis, do ano seguinte, a ilustração gestual está presente – o olhar do personagem nos atinge em cheio –, mas trata-se de um desenho que não remete de imediato ao Ziraldo que depois se tornaria tão conhecido. Já em Visite o Amazonas, de 1970, ele se divertiu incorporando a sintaxe do abstracionismo geométrico, mas usando-a para sugerir uma paisagem amazônica figurativa e calorosa.

O assalto ao trem pagador, 1962; Os fuzis, 1963; Visite o Amazonas, 1970

O desenho da capa de O velho capitão, de 1961, tem um paralelo com o comentário feito ao cartaz Os fuzis: nele também não se reconhece de imediato a mão de Ziraldo, ainda que seja possível reconhecer o Ziraldo que viria a ser; o traço que desenha a silhueta do personagem é o mesmo que desenha o título: nítido, seco, anguloso. Já na capa do catálogo do Festival Internacional do Filme surge um Ziraldo antecipatório dos recursos digitais que seriam oferecidos pelos programas gráficos trinta anos depois; ele explora a superposição de formas coloridas que fazem surgir novos tons de cor, um recurso característico do efeito multiply.

O velho capitão, 1961; Festival Internacional do Filme, 1965

A frente de sua atuação no campo editorial inclui uma passagem pela revista semanal Visão, onde ocupa o cargo de diretor de arte de 1965 a 1967, aproximadamente; na capa aqui reproduzida, Ziraldo adota a colagem como recurso gráfico, outro procedimento pouco frequente em sua obra. Ainda no campo editorial, ele também experimenta o modernismo do tipo “menos é mais”: a capa da série de antologias poéticas de grandes autores funcionou tão bem que ficou anos e anos em catálogo; do ponto de vista da linguagem gráfica, a capa aposta no vazio como recurso expressivo, algo bem pouco “ziraldiano”; ao mesmo tempo, ela é um sucesso – isso, sim, bem “ziraldiano”…

Revista Visão, 1966; Borges, nova antologia pessoal, 1969

No fim da década, Ziraldo iniciaria a aventura do Pasquim, na companhia de uma turma da pesada. A experiência como diretor de arte de Visão deu-lhe um lastro importante para enfrentar o ritmo de uma publicação semanal. O sucesso do jornal acabou sendo tão retumbante que mudou a carreira de todos os envolvidos. O Pasquim foi um divisor de águas em muitos sentidos e para muita gente – criadores e leitores aí incluídos. 

De certo modo, os anos 1960 foram para Ziraldo um período de experimentação de diversos recursos, o roteiro de um “romance de formação”, se quisermos. A partir daí e a meu ver, esse “Ziraldo que não se reconhece de imediato como Ziraldo” foi sendo colocado de lado à medida que ele se afirmava como cartunista de gênio, dono de um traço imediatamente reconhecível, ou ainda como “pai” de personagens como o Menino Maluquinho. Essa faceta vitoriosa e bem-sucedida, que merece todo o reconhecimento que teve, acabou ensombrecendo outros talentos desse criador fabuloso.

Flicts, 1969

Daí eu lembrei de Flicts, um de seus sucessos, e que também explora uma linguagem gráfica pouco “ziraldiana” – o livro vai numa linha parecida com a do cartaz Visite o Amazonas, tendo ambos nascido quase juntos, em 1969 e 1970. Digo isso porque uma possibilidade me ocorreu: a Lua cumpre papel chave em Flicts; talvez esses talentos de Ziraldo que se expressam por meio de outras dicções gráficas tenham ficado descansando justamente na face escura da Lua. Seria bom se conseguíssemos trazê-los de volta à luz.

Ziraldo Alves Pinto nasceu em Caratinga, Minas Gerais, em 1932 e nos deixou, aos 91 anos, em abril de 2024. Este texto é uma homenagem ao designer-autor, cujo trabalho iluminou a infância de seus leitores. 

A ilustração que acompanha este ensaio foi cedida por Julia Jabur (@julia.jabur) para a Recorte.

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Hele Carmona já publicou um texto na Recorte sobre inteligência artificial em 2023. “A responsabilidade de um criador” faz parte da Recorte Ano 3 (2024). [N.E.]

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Sobre o posicionamento de Morris, recomendamos a leitura do ensaio “O prazer como produtor de arte segundo William Morris”, de Valter V. Costa, publicado na Recorte Ano 2 (2023). [N.E.]

A criatividade é o meu ofício. Desde o primeiro emprego, fui paga para escrever, ilustrar, comunicar e criar. Criar algumas coisas legais, algumas entediantes, mas, ainda assim, meu trabalho sempre foi criar. Comecei a pesquisar sobre automação da criatividade ao longo da minha graduação em design; o tema é inevitável, e não só por sua crescente popularidade1. Enquanto disciplina, o design inevitavelmente pensa os meios de produção. No fim do século 19, William Morris se preocupou com a mecanização da produção de tapeçarias: o que a produção fabril dessas peças significaria para os artesãos, que não ganhavam apenas o seu sustento, mas também adquiriam uma satisfação pessoal e um senso de propósito através daquele ofício2. Hoje, eu tenho de me preocupar com máquinas que criam textos, imagens – máquinas que criam “arte”. Porque eu sou uma dessas pessoas – que tira seu sustento e uma parcela significativa do próprio senso de identidade do ato de criar.

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Piano mecânico (Intrínseca, 2020), primeiro romance de Kurt Vonnegut, descreve uma sociedade futurista distópica na qual quase tudo foi mecanizado, da totalidade da produção industrial até a vida doméstica, a educação e a cultura. A sociedade passa a ser, então, dividida em classes intelectuais: de um lado, os gerentes e engenheiros, aqueles que projetam e dominam as máquinas. Do outro, todas as outras pessoas, cujos postos de trabalho deixaram de existir, relegando-as ao ócio ou à prática de tarefas enfadonhas e degradantes que não compensam, financeiramente, a automação completa. 

O livro foi publicado em 1952 e teve como principal inspiração o tempo que o autor trabalhou na fábrica da General Motors. Na narrativa de Vonnegut, bastou gravar os movimentos de um bom trabalhador de fábrica, registrando-os em uma fita, para que o maquinário fosse capaz de reproduzir o trabalho infinitamente. Os jovens engenheiros protagonistas da trama, Paul Proteus e Ed Finnerty, são os responsáveis por registrar o trabalho de Rudy Hertz, o melhor operário de uma fábrica, e então replicar suas habilidades nos robôs que o tornariam obsoleto para sempre.

Era esperado que operações industriais e repetitivas fossem massivamente substituídas por maquinário automatizado, como vem acontecendo gradualmente desde o início da industrialização, mas até alguns anos atrás havia uma gama de habilidades que parecia intocável: o talento, a criatividade, a imaginação.

A ideia de registrar movimentos que imprescindem a habilidade humana para reproduzi- los de maneira não humana pode ter parecido fantasiosa para Vonnegut nos anos 1950, mas configura a premissa básica de ferramentas com base em Inteligência Artificial (IA): armazene dados sobre um processo, treine uma máquina com eles e ordene que ela realize uma tarefa. Era esperado que operações industriais e repetitivas fossem massivamente substituídas por maquinário automatizado, como vem acontecendo gradualmente desde o início da industrialização, mas até alguns anos atrás havia uma gama de habilidades que parecia intocável: o talento, a criatividade, a imaginação. Máquinas podem reproduzir, mas não podem criar, certo?

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Talvez máquinas ainda não possam criar, mas está em curso um processo de reprodução da criatividade. Isso foi hiperevidenciado pelo projeto The Next Rembrandt, de 2016. Equipes dos museus holandeses Mauritshuis e Rembrandthuis, em colaboração com a Microsoft, o banco ING e a Universidade de Tecnologia de Delft, trabalharam no projeto, que digitalizou 346 pinturas de Rembrandt usando scans 3D para treinar um algoritmo de aprendizado profundo. O algoritmo foi capaz de projetar uma nova pintura – o próximo Rembrandt – com base em todas as características empregadas pelo pintor em sua obra: geometria, luz e sombra, temas recorrentes, feições e, por fim, até mesmo as pinceladas. A pintura final não foi uma imagem digital, mas uma peça texturizada impressa em 3D.

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Para saber mais sobre os efeitos do boom dos diferentes tipos de IA na prática do design, leia o artigo “A inteligência artificial e o novo papel do designer na sociedade em rede”, de Bruno Augusto Lorenz e Carlo Franzato, publicado na Revista de design, tecnologia e sociedade (volume 5, número 1, 2018).

Quando falamos de ferramentas generativas, logo imaginamos avatares cafonas estilo Pixar, criados a partir de selfies para serem postados nos stories do Instagram. No entanto, elas podem atingir um nível técnico bem mais refinado. A IA tradicional é projetada para realizar tarefas específicas a partir de exemplos e dados etiquetados, como reconhecimento facial e detecção de textos. Já a IA generativa, também conhecida como “aprendizado profundo generativo”, utiliza algoritmos para gerar novos dados de forma independente e não supervisionada. Dessa forma, a IA generativa pode produzir imagens, textos, áudios e vídeos novos a partir dos dados fornecidos para o seu treinamento. Nada impede que o mesmo algoritmo utilizado para reproduzir o trabalho de Rembrandt armazene as obras de outros pintores, de designers consagrados como Paula Scher e Stefan Sagmeister3, ou mesmo o meu trabalho. Talvez o seu.

O que motiva isso tudo? O algoritmo em questão foi treinado com mais de 300 pinturas de Rembrandt. Essa quantidade não é suficiente? De onde vem a vontade de ver a próxima pintura de um artista que morreu há mais de 350 anos? A quem interessa substituir o fazer e a criatividade humana por algoritmos? Por que estamos tentando criar robôs que fazem exatamente o que um humano faz? 

Um argumento comum, talvez um dos mais repetidos no ambiente comercial, é que ganha-se tempo. O ano de 2023 foi marcado pelo lançamento de diversas ferramentas generativas de design que funcionam com base em IA. A Adobe incorporou ferramentas de IA para geração de imagens, vetores e texto nos aplicativos da Creative Cloud, inclusive no Adobe Photoshop, que é utilizado por mais de 90% dos profissionais na indústria criativa. A plataforma Canva lançou geradores de imagens baseadas em texto, de vídeos com avatares – você digita a mensagem e um personagem faz uma leitura interpretativa – , de áudios para voice over e até de trilhas sonoras para apresentações. Já o Figma adquiriu a startup Diagram e anunciou que já está trabalhando para disponibilizar ferramentas de inteligência artificial que “otimizam o fluxo de trabalho” dos usuários.

Trabalhar com mais automação e rapidez parece um futuro atraente, mas será que a diminuição no tempo de trabalho e geração de peças e ideias on demand não pode mitigar a parte do design que requer dedicação às ideias?

Todos os anúncios citados foram feitos nos sites oficiais das empresas e vieram acompanhados de um discurso em comum, o da compressão do tempo. De acordo com Adobe, Canva e Figma, essas novas ferramentas podem otimizar a produção, diminuindo o tempo gasto em cada trabalho e propondo soluções, dentre as quais os designers humanos poderão escolher a melhor para aplicar. Trabalhar com mais automação e rapidez parece um futuro atraente, mas será que a diminuição no tempo de trabalho e geração de peças e ideias on demand não pode mitigar a parte do design que requer dedicação às ideias? Quais seriam as consequências da falta de tempo para reflexão e amadurecimento de soluções? 

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Em Piano mecânico, como as máquinas têm acesso a quase todas as informações sobre cada indivíduo (de características físicas, como altura e peso, a características sociais, como ocupação, estado civil e quantidade de filhos), é possível para Halyard detectar exatamente quem é o homem médio para apresentar ao xá de Bratpuhr. Essa pessoa é “Edgar R. B. Hagstrom, que estatisticamente era um homem mediano em tudo”.

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Peço um pouco de paciência para o teor sexista deste trecho de Vonnegut.

E ainda: o que um trabalhador faz com o tempo que sobra? De volta a Piano mecânico, o livro tem um trecho que toca nesse ponto. Há um personagem, o xá de Bratpuhr, que é um forasteiro, um líder espiritual de uma sociedade distante que não sabe nada sobre os Estados Unidos ultramecanizados do romance. Ele descobre o funcionamento da distopia ao mesmo tempo que os leitores do livro, sempre guiado e instruído por Halyard, um executivo do governo. Em sua exploração, o xá pede para conhecer a vida e a casa de uma família média4. 

— E esta é a lavadora ultrassônica de louça e de roupas — informou Dodge. — Som em alta frequência passa através da água para eliminar sujeira e gordura em questão de segundos. É mergulhar e tirar. Bingo! Está pronto!
— E o que a mulher faz depois disso? — perguntou Khashdrahr5.
— Depois ela coloca as roupas ou a louça nesta secadora, que seca tudo em questão de segundos e, para mim esse é um belo truque, deixa as roupas com um cheirinho natural de limpeza, de ar livre, como se tivessem secado ao sol. Tudo com esta pequena lâmpada de ozônio bem aqui, estão vendo?
— E depois? — perguntou Khashdrahr.
— Ela insere as roupas neste passador, que, em três minutos, cuida do que antes da guerra, com um ferro de passar, levava uma hora. Bingo!
— E depois, o que ela faz? — perguntou Khashdrahr.
— Depois está tudo pronto.
— E depois, o que ela faz?
O doutor Dodge ficou visivelmente vermelho.
— Isso é uma piada?
— Não — respondeu Khashdrahr. — O xá gostaria de saber o que a mulher Takaru… — O que é Takaru? — perguntou Wanda, desconfiada.
— Cidadão — explicou Halyard.
— Sim — confirmou Khashdrahr com um sorriso estranho. — Cidadão. O xá gostaria de saber por que ela precisa fazer tudo tão rápido… isso em questão de segundos, aquilo em questão de segundos. Por que ela está com tanta pressa? O que mais ela tem de fazer, a ponto de não poder desperdiçar tempo nenhum com essas coisas?
— Viver! — exclamou o doutor Dodge, efusivo. — Viver! Extrair da vida um pouco de diversão.
Ele riu e deu um tapinha nas costas de Khashdrahr, como se quisesse fazer o intérprete pegar no tranco e sentir um pouco da alegria daquela casa de um americano médio. Aquela explicação não surtiu muito efeito em Khashdrahr e no xá.
— Entendi — disse o intérprete com frieza, e depois se dirigiu a Wanda. — E como você vive e se diverte tanto com a vida?
Wanda corou, olhou para o piso e desamassou a ponta do tapete com o dedão do pé. — Ah, com a televisão — murmurou. — A gente assiste bastante televisão, né, Ed? E eu passo um tempão com as crianças, a pequena Delores e o jovem Edgar Júnior. Isso, sabe? Coisas.

Você já ouviu falar de alguém que passou a trabalhar menos nos últimos anos graças à evolução dos softwares? Normalmente, o tempo “ganho” é simplesmente utilizado para encaixar mais trabalho. Se as funções que exercemos estão se tornando cada vez menos especializadas, menos técnicas, há uma tendência de que a remuneração por elas diminua; no fim, trabalha-se quase o mesmo para receber quase a mesma remuneração, mas agora em condições piores, com mais demandas para atender, mais clientes para manejar, um imposto de renda mais complicado a cada ano. A incorporação dessas ferramentas no mercado criativo cria um estado permanente de competição, no qual os profissionais estão sempre sob pressão para criar projetos que IA generativa não poderia produzir sozinha. Há uma sensação de estar sempre correndo para manter-se a salvo. O que deveria melhorar as condições de trabalho tem contribuído para a precarização do trabalhador. 

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A reportagem “How a Web Design Company Crowdfunded Millions and Completely Disappeared” foi publicada no site da Vice em fevereiro de 2020.


O segundo motivo das big techs para impulsionar projetos de automação da criatividade é o desejo de controle do mercado, espelhado também por consumidores – a atraente ideia de poder fazer o Rembrandt pintar o que eu quiser, quando eu quiser. Em What Design Can’t Do: Essays on Design and Disillusion (Set Margins’, 2023), Silvio Lorusso traz atenção para esse aspecto da automação comentando o caso da promessa The Grid. Trata-se de um sistema para projetar sites com uma IA personificada, a Molly, retratada como alguém que é “excêntrica, mas nunca vai te dar ghosting, nunca cobrará mais, nunca perderá um prazo, nunca recuará diante das suas demandas de aumentar o logo”. De acordo com a Vice6, o projeto anunciado em 2014 arrecadou mais de 5 milhões de dólares em crowdfunding e nunca foi lançado. Para Lorusso, a lição a ser aprendida com o The Grid é que a automação no campo do design reforça expectativas e desejos sociais: “as pessoas querem acreditar que os designers, assim como qualquer outro gatekeeper, são substituíveis por uma máquina dócil”. 

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Este é o título do episódio 96 do podcast Rádio Escafandro, que aborda os efeitos da automatização no mercado de trabalho.

Para mim, mais do que tempo e controle, há outro fator, muito mais forte – mas que não vai figurar nos discursos de grandes empresas de tecnologia (apesar de ser visível e facilmente verificável): o desprezo pela condição humana. Pode soar dramático, mas é a verdade: trabalhadores do futuro não sangram7. Em 2022, portais de tecnologia noticiaram a atuação do “designer” Nikolai Ironov – que é, na verdade, uma rede neural do estúdio russo Art. Lebedev. Todos os seus trabalhos e até seu rosto foram gerados por um sistema desenvolvido em sigilo pelo departamento de computação. O site oficial do sistema, no qual é possível contratar serviços de comunicação visual, declara que “clientes podem obter um resultado completamente único em questão de segundos, economizando tempo e dinheiro”. Roman Kosovitch, o desenvolvedor-chefe de Nikolai Ironov, vai além, demonstrando que odeia direitos trabalhistas:

Ironov pode efetivamente realizar tarefas comerciais de verdade. Ele está disponível 24 horas por dia, sete dias por semana, não fica doente nem tem bloqueio criativo; enquanto isso, desenvolve e resolve problemas criativos em questão de segundos. E, o mais importante, oferece visões absolutamente únicas das soluções de design.

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Adobe Says It Won’t Train AI Using Artists’ Work. Creatives Aren’t Convinced” foi publicada pela Wired em junho de 2024.

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O recurso, como o nome indica, usa as informações de cor, textura e composição contidas em uma imagem para facilitar retoques ou preencher expansões dimensionais. A tecnologia já existe há mais de uma década, mas tem se tornado cada vez mais eficaz.

O quanto essa realidade de automação dos processos criativos está próxima? A automação completa se mostra, na verdade, um sonho distante: todos os softwares acessíveis ao público geral que prometem isso ou ainda não existem (como o próprio The Grid, que já tem uma década), ou ainda são incapazes de oferecer resultados satisfatórios, não só esteticamente, como também técnica e comercialmente (há questões de disputa de autoria das obras, por exemplo). Mas existem processos semelhantes aos descritos na distopia de Piano mecânico acontecendo de maneira gradual e até silenciosa. Segundo uma matéria da Wired8, em fevereiro de 2024 a Adobe atualizou os termos de uso de seus softwares, informando aos usuários que poderia acessar o conteúdo produzido por eles “por meio de métodos automatizados e manuais” e usar “técnicas como aprendizado de máquina para melhorar os [serviços e software] da Adobe”. Profissionais criativos ficaram agitadíssimos, porque interpretaram os novos termos como uma confissão de que a empresa utilizaria seus dados para treinar sua própria IA generativa, a Adobe Firefly. Após a reação revoltada da comunidade criativa, a Adobe se pronunciou, dizendo que não usaria os dados para treinar suas ferramentas generativas estilo fast food de design, mas sim para aprimorar processos considerados mais técnicos, como o content-aware filling9. Nesse cenário, nós acreditamos na palavra dela? 

***

Toda vez que tento falar sobre esse assunto, alguém aparece para me dizer: “a tecnologia não vai parar de avançar, outras revoluções tecnológicas já aconteceram e ninguém morreu por isso, o que vai mudar é o papel do designer na cadeia criativa etc.”. Apesar de não ser mentira, ainda há motivos para se importar.

Quanto mais automatizado o processo, mais dependentes nos tornamos das ferramentas empregadas.
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Em Ferramentas e processos: expandindo possibilidades”, publicado na Recorte Ano 2 (2023), o designer Guilherme Vieira discorre sobre essa relação de dependência e propõe maneiras de escapar dela através da invenção de ferramentas independentes. [N.E.]

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Em 2021, publicamos uma proposta de leitura guiada do livro fundamental de Flusser, o ensaio “Decodificando o Mundo codificado de Vilém Flusser”, de Eduardo Souza. Ele faz parte da Recorte Ano 1 (2022). [N.E.]

Primeiro, a questão social não pode ser ignorada. Para cada designer que se tornará gerente ou engenheiro de prompt, definindo parâmetros criativos para robozinhos designers, muitos poderão ficar obsoletos e perder seus trabalhos. Segundo, quanto mais automatizado o processo, mais dependentes nos tornamos das ferramentas empregadas10; e somos limitados por elas. É o paradoxo humano-aparelho, descrito por Vilém Flusser no ensaio “A fábrica”, que faz parte da coletânea O mundo codificado11 (Ubu, 2024): “o aparelho só pode fazer o que o homem quiser, mas o homem só pode querer aquilo de que o aparelho é capaz”. A rede-neural-Rembrandt pode ter gerado uma média de todos os Rembrandts, mas ela nunca será capaz de dizer se o verdadeiro Rembrandt não estava prestes a se reinventar pintando uma cena de natureza morta antes de morrer. É que nós somos capazes de fazer muito mais do que uma média de tudo o que já fizemos na vida, inclusive coisas que nem nós, nem ninguém nunca fez antes. Por mais que ferramentas generativas possam embaralhar as possibilidades, criando a ilusão de infinitos resultados possíveis, elas são máquinas de probabilidade e estatística, e isso limita a elas, e não a nós, humanos. 

O terceiro ponto é que vale a pena questionar quais parâmetros são considerados mais decisivos quando tais máquinas são treinadas. Há uma chance bem alta de que a importância de resultados comerciais seja inflada para que as criações sejam cada vez mais palatáveis para o mercado, o que anuncia uma perigosa homogeneização visual. Na obra de Vonnegut há uma cena em que Halyard, o guia do xá de Bratpuhr, explica como a cultura funciona naquela sociedade:

— Bem, um esquema completamente automático como esse deixa a cultura muito barata. Um livro custa menos do que sete pacotes de chiclete. E também existem clubes de quadros… com quadros emoldurados a preços incrivelmente baixos. Na verdade, a cultura é tão barata que um homem, em vez de usar lã de rocha, forrou as paredes da casa com livros e gravuras para ter isolamento térmico. Não acredito que isso seja verdade, mas é uma história interessante, com uma moral válida.
— E os artistas recebem um bom sustento com esse sistema de clubes? — quis saber Khashdrahr.
— Sustento… acho que sim! — respondeu Halyard. — Estamos na Era de Ouro da Arte, com milhões de dólares investidos por ano em reproduções de Rembrandt, Whistler, Goya, Renoir, El Greco, Degas, Da Vinci, Michelangelo…
— E esses sócios dos clubes recebem um livro qualquer, um quadro qualquer? — perguntou Khashdrahr.
— Certamente não! Há muitos estudos sobre o que vai ser distribuído, acredite. Pesquisas sobre os gostos de leitura do público, testes de legibilidade e apelo com os livros que estão sendo analisados. Ora, publicar um livro impopular acabaria com um clube em dois tempos! — Halyard estalou os dedos sinistramente. — Eles mantêm a cultura tão barata conhecendo de antemão o que as pessoas querem, e em que quantidade. E eles acertam tudo nos mínimos detalhes, até mesmo na cor da capa. Gutenberg ficaria espantado.

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Em janeiro de 2024, a Fiocruz publicou em seu site o artigo “Pesquisa aponta aumento do uso de psicofármacos na pandemia”, que comparou dados de 2018 e 2019 com outros de 2020 e 2021 e chegou a resultados alarmantes: “[…] os medicamentos que tiveram maior aumento percentual de consumo foram Clonazepan, para ansiedade, com aumento de 75,37%; e Carbonato de lítio, que tem como principal uso o tratamento do transtorno de bipolaridade, com aumento de 35,35%”.

Uma coisa interessante em relação a Piano mecânico é que, a princípio, a narrativa não parece tão distópica assim. Há bastante desigualdade social, e Ed Finnerty menciona que “o uso de drogas, o alcoolismo e o suicídio seguiam aumentando na mesma proporção” das válvulas das novas máquinas. É um cenário triste, mas que já foi atingido fora da ficção12. Da mesma forma, a pobreza e o desemprego em massa são problemas comuns em países capitalistas. Se uma distopia é um estado imaginado de extrema opressão, esta não pode ser a nossa distopia porque, infelizmente, é realidade. O que há de pior sobre a sociedade em Piano mecânico, na minha visão, é muito mais sutil: a vida não tem graça. Ninguém pode criar a arte que gostaria de criar, toda diversão é previsível, mecânica, ensaiada, pré-programada. Não há espontaneidade, a cultura é homogênea, as pessoas não têm qualquer senso de propósito. A padronização e o tédio constantes são o que tornam esse cenário verdadeiramente distópico. 

Há um valor no ato criativo difícil de exprimir em palavras. Há prazer. O prazer desencadeado pelo ato criativo é subestimado e até mesmo ignorado por essas propostas de automação.

Temo que estejamos caminhando para esse estranho destino. O designer gráfico médio, podemos dizer, trabalha cotidianamente a partir de briefings, criando materiais para marcas (identidades visuais, anúncios etc.). É bem provável que publicitários já estejam gerando briefings com ferramentas como o ChatGPT para ganhar tempo. O designer que recebe esse briefing, também seduzido pela ideia de produzir mais em menos tempo, já pode solicitar ao ChatGPT que defina parâmetros e atributos visuais que correspondam ao briefing recebido. Ao inserir os parâmetros visuais em outro programa qualquer, dessa vez um gerador de imagens, como o MidJourney, ele receberá algumas propostas em poucos segundos. Avaliará os resultados. Selecionará a opção mais promissora e finalizará sua demanda a partir dela. São robôs respondendo a robôs. Eu não sei vocês, mas eu não quis trabalhar com criatividade para isso. Eu quis porque, inexplicavelmente, para além dos ganhos materiais, trabalhar imaginando me garante alguma satisfação pessoal, algo que nunca encontrei fora dos trabalhos criativos. Há um valor no ato criativo difícil de exprimir em palavras. Há prazer. O prazer desencadeado pelo ato criativo é subestimado e até mesmo ignorado por essas propostas de automação. 

Em dezembro de 2016, Francisco Laranjo publicou na revista Eye uma peça de ficção intitulada “Ghosts of designbots yet to come”, em que imagina o futuro do design em 2025. Estamos quase lá. Em um tom irônico, ele descreve como a automação do ofício criativo liderada por grandes empresas de tecnologia teria tornado o exercício do design inviável. 

Agora, em 2025, os designers são gerentes de dados. Bots de design trabalham para e com bots de marketing. Designers gráficos e a imprensa de design deixaram de ser regulados pelo mercado. Tentando escapar da automação, milhares de designers mudaram-se das grandes cidades para países onde esse processo é mais lento. […] Com os avanços tecnológicos, a falta de interesse dos designers em infraestrutura revelou-se suicida. As empresas foram atrás das informações dos designers gráficos e eles as entregaram por selos, figurinhas e curtidas. Os designers agora são principalmente intermediários de informações.

O quão deprimente é o fato de que Laranjo acertou? Não aconteceu ainda, mas sua previsão já não parece tão absurda, tão distante. Estamos vivendo um momento determinante na história do trabalho do design, em que podemos aceitar docilmente enquanto as big techs coletam nossos dados para treinar seus robôs; em seguida, também docilmente, incorporar esses robôs ao nosso próprio fluxo de trabalho. Ou então podemos ler Piano mecânico como um alerta: talvez o crescimento econômico a partir da automação não garanta uma vida melhor para ninguém. Como Paul Proteus e Ed Finnerty, cabe a nós redescobrir as duas maiores maravilhas do mundo: a inteligência e a mão humana.

2 de dezembro de 2024

Um banquinho, um Monet(zão)

por Julia de Carvalho Resende

A foto que ilustra este ensaio foi clicada por Thaís Ferreira (@onlyfarelos) em uma visita ao Louvre em 2019.

Ao longo da história, os museus e galerias de arte tornaram-se cada vez mais indiferentes às demandas e aos desejos do corpo. Perpetuando um viés ocidental que remonta ao Renascimento, os museus tratam o espectador como um olho desencarnado, associado à mente, à visão, à imaginação, mas raramente a um corpo real. Embora arquitetos e designers, em teoria, estejam mais cientes das necessidades do visitante, o primado do olhar é o que vem ditando expografia e ambiência criadas para a fruição da experiência nos museus.

O banco de museu é um objeto móvel, quase ubíquo, mas frequentemente negligenciado por museus e galerias. Tão rotineiramente ignorado quanto regularmente usado, o banco duro ou sofá aveludado quase nunca aparece nas discussões dos chamados museum studies. Mesmo em manuais arquitetônicos e expográficos explicitamente dedicados aos interiores de galerias e de sua disposição espacial, o banco é relegado em favor de molduras, paredes, cores e iluminação. Quando presentes, os bancos de museu são objetos furtivos, projetados para não chamar atenção – tampouco gerar conforto excessivo – e posicionados para não serem obstáculos literais à atividade real em questão: apreciar a arte. O que poderia acontecer se passássemos a olhar para esse objeto de outra forma? 

Neste ensaio, busco refletir sobre o que ocorreria se adicionássemos o banco a uma lista de elementos programáticos que compõem o interior da galeria de um museu. Como essa mudança poderia desafiar algumas das nossas suposições fundamentais sobre as relações exposição-pública e espectador-privado? Como esse objeto poderia mediar novas relações dos seres humanos com o espaço? E, principalmente, por que o banco de museu é um objeto de desprezo curatorial, crítico e cultural?

Os primeiros bancos de museu participaram como mediadores entre o público e esse novo espaço. Mais do que otimizar a fruição individual da arte, eles eram projetados para facilitar a interação social.

Desde o surgimento do museu no século 18 até hoje, é comum  encontrar algum tipo de mobiliário nos corredores das grandes galerias. Cadeira, banqueta, banco, otomano remanescentes dos palácios reais e salões privados a partir dos quais muitos museus evoluíram ainda habitam esses interiores. Os primeiros bancos de museu participaram como mediadores entre o público e esse novo espaço. Mais do que otimizar a fruição individual da arte, eles eram projetados para facilitar a interação social. Dessa forma, assentos atuaram e atuam nas relações sujeito-objeto, mente-corpo, arte-vida.

Na pintura Le Salon Carré en 1861 (1861), Giuseppe Castiglione retrata a galeria que serviu de berço para a Academia Francesa e ainda é uma das mais importantes do museu do Louvre, em Paris. Na pintura, é possível ver um grande sofá oval estofado em vermelho, centralizado na parte inferior. Sentados individualmente ou em grupos, homens e mulheres leem, descansam, conversam, socializam. Há ainda duas banquetas, também estofadas na mesma cor, uma em cada lado das portas que levam para as outras galerias. Uma copista, destacada no primeiro plano, à esquerda, usa um banquinho para apoiar suas tintas; enquanto outra, na diagonal, usa uma espécie de escada para sentar-se.

Giuseppe Castiglione, Le Salon Carré en 1861, Museu do Louvre, 1861.

Esse cenário serviu de plano de fundo para o romance O americano (1877), de Henry James. Ambientado na Paris de 1868, o livro de James conta a história de Christopher Newman, um homem de negócios estadunidense, que vai à Europa em busca de um mundo diferente – e de uma esposa. E qual lugar melhor para avaliar as opções de pretendentes do que no grande sofá do Louvre? Lá, as pessoas iam não apenas para ver as obras de arte, mas também para serem vistas e admiradas. Já naquela época, James intuía que um museu deveria oferecer aos visitantes mais do que uma oportunidade para admirar as artes elevadas; ele deveria também satisfazer os instintos mais básicos do corpo.

A mudança de galeria privada para espaço público, no século 19, transformou radicalmente a função dos museus na sociedade. Desde então, sua missão foi redefinida: educar um espectador emergente da classe média. E a organização do espaço expositivo deveria criar as condições necessárias para tal: ao oferecer  uma sequência narrativa de imagens únicas organizadas por estilo nacional e período histórico, a galeria do século 19 transformou significativamente as convenções de exibição.

Preocupações com categorias históricas da arte, fluência narrativa, controle de multidões e visualização adequada, que viriam a definir o museu do século 19, eram irrelevantes nas galerias privadas dos séculos anteriores. Louis Béroud representou o mesmo Louvre três décadas após Castiglione. Em La salle Rubens au Musée du Louvre (1904), é possível ver a transformação do mobiliário museal. O grande sofá deu lugar a bancos menores e sem encosto. Repouso, leitura e socialização foram banidos, enquanto o ato de contemplar – a apreciação estética da arte – tornou-se a atividade central nos museus.

Louis Béroud, La salle Rubens au Musée du Louvre, Museu do Louvre, 1904.

1

Benjamin trata desse assunto no ensaio clássico “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, publicado originalmente em 1936 e revisitado pelo autor em 1955.

Esse movimento, porém, é herdeiro de uma série de ações, que, desde o Renascimento, tinha como objetivo focalizar a visão e desencarnar simbolicamente o espectador. O Renascimento, para Walter Benjamin1, foi o primeiro momento em que o valor de culto cedeu lugar ao valor de exposição.

Já a relação entre olhar e saber está presente na filosofia desde Platão. No livro Um olhar a mais: ver e ser visto na psicanálise (Zahar, 2002), Antonio Quinet lembra que essa relação fica evidente quando traçamos um mapa das palavras mais recorrentes na filosofia: “teoria”, por exemplo, vem de contemplar, examinar, observar. Santo Agostinho afirma que “os olhos são os sentidos mais aptos ao conhecimento”, ao passo que para São Tomás de Aquino “a vista é o melhor de todos os sentidos”. Até mesmo Descartes na Dióptrica (1637) conclui que “toda a conduta de nossa vida depende de nossos sentidos e, entre eles, o da visão é o mais universal e o mais nobre”. Mesmo depois de ter sido posta em dúvida por Descartes com seu cogito, a visão permaneceu como modelo de apreensão do conhecimento.

2

Antonio Quinet comenta a obra de Leon Battista Alberti no livro Um olhar a mais: ver e ser visto na psicanálise (Zahar, 2002), já citado no parágrafo anterior.

3

Com base no pensamento de Jonathan Crary, presente no livro Técnicas do observador: visão e modernidade no século 19 (Contraponto, 2012).

Com a perspectiva linear do século 15 e artefatos como a câmara escura, os princípios ópticos passam a ser estudados, mensurados, e o olhar dá lugar à ciência da visão. Descrita minuciosamente por Leon Battista Alberti em De Pictura (1435), a perspectiva linear iniciada por Brunelleschi possibilita uma interpretação matemática do espaço visual, e “se constitui um olho do saber, que ordena, geometriza”2. O acúmulo de conhecimento sobre a luz, as lentes e o olho dá origem a uma sequência progressiva de descobertas e realizações que levaram à investigação e à representação cada vez mais precisas do mundo físico3 – é a tecnicidade extracorpórea que passa a ordenar os corpos dos sujeitos dessa época.

As práticas expositivas gradualmente ganharam outras regras: se antes era comum que oito ou nove imagens fossem empilhadas umas sobre as outras, os novos padrões ditam fileiras menos densas de duas ou três.

A atenção, como Jonathan Crary argumentou em Suspensions of Perception (MIT Press, 1999), tornou-se um problema cultural distintamente novo no fim do século 19. A absorção total na contemplação de um objeto ou na conclusão de uma atividade exigia uma experiência fora do tempo, fora do corpo, protegida da sobrecarga sensorial e do ritmo acelerado da vida moderna. Para Max Nordau, a falta de atenção representava um sinal de degenerescência moral; para William James, uma sugestão de desequilíbrio mental; e para Sigmund Freud, um sintoma de histeria psíquica. A incapacidade de focar a mente, de atender seletiva e exclusivamente a um ponto distinto em um campo sensorial caótico, era, portanto, um sinal de fraqueza e de falta de razão.

Assim, nos espaços dos museus, o olho, libertado das limitações do corpo, é convidado a atravessar o limiar da moldura e entrar no espaço pictórico. A moldura, por sua vez, assume a responsabilidade de dar foco ao olhar do espectador, enquanto ele navega entre o espaço real e o pictórico. As práticas expositivas gradualmente ganharam outras regras: se antes era comum que oito ou nove imagens fossem empilhadas umas sobre as outras, os novos padrões ditam fileiras menos densas de duas ou três. Essa mudança das exibições mistas e multiníveis para arranjos mais lineares e cronológicos exige que tudo dentro da galeria, incluindo os assentos, orquestre uma narrativa maior. Não mais encorajados a se mover livremente dentro da galeria, os visitantes passam a circular ao redor do perímetro da sala.

As imagens dos primeiros espaços expositivos, em última análise, apontam para a crescente incerteza sobre as prioridades dessas instituições, que se perpetuam até hoje: o museu deveria promover a comunhão visual ou o conforto físico, a liberdade individual ou o decoro público, a educação privada ou o entretenimento social? 

No início, um museu público era tanto um substituto ao parque em dias chuvosos quanto um templo solene para a arte. Quando a National Gallery foi inaugurada em Londres (1838), as pessoas frequentavam o espaço para ensinar seus filhos a andar ou até para fazer piqueniques. O museu, assim, oferecia o mesmo tipo de refúgio tranquilo da metrópole barulhenta e movimentada que o parque, com o benefício adicional de abrigo e segurança. Os bancos eram posicionados para induzir o olhar para a vista artística, fossem as paisagens externas dos parques ao ar livre ou as pictóricas, dentro dos museus.

O banco museal desempenhava uma função semelhante à do banco de parque, fornecendo não apenas um lugar para repouso, mas também uma plataforma para visualização, que abrangia não apenas objetos, mas também outros espectadores.

O banco museal, portanto, desempenhava uma função semelhante à do banco de parque, fornecendo não apenas um lugar para repouso, mas também uma plataforma para visualização, que abrangia não apenas objetos, mas também outros espectadores. Olhar-para-outros-olhando era uma característica tanto dos primeiros parques quanto dos museus. Em ambos os casos, o mobiliário estrategicamente posicionado facilitava esse duplo ato do espectador. Flertar, brincar, comer, beber, conversar, rir e cochilar eram atividades adequadas para o parque público, bem como para os museus da primeira metade do século 19. Com a consolidação do estado moderno, entretanto, tais ações passaram a ser vistas com desaprovação e até mesmo explicitamente proibidas nos museus.

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Tomando como base o pensamento de Michel Foucault, a ideia do museu como parte de um conjunto de agências educativas e civilizadoras fundamental para a formação do Estado moderno é explorada por Tony Bennett, em The Birth of the Museum: History, Theory, Politics (Routledge, 1995).

Isso explica a mudança institucional em relação aos bancos desde o romance de James até os dias de hoje. O banco é a pronta associação do espaço com os corpos que o percorrem. Corpos que formam uma massa, em toda a sua materialidade bagunçada, que ameaçam não apenas danificar as obras de arte, mas também minar ainda mais a noção emergente do museu como um lugar disciplinado4, dedicado à contemplação – desencarnada – da arte.

Assim, a desvalorização dos bancos nos museus aponta para mudanças históricas profundas na percepção e na subjetividade; mudanças provocadas, em grande parte, pela crescente preocupação da modernidade com as virtudes da atenção e com os perigos da distração e de um sujeito indisciplinado. Atentar para o banco de museu é reconhecer o fundamento material da visão estética: sua localização em um corpo real, com necessidades e limitações reais. Esse objeto, apesar de singelo, desvela a visão encarnada em um corpo movente, desejante, que também desfruta de outros sentidos.

Atentar para o banco de museu é reconhecer o fundamento material da visão estética: sua localização em um corpo real, com necessidades e limitações reais.

Museus de arte moderna como o MoMA em Nova York buscaram gerenciar o espectador reduzindo o número de assentos na galeria, eliminando completamente os bancos ou relegando-os a espaços como saguões e corredores, que funcionam como áreas de descanso. Quando os bancos são permitidos a invadir as salas de exposição, eles são estrategicamente posicionados para a contemplação de uma obra de arte que os curadores consideram especialmente significativa. Mesmo quando presentes, eles são notadamente desconfortáveis. Sem encosto, os bancos dos museus modernos tornam impossível para os visitantes relaxarem facilmente, dormirem tranquilamente ou permanecerem indefinidamente sentados. Assim, esses objetos atuam como mediadores das relações entre os humanos e o espaço, reforçando uma ordem mecânica do espectador sempre de pé, sempre em movimento.

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Conceito de Charlotte Klonk, descrito no livro Spaces of Experience: Art Gallery Interiors from 1800-2000 (Yale University Press, 2009).

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Ver Clémentine Deliss, The Metabolic Museum (Hatje Cantz/KW Institute for Contemporary Art, 2020).

O espectador como consumidor educado5 é o que vemos nos grandes museus modernos, que tomam emprestado em seus interiores o design de lojas. À medida que os museus se tornam cada vez mais comerciais e a arte ostensivamente mercantilizada, o consumo visual da arte deve muito às estratégias de gerenciamento de fluxo das lojas de departamento, que raramente oferecem assentos nas áreas principais de compras. A cultura do consumo requer corpos em movimento, não corpos em repouso – o banco, portanto, é o anátema ao espaço capitalista do museu moderno6.

O banco do museu moderno é projetado para harmonizar com a estética austera do espaço expositivo e, muitas vezes, até para se camuflar nele.
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“Cubo branco” refere-se ao modelo modernista da arquitetura de espaços para exposição. Trata-se de oferecer à arte um pano de fundo isento, limpo, branco, livre de excessos, ornamentos e efeitos. Para saber mais, recomendo a leitura de  Inside the White Cube: The Ideology of the Gallery Space, de Brian O’Doherty (University of California Press, 1999).

Mas se o cubo branco7 deve muito às lojas de departamento, ele também deve à igreja medieval. Não à toa, quando assentos aparecem no cubo branco, eles se comportam mais como bancos de igreja: funcionais o suficiente para que o sentar seja possível, mas de maneira alguma confortáveis. A fórmula é quase sempre a mesma: pernas retangulares de madeira ou metal, sem adornos, sustentando uma plataforma sólida ou ripada, às vezes estofada para adicionar um mínimo de conforto, mas frequentemente sem encostos ou braços de apoio. O banco do museu moderno é projetado para harmonizar com a estética austera do espaço expositivo e, muitas vezes, até para se camuflar nele.

Nesses mesmos espaços, no entanto, os bancos reaparecem como arte; um retorno do recalcado, fruto de um deslocamento significativo de posição. Donald Judd foi talvez um dos nomes mais importantes para esse movimento. No ensaio “Specific Objects” (Judd Foundation, 1964), Judd celebra um novo tipo de arte livre das estruturas tradicionais da pintura e da escultura e concentra-se, em vez disso, numa investigação do “espaço real”, ou seja, tridimensional, através da utilização de materiais comerciais em formas inteiras e unificadas. O escultor, que por sinal recusava esse rótulo, experimentava em suas obras com diferentes mídias, formas e materiais. Muitos dos mobiliários projetados por ele foram feitos para uso próprio e de sua família. Mas, nos museus modernos, eles deixam de ser lugares de pausa e, uma vez declarado seu status de obra de arte, tornam-se intocáveis, ou melhor, “insentáveis”.

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Falar de museu capitalista é um pleonasmo, uma vez que esse tipo de instituição só surgiu em um sistema laico, industrial e em uma relação de poder colonizador-colonizado. O museu, portanto, é uma instituição que exibe, legitima e exclui. Para George Bataille, no ensaio “Museum” (publicado na revista October, número 36, 1986), tais instituições incorporam energias contraditórias: há limpeza, mas também uma história “suja”; a arte é secular, mas a experiência pode ser profundamente ritualística. Essas oposições contêm-se e, ao mesmo tempo, se escondem.

A ideia do banco como lugar de socialização e partilha de refeições, orações e discussões é o ponto de partida do trabalho do escultor britânico Francis Cape, Utopian Benches (2012). A obra consiste em vinte bancos, originalmente projetados por comunidades norte-americanas do século 19, que foram reconstruídos por Cape. Ao representar os ideais de comunidade e utopia por meio do artesanato, o artista propõe uma reconsideração de conceitos como: valor, tempo, comunhão, fazer manual etc. Conceitos estes fundamentais para os povos originários e destroçados pelo pensamento iluminista fundante dos museus-capitalistas8. A obra defende formas pelas quais uma categoria de mobiliário, cada vez mais obsoleta, pode ser instrumental para se pensar a propriedade comunitária e coletiva.

O banco também é tema de Finnegan Shannon, inclusive o banco de museu, com ênfase na inclusão e na diversidade de corpos, especialmente aqueles com deficiência. Suas instalações frequentemente incluem bancos com mensagens escritas, como “Este banco foi feito para você descansar”, que desafiam a narrativa de que os espectadores devem estar em constante movimento e em estado de alerta. Finnegan não apenas reconhece, mas celebra a diversidade das necessidades físicas e cognitivas dos visitantes. Seu trabalho destaca a importância de criar espaços que sejam verdadeiramente inclusivos, onde todos possam participar plenamente da experiência estética, sem barreiras ou restrições.

À esquerda: Francis Cape, "Utopian Benches", 2012, Spruance Gallery. Foto: Greenhouse Media. À direita: Finnegan Shannon, "Do You Want Us Here or Not", 2018.
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“Um museu é uma instituição permanente, sem fins lucrativos e a serviço da sociedade que pesquisa, coleciona, conserva, interpreta e expõe o patrimônio material e imaterial. Abertos ao público, acessíveis e inclusivos, os museus fomentam a diversidade e a sustentabilidade. Com a participação das comunidades, os museus funcionam e comunicam de forma ética e profissional, proporcionando experiências diversas para educação, fruição, reflexão e partilha de conhecimentos.” Definição aprovada em 24 de agosto de 2022 durante a Conferência Geral do ICOM em Praga.

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Até a primeira metade do século 20, eram comuns estudos sobre fadiga de museu (museum fatigue), descrita por Stephen Bitgood no ensaio “Museum Fatigue: A Critical Review”, publicado no periódico Visitor Studies (volume 12, número 2, 2009).

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Em 1930, Sigmund Freud aponta em O mal-estar na civilização (Penguin-Companhia, 2011) para a íntima relação entre a perda do olfato – por conta da posição bípede – e uma sexualidade regida primordialmente pela visão.

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A relação entre o feminino e o natural versus o masculino e a cultura é explorada por diversos pensadores contemporâneos. No contexto da formação dos museus, ver Tony Bennett, The Birth of the Museum: History, Theory, Politics (Routledge, 1995).

Os bancos de Finnegan são declarações artísticas que questionam a equidade e a inclusão nos espaços culturais. Eles denunciam os corpos capazes de ocupar plenamente os espaços dos museus: jovens, resistentes, típicos, normativos. Ao mesmo tempo, fornecem um lugar de descanso enquanto simbolicamente oferecem um espaço para a inclusão e o reconhecimento das diversas necessidades do público. Através de suas obras, Finnegan amplia a discussão sobre como os museus podem se tornar mais acolhedores e acessíveis para todos – uma ambição em consonância com a nova definição dos museus9, que deve privilegiar os visitantes, de acordo com o International Council of Museums (ICOM).

No museu moderno, o banco continua sendo um lembrete persistente do eu corporificado. Ele aponta para a história ocidental de centrismo ocular, na qual a visão, e apenas a visão, dissociada de um corpo material, serve como sentido privilegiado da racionalidade. Um lugar de pausa, no meio do espaço do museu, o banco significa uma quebra de ritmo no consumo visual expográfico e permite descanso para o corpo e para o olhar, quando não se pode mais concentrar na arte10. Ao mesmo tempo, também convida a um mergulho na obra, a um registro pessoal em forma de desenho, a audição de um audioguide. Sua presença coloca a concentração na frente do fluxo de consumo moderno. O banco de museu, portanto, marca fisicamente os limites do corpo e desfaz a ficção do olho transcendente.

A valorização do ereto e móvel em detrimento do sentado e estacionário por parte do museu moderno traz implicações para os bancos. Em parte, por eles trazerem o sujeito de volta e para baixo, para uma posição de não atenção, mas de abjeção, de submissão, de lazer, de relaxamento – todas posturas profundamente associadas a características animalescas11, ao estigma da feminilidade, da domesticidade e dos corpos sociais não normativos12.

Entendendo que o mundo material não é um espelho das relações sociais e que os objetos atuam como mediadores, produzindo constantemente novas relações, o banco do museu pode interferir na produção do espaço e das relações sociais ali vividas. Os componentes não humanos (paredes, piso, iluminação e especialmente móveis) interagem não apenas entre si e com a arte, mas também com os visitantes. O setting expositivo, portanto, molda as dinâmicas sociais nos museus – desde os comportamentos esperados, até quem se espera que frequente esses espaços.

Os museus, assim, são locais simbólicos que fazem circular efeitos ideológicos. O visitante, aqui, está inscrito numa teia de espaços sequenciados e arranjos de sons, cores e objetos que fornece um “cenário”, que moldam e estruturam a visita de acordo com a estética dominante e interesses sociais.

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Tradução livre. A frase original, em inglês, é” “Art should comfort the disturbed and disturb the comfortable”.

14

Não se sabe ao certo quando alguém se sentou em um banco pela primeira vez, mas há indícios desde a Grécia Antiga.

Hoje, museus e artistas contemporâneos buscam refletir sobre temas como inclusão, diversidade e colaboração. É nesse contexto que o trabalho de Finnegan se mostra relevante e atual. A frase do poeta Cesar A. Cruz, popularizada por Banksy, “a arte deve confortar o perturbado e perturbar o confortável”13 pode ser aplicada também aos espaços dos museus. O banco serve como evidência material de um espectador corporificado que anseia por alternativas mais inovadoras (mesmo quando milenares14) ao vocabulário restritivo e altamente copiado do ortodoxo cubo branco. Sua presença ou ausência, sua forma e materiais (com encosto ou sem; acolchoado ou duro), seu posicionamento (nas galerias ou nos corredores) e seu tamanho são algumas das pistas que o objeto nos dá sobre como habitar esses lugares.

Tomando esse objeto em conta, este ensaio se encerra com um chamado aos profissionais de museus. É preciso imaginar caminhos de estimular (e acolher) diversos corpos e sentidos corporais, afinal, um mero objeto pode moldar organicamente encontros físicos entre pessoas e até mesmo ajudar o personagem de Henry James a encontrar um amor. Talvez, assim, os museus possam (voltar a) ser um lugar de encontro entre arte e vida.

Pintura a óleo Sisyphus, de Tiziano Vecellio (1548-1549)

1

Hans Magnus Enzensberger (1929-2022) traduzido por Daniel Arelli em Destinatário desconhecido: uma antologia poética (1957-2023) (Círculo de Poemas, 2024).

Instrução para Sísifo

O que você faz não tem futuro. Certo:
você entendeu, admita,
mas não se dê por vencido,
homem da pedra. Ninguém
vai te agradecer; as linhas de giz
que a chuva lambe indolente
marcam a morte. Não vá se alegrar
antes da hora, não se faz carreira
com o que não tem futuro. Só monstros,
espantalhos e adivinhos vivem à vontade
com a própria tragédia. Cale-se,
troque uma palavra com o sol
enquanto a pedra rola, mas
não se deleite com a sua impotência,
acrescente à ira do mundo
cem quilos, um grão.
Faltam homens que façam
em silêncio o que não tem futuro,
arrancando como mato a esperança,
seus risos, o porvir, rolando,
rolando sua ira montanha acima.1

2

A expressão anglófona method acting é usada para descrever um tipo específico de atuação, na qual ator e personagem devem mesclar-se física e emocionalmente, mesmo longe das câmeras. Em analogia, muitos designers acreditam que precisam “viver o design” 24/7, ou seja, dentro e fora do horário de trabalho. [N.E.]

De todas as definições que podem ser atribuídas à palavra design, método é aquela que revela uma de suas vocações: a atuação2. A teatralidade parece ser uma especialidade do design: imagens cintilantes, objetos que posam para as câmeras, pessoas produzidas para representar um produto, uma marca, uma instituição. Cenários falsos. Todo esse aparato reforça a malha à qual nós e os objetos que criamos estamos costurados. Designers, diretores de arte, redatores, fotógrafos, videomakers, arquitetos, entre muitos outros, são responsáveis por coreografar espetáculos por vezes movidos pelo  Estado da Arte, mas sempre subordinados ao Delírio do Capital. Daqui em diante consideremos o design, sobretudo, como um método de atuação. Merda pra você!3

Batendo o ponto, entrando em cena

3

No teatro, é comum que atores e membros da equipe desejem “merda” uns aos outros. A expressão equivale a dizer “boa sorte”. [N.E.]

4

Pude conferir a obra de Hsieh pessoalmente, através do projeto de itinerância da 30ª Bienal de São Paulo – A iminência das poéticas, realizada de 7 de setembro a 9 de dezembro de 2012 na capital paulista, e exposta em Belo Horizonte de 17 de janeiro a 17 de março de 2013.

5

Sugiro o vídeo (em inglês) “Tehching Hsieh: One Year Performance 1980-1981”, disponível no canal australiano Das Platforms no YouTube.

6

O artigo de opinião “The Rigour of Tehching Hsieh’s One Year Performance” foi publicado em maio de 2023 na edição 235 da revista Frieze. Os trechos que aparecem aqui foram traduzidos livremente por mim.

Entre 1980 e 1981, o artista taiwanês Tehching Hsieh se lançou numa proposta ousada de performance. Durante um ano inteiro ele registrou a passagem do tempo batendo ponto em um relógio industrial a cada hora do dia. Toda vez que batia o ponto, o artista capturava uma fotografia de si mesmo ao lado do relógio. As fotografias se juntam como quadros em um vídeo de seis minutos, onde é possível perceber a passagem do tempo, seja pelo cabelo que cresce, seja pela expressão cada vez mais apática em operar uma rotina tão estrita. No fim das contas, ele bateu o ponto 8.666 vezes de 8.760 possíveis (dormindo durante as 94 horas restantes)4.

Em Time Clock Piece5, Hsieh intencionava registrar o tempo, essa convenção que se materializa em nossas rotinas de maneira muito pragmática: o minuto tem 60 segundos, a hora 60 minutos e o dia 24 horas. Sobre essa diferença entre o tempo da arte e o tempo da vida, ele afirma, em entrevista a Vivian L. Huang6, que é preciso que exista uma sincronicidade entre os dois para que suas performances aconteçam. Como imigrante ilegal nos Estados Unidos, tentou se infiltrar no mundo da arte de Nova York mesmo sem ter contatos importantes. Sem documentos que o permitissem aplicar para bolsas de instituições do país, lavou pratos e faxinou restaurantes para sobreviver. Sobre isso, ele diz:

Me senti bem fazendo o meu trabalho num contexto ilegal; foi difícil, mas tive algum tipo de liberdade. Eu não tinha identidade. Claro, é uma situação difícil, mas me deu energia. Se você tem medo, não é possível fazê-lo. Você tem que correr algum risco.

Na fala de Hsieh, é curioso notar que sua aparente falta de identidade fixa, fruto de seu deslocamento enquanto imigrante ilegal vivendo no país dos sonhos a serem conquistados, implica uma maior permissividade para mutações, oscilações, derivas e formas de abandono. Para ele, a rigidez do sistema pode apontar para um caminho de descobrimento do Eu. Como ele mesmo diz, viver à margem possibilita algum tipo de liberdade.

Ao adotar a estética industrial de um operário exemplar e o gesto repetitivo de inserir o cartão de ponto no relógio, Tehching Hsieh explicita a padronização e a mecanização dos corpos explorados pela indústria.

A natureza rigorosa de sua performance e a privação ou, ainda, a interrupção do sono faziam parte de um acordo que Hsieh travou consigo mesmo no início do projeto e que documentou em uma carta de intenção. A simplicidade dessa maneira de materializar o tempo e transformá-lo em objetos de arte (fotografias, cartões de ponto, indumentária etc.) documenta a passagem dele de modo cartesiano – rígido, esquemático – ao mesmo tempo que potencializa a dimensão política da Time Clock Piece. Ao adotar a estética industrial de um operário exemplar e o gesto repetitivo de inserir o cartão de ponto no relógio, o artista explicita a padronização e a mecanização dos corpos explorados pela indústria.

Apesar de ter iniciado sua série de performances de longa duração na década de 1980, a obra de Tehching Hsieh só começou a ganhar notoriedade em 2009 com uma exposição individual no Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA). No artigo de Vivian L. Huang para a revista Frieze, o curador britânico Adrian Heathfield é categórico ao definir o motivo pelo qual o trabalho de Hsieh foi excluído da história daquele período: ele não é branco.

É curioso pensar sobre o que ele diz da experiência: “Eu não tinha identidade”. Trabalhadores que batem ponto ou não, muitas vezes, ao responder à pergunta “quem é você?”, ou ainda, quando pedem “fale mais sobre você”, começam suas repostas pela descrição de suas ocupações. Essa âncora entre quem somos e o que fazemos para sobreviver – um vínculo difícil de escapar na sociedade como está configurada – faz pensar nos tipos de performances às quais estamos presos voluntariamente ou por desígnios misteriosos. Quando você se apresenta, diz algo mais? Nossas identidades enquanto pessoas trabalhadoras, porém, são descritas de maneiras muito superficiais.

7

Esta ideia está presente no poema “A vida na hora”, publicado na coletânea Poemas com tradução de Regina Przybycien (Companhia das Letras, 2011). “A vida na hora. / Cena sem ensaio. / Corpo sem medida. / Cabeça sem reflexão. / Não sei o papel que desempenho. / Só sei que é meu, impermutável. / De que trata a peça / devo adivinhar já em cena.”

8

Expressão visual utilizada por empresas de tecnologia para descrever os próximos passos de um empreendimento e as tarefas necessárias para alcançar objetivos.

O que quero dizer com isso é que na busca por atender a expectativas, cumprir metas e gerar resultados tanto no campo do trabalho quanto em nossa vida pessoal, cada vez mais gamificada, estamos internalizando um ideal de performance. Em nossa cena cotidiana, ensaiada enquanto a peça já está em andamento, como dizia a poeta polonesa Wisława Szymborska7, com frequência nos sujeitamos a métricas quantitativas, mas, quando os números indicam que batemos a meta, o “lógico” é dobrar a meta (alô, Dilma Vana Rousseff). Essa mecânica é usada por boa parte das empresas no sistema capitalista: o crescimento precisa ser exponencial, até que não seja possível crescer mais e a estagnação leve à falência. Mas e a sua vida, ela tem um modelo de negócio, um roadmap8

O fato de que frequentemente começamos a responder à pergunta sobre quem somos pela nossa ocupação parece revelar uma pista clara de que equivalemos o nosso valor àquilo que podemos produzir. Ou ainda, que a nossa ocupação diz muito mais sobre nós do que as nossas origens ou histórias pessoais. Quase ninguém responde a essa pergunta dizendo: sou filho da Simone, irmão da Sophia, sobrinho da Rose, amigo da Renata e vizinho da Lindalva… Que o trabalho é uma forma de laço social, nós entendemos, mas por que ele predomina sobre as outras?

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Definição extraída do Dicionário de Português licenciado para Oxford University Press.

performance [s.f.]

1 atuação, desempenho. “O orador teve uma performance notável.”
2 teatro espetáculo em que o artista atua com inteira liberdade e por conta própria, interpretando papel ou criações de sua própria autoria.9

A palavra performance não parece dar brecha para outras interpretações. Estamos falando de atuação, desempenho. É verdade, há vários tipos de performance. Do teatro às artes visuais, do cinema à novela das nove, do comercial de margarina ao horário político obrigatório, em casa ou no trabalho, nos esportes ou nos hobbies, nas academias fitness ou nas universidades, na análise ou no confessionário, há sempre um desempenho de papéis. Desempenhamos, sobretudo, papéis sociais.

No que diz respeito à classe, nos é vendida uma ideia de mobilidade – a meritocracia – condicionada ao esforço individual. No entanto, mesmo quando persistimos muito, nos dedicamos ao máximo, o sucesso nunca é garantido.

Já estreamos neste mundo cumprindo papéis – até hoje, pessoas a quem o sexo feminino foi atribuído no nascimento têm as orelhas furadas aos três meses de idade para garantir que seu gênero não seja confundido por estranhos. No que diz respeito à classe, nos é vendida uma ideia de mobilidade – a meritocracia – condicionada ao esforço individual. No entanto, mesmo quando persistimos muito, nos dedicamos ao máximo, o sucesso nunca é garantido. Para entender esse fenômeno – ou a ineficiência dele –, é necessário também olhar para as diversas demografias e perceber as desigualdades que dificultam a performance em cada grupo: dos privilegiados aos mais vulneráveis.

Tentar entender por que trabalhadores criativos têm sido atingidos, tanto física quanto mentalmente, pela ligação entre desempenho e produtividade, e,ainda, como isso tem esgarçado o tempo de maturação de suas criações, pode ser um relevante movimento de reflexão. É possível acompanhar a velocidade do mercado, cada vez mais acelerada pelas redes sociais? O utilitarismo estaria no cerne desse adoecimento? Entre o ócio orientado à criação e a construção diligente de repertório visual; a análise compulsória de tendências e os espelhamentos comparativos cotidianos (quais são os benchmarks da sua existência?), já faz tempo que não nos envolvemos em atividades que simplesmente não resultam em algo mensurável. 

A metrificação de tudo

Quantos passos você deu no dia, quantos quilômetros andou de bicicleta, quantas calorias queimou na esteira, quantos livros leu em um ano, quantas músicas escutou, quantos filmes viu, quantas fotos postou, quantas curtidas e compartilhamentos recebeu… É exaustivo estar atado a todos esses cronômetros que pedem sempre mais. 

É curioso que o tempo despendido consigo mesmo ou investido em seus próprios interesses tenha sido um dos primeiros alvos de réguas de produtividade na internet. Do meio para o fim dos anos 2000, muita gente criou conta no Last.fm porque queria registrar todas as músicas que escutava, saber quais eram seus artistas mais ouvidos (uma protoversão do que o Spotify faz hoje a cada ano). O mesmo vale para o Goodreads, que promete otimizar suas leituras com base em critérios autoimpostos. 

Esse último exemplo é interessante, pois a plataforma, comprada pela Amazon em 2013, estimula seus usuários a determinarem um desafio de leitura para o ano vigente. Você define a quantidade de livros que deseja ler, e é a sua autodisciplina que determinará com quanto rigor essa meta será perseguida. Mas pare. Imagine que sua meta seja 12 livros por ano, um por mês. Se as suas escolhas literárias forem ruins, seu desafio de leitura te impediria de abandonar livros pela metade? Sobra tempo para experimentar que tipo de histórias você realmente gostaria de ler?

A foto diante do espelho na academia com a legenda “Tá pago” parece emblemática no sentido de estar atada a um cronômetro, assim como as fotos de Hsieh ao lado do relógio de registro.
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Plataforma semelhante às demais citadas, na qual os usuários registram, dão notas e comentam os filmes a que assistiram.

Ao fazer a análise de dados dos seus interesses, seja no Goodreads, no Last.fm ou no Letterboxd10, você pode comparar e ver em que direção você está… crescendo?! Ops! ERRO 404; câmbio desligo; NÃO! A foto diante do espelho na academia com a legenda “Tá pago” parece emblemática no sentido de estar atada a um cronômetro, assim como as fotos de Hsieh ao lado do relógio de registro. Mas, investigando melhor, qual é esse preço que está sendo pago na cultura do desempenho?

O frenesi de se tornar um case de sucesso, um exemplo a ser seguido, nos cega de quão mesquinha é essa tarefa. Aqui eu quero chamar o design de método sobretudo performático, pois ele mascara sua atuação com a promessa de solução para um problema indefinido, que nunca é solucionado efetivamente… Sempre se precisa de mais. Solucionar um problema é criar outros três (ou mais!). Quantas pombas cabem nessa cartola?

Claro, não é justo imputar todo esse peso em cima de designers e não perceber os interesses corporativos por trás desse sistema que enxergou no design uma fórmula fácil para cooptar indivíduos. Desde que se entende por atividade, o design interfere na escolha monológica – voluntária, livre de obrigações – do consumidor e manipula suas emoções, disfarçadas de identificação com a marca x ou com o produto y (design emocional – alguém se lembra dessa?), em detrimento de relações mais dialógicas: diplomacia, troca, solidariedade e respeito mútuo. No texto “O cidadão como consumidor”, publicado no Brasil pela piauí (Edição 79, 2013), o sociólogo alemão e diretor do Instituto Max Planck para o Estudo das Sociedades, Wolfgang Streeck, comenta o impacto desse processo de individualização através do consumo:  

As vastas possibilidades de consumo nos mercados ricos fornecem um mecanismo que permite que as pessoas concebam um ato de compra como um ato de autoidentificação e autoapresentação, que diferencia o indivíduo de certos grupos sociais e o une a outros. Comparada a modos mais tradicionais de integração social, a socialização por meio das escolhas do consumidor parece mais voluntária, resultando em laços sociais e identidades menos restritivas – de fato, inteiramente livres de obrigações. […] Isto porque, em um mercado rico, comprar algo envolve apenas escolher aquilo de que você mais gosta (e pode pagar), a partir de um menu de opções, em princípio infinito, que aguarda a sua decisão, sem necessidade de negociar ou ceder como era preciso fazer nas relações sociais tradicionais. Assim, a socialização pelo consumo é monológica e não dialógica, voluntária e não obrigatória, individual e não coletiva.

Uma autoconsciência exagerada dos próprios papéis sociais pode levar a certo tipo de enrijecimento, uma retração, um sentimento de  impotência diante das distâncias entre quem monopoliza o poder e quem está sujeito a ele. Mas saber que esses papéis são oscilantes, disputáveis e impermanentes ajuda a nos situarmos de maneira horizontal – abaixo dos que acumulam milhões ou bilhões, estamos todos no mesmo barco. Sentar com o desconforto dessas cenas que representamos em nossas interações diárias, virtualmente cercados de objetos de desejo, nos demanda jogo de cintura e, sobretudo, humor. Essa atitude, nem tão pessimista por ser comunitária, alivia a pressão social que insiste em moldar vencedores.

O esforço olímpico

Em 2021, na ocasião dos Jogos Olímpicos de Tóquio, comprei o livro Esforços olímpicos (Todavia, 2021), de Anelise Chen, escritora estadunidense nascida em Taiwan. Me interessei pela obra porque eu não compreendia bem a ideia de competição dos Jogos Olímpicos: a celebração máxima da superação pela performance, pelo esforço físico e, ainda, com a dimensão de espetáculo midiático. Tudo isso me intrigava, ao mesmo tempo que me deixava chateado. Sempre pensava que, se apenas três atletas ou equipes ocupam o pódio, quantos outros ficam de fora, mesmo depois de colocar seus limites à prova? Não seria mais justo que todos fossem igualmente honrados? Era um dilema interessante e posso dizer que com os Jogos Olímpicos de Paris, em 2024, aprendi a acompanhar as disputas e a torcer com menos aflição. 

Ah, o livro. Ele conta a história de uma ex-atleta da natação que está para finalizar seu doutorado (um megaesforço acadêmico), mas sente que está sobrecarregada e que vários aspectos da sua vida estão vindo abaixo. Essa sensação de erguer algo sobre um projeto de vida já cambaleante acaba salientando uma inclinação para a desistência. Desistir também é uma forma de ganhar tempo para si. Dando exemplos não ficcionais de atletas que desistiram, ou que, por alguma razão, não subiram ao pódio, Anelise Chen se debruça sobre as agruras das perdas e vitórias e sobre as aflições de uma desistência iminente, aquele sentimento de já estar virando as costas para algo ou alguém.

A narrativa de Chen traça um paralelo entre os esportes e a vida acadêmica, mas a mesma ideia também pode ser extrapolada para o contexto corporativo. Empresas se preocupam em medir o desempenho de suas equipes constantemente, em busca da eterna otimização. Quando uma peça da engrenagem mostra sinais de avaria, ou melhor, quando um integrante do time não cumpre bem o seu papel em campo, a solução drástica e unilateral é descartá-lo, removê-lo. Livrar-se de quem erra é uma forma de impedir que o erro se espalhe.

A dissonância cognitiva parece estar no centro da crise corporativa atual, em que, cada vez mais, somos instigados a ultrapassar todos os nossos limites, ir além do humanamente possível e demonstrar um nível de comprometimento impossível

No clássico Bartleby, o escrivão: uma história de Wall Street (Ubu, 2017), a personagem principal de Herman Melville (1819-1891) incorpora a aridez do trabalho burocrático, mas passa a se recusar a cumprir ordens e a realizar tarefas no escritório de advocacia onde trabalha. Bartleby é uma personagem reverenciada na literatura, que repete constantemente seu lema “Acho melhor não” – traduzido, às vezes, como “Prefiro não”. A frase é igualmente pregnante e absurda diante da realidade também irracional do mercado financeiro de Wall Street, onde a história acontece. Essa dissonância cognitiva parece estar no centro da crise corporativa atual, em que, cada vez mais, somos instigados a ultrapassar todos os nossos limites, ir além do humanamente possível e demonstrar um nível de comprometimento impossível… Quando nos recusamos, como Bartleby, ou sofremos burnout, somos tachados de indesejáveis, apáticos ou desengajados.

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O termo é uma aglutinação das palavras empreendedor e precarizado. Foi criado pelo designer e pesquisador italiano Silvio Lorusso, autor de Emprecariado: Todo mundo é empreendedor. Ninguém está a salvo (Clube do Livro do Design, 2023).

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A citação a Ehrenberg foi extraída do artigo “O culto da performance: o novo modelo de trabalho do século XXI”, de Thiago Alencar da Rocha, que foi publicado na Revista Sem Aspas (Volume 7, Número 1), da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em 2018.

Da mesma forma, não é coincidência que o heroísmo olímpico esteja tão disseminado na cultura corporativa do presente. O trabalhador emprecariado11, independente de vínculo empregatício, se tornou um superatleta, no que o sociólogo francês Alain Ehrenberg denominou O culto da performance. Em seu livro homônimo (Ideias e Letras, 2010), ele esmiúça como o mundo do trabalho se tornou um fenômeno de desempenho sobretudo como “maneira de assumir a responsabilidade por si mesmo diante das carências das políticas públicas do emprego e da incapacidade da administração em manejar os laços eficazes entre oferta e demanda no mercado de trabalho”12

Para Ehrenberg, ícones midiáticos, como atores ou atletas de grande expressão, eram antes estrelas admiradas a certa distância. Hoje, com smartphones colados ao rosto, assistimos de perto a performances ultraprocessadas: nas redes sociais, todos parecem estar exaustos ou muito satisfeitos, mas sempre sedentos por atenção. A necessidade de performar o heroísmo de jornadas árduas, ou o sucesso absoluto e sem esforço, acaba desviando a atenção das batalhas travadas, dia após dia, por dignidade. Simplesmente não perecer ou trazer para casa o pagamento no fim do mês não enchem estádios.

Sísifo deixa a pedra de lado e vai fumar um cigarro

Mas quem é esse tal de Eme e por que ele se sente no direito de questionar aqueles que contam passos, batimentos cardíacos, níveis de gordura corporal? Eme tem 30 anos e ainda mora com os pais. Está desempregado, acima do peso, hipermedicado, inadimplente e desencantado com a prática do design. Desde que se formou, foi demitido duas vezes e participou de inúmeros processos seletivos que não deram em nada.

E o que Eme tem feito para superar esses momentos de baixa? Por vezes está à deriva, por outras, visita o LinkedIn sem muita convicção de que aquela plataforma explicitamente masturbatória – em que o culto à performance é celebrado da forma mais tacanha possível – lhe levará a um posto de trabalho. Ajustar seu perfil para agradar recrutadores-robôs está fora de cogitação. Quando entra em outros sites de vagas, frequentemente encontra anúncios à procura de profissionais 8 em 1: redator, cinegrafista, sonoplasta, editor de vídeos, animador, gestor de mídias e, por fim, designer de identidades visuais e branding. Afinal, tudo cabe debaixo do grande guarda-chuva do design.

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Sobre esse assunto, recomendo a leitura da reportagem “Cai interesse por programas de pós-graduação no país” publicada pela Revista Fapesp em junho de 2024 e em julho pelo Nexo.

As habilidades de Eme em relação ao design parecem se distanciar da lógica produtivista e se aproximar de um viés mais crítico. Infelizmente, esse interesse não gera uma renda fixa, muito menos notoriedade ou prestígio. Eme já pensou em entrar em um programa de pós-graduação stricto sensu, mas acredita que o espaço acadêmico lhe demandaria algo que ele fundamentalmente não possui: saúde mental para enfrentar um ambiente classista, racista e nada acolhedor, além de inundado pela ideia de performance – mais publicações, mais prazos apertados, mais disputa por capital político e social13.

Postar nas redes sociais sobre um novo certificado ou uma megapromoção transforma esses acontecimentos em feitos estáticos, que ocultam o percurso e todo o sofrimento envolvido.

Por outro lado, se recusar a performar para as câmeras, para os feeds e para o Outro – que espia e inveja – também implica ceder o controle da narrativa que esse Outro hipotético pode ter sobre sua vida, sabendo que há pouco ou nenhum controle sobre como as pessoas nos percebem. Postar nas redes sociais sobre um novo certificado ou uma megapromoção transforma esses acontecimentos em feitos estáticos, que ocultam o percurso e todo o sofrimento envolvido. Na experiência de Eme, é visível que somos colocados para digladiar uns contra os outros em arenas virtuais. Essa disputa feroz define quem leva os projetos mais interessantes, as cadeiras com melhores remunerações e, ainda, a validação de toda uma comunidade. É muita pressão.

Em A arte queer do fracasso (Cepe, 2020), o estadunidense Jack Halberstam reflete sobre como as pessoas queer já frustram as expectativas sociais simplesmente por não se enquadrarem na idealização capitalista de seus corpos, seja por sua expressão de gênero, seja por sua orientação sexual. Ele argumenta que pessoas bem adaptadas ao capitalismo são as que têm mais chance de sucesso, uma vez que a cisheteronormatividade está colada ao desenho patriarcal da sociedade. O fracasso e a indisciplina são artes fundamentalmente queer

Não seria desejável sentar do lado oposto ao dessa configuração? Escapar dessa hierarquia social tosca? Com o que ou quem negociamos isso? Ser queer e ter orgulho disso parece ser uma forma de rebeldia. “Be gay, do crime”… Um modo de frustrar ainda mais a já baixa expectativa da sociedade em relação a corpos dissidentes: forjar novos caminhos e inventar outras ideias de sucesso também desviantes!

O mito de Sísifo pode ser lido como uma alegoria ao direito de desistir.  Sua punição divina por desobediência aos deuses do Olimpo era subir um monte carregando uma grande e pesada rocha e assisti-la, todos os dias, rolar abaixo assim que chegava ao cume. Fazer o caminho de subida e descida de maneira repetitiva, até a eternidade, era seu castigo. Sua prisão era a disciplina. A urgência de contemplarmos o absurdo de nossas rotinas e deliberadamente escolher continuar puxando essa rocha deixa implícita uma realidade alternativa, em que ela é simplesmente abandonada. Talvez Sísifo estivesse mesmo fadado até a eternidade, mas é quase impossível não imaginar os desdobramentos de sua indisciplina e revolta. Quem sabe nós, condenados pelos Deuses do Capital, possamos, sim, largar a pedra e ir tomar um ar, por mais que essa decisão demande uma coragem contígua à rebelião. 

Enquanto profissional do design, penso em como precisamos considerar a dimensão política de nossas práticas, para além de sermos “resolvedores de problemas” (para Sísifo, o problema nunca acaba, ele recomeça) e, muitas vezes, “apagadores de incêndios” (como bombeiros heroicos). Há um papel ético na produção não só das imagens e dos objetos que tomam as ruas, mas sobretudo dos discursos. Estar atento a quais discursos os produtos do seu trabalho estão vinculados, quais ideais estão fortalecendo, talvez amenize o sentimento de estar alimentando um monstro que suga a sua energia e te coloca para dormir. 

A sensação de esvaziamento que sentimos coletivamente pode ter origem na priorização de resultados em detrimento da fruição do processo. Ao participar desse teatro mascarado, deixamos de lado um aspecto fundamental do design: a presença da mão do trabalhador, da artesania, da arte do fazer, mesmo quando se trata de produtos produzidos em escala. Essa marca – no sentido de vestígio – perdeu espaço para imagens cada vez mais achatadas, homogêneas, falsamente neutras, prontas para serem desembaladas e engolidas, mas nunca mastigadas.

Somente quando nos livramos dos cronômetros a que estamos atados, ganhamos mais tempo para nós mesmos e para os nossos e podemos exercer o cuidado e a solidariedade em comunidade, entre pares.

A hegemonia de um design pronto para a digestão tem a ver com a ideia moderna de que tempo é igual a produção. Há muito fomos convencidos de que trabalhar o necessário para conquistar o que realmente precisamos não é suficiente e de que fins de semana servem exclusivamente para “recarregar as energias”. Somente quando nos livramos dos cronômetros a que estamos atados, ganhamos mais tempo para nós mesmos e para os nossos e podemos exercer o cuidado e a solidariedade em comunidade, entre pares. Como podemos estender a mão uns aos outros, de forma a construir vínculos dialógicos, diplomáticos, que ganham força através da presença, da conversa, da escuta e da troca?

Em “Viver com nada”, publicado na 12ª edição da revista Piseagrama, Wellington Cançado elenca artefatos para serem extintos imediatamente do planeta. Para ele, a abolição de uma extensa lista de objetos nocivos abriria possibilidades, inclusive criando trabalhos de contra-produção e novos modos de descarte e reaproveitamento de materiais:

Mas, ao juntar as listas de toda a humanidade, teríamos milhares, quiçá milhões, de artefatos a serem recolhidos, destruídos, reciclados. O que significaria finalmente um trabalho relevante para bilhões de pessoas por décadas, incluindo a transformação e o desmanche das fábricas, dos parques industriais e das cadeias produtivas extensas e complexas outrora produtoras dos artefatos banidos.

Em um nível mais profundo, essa proposta poderia eliminar os sofrimentos produzidos pela própria sociedade, como a depressão e a ansiedade, ela também nos faz pensar a respeito da devolução da autonomia às pessoas, à medida que devolve a elas o poder de decisão sobre quais objetos seriam salvos e quais seriam banidos.

Descobrir prazeres contraproducentes pode abrir espaço para que a criatividade se mostre: um exercício de liberdade condicionado ao desejo de quem cria e não ao de quem consome!

Não é de muito bom tom criticar a roda (do Capital), e como o seu giro mói pessoas, sonhos, subjetividades, sutilezas, nuances e relações. A roda pode virar toda sua ira contra você. Minha intenção com esta reflexão é identificar comportamentos que alimentam ainda mais esse moinho e otimizam, predatoriamente, seu poder de destruição do nosso imaginário. Escrever poesia ainda que não almejando o Prêmio Nobel, ou desenhar sem objetivo de expor numa galeria, ou ler um livro por prazer. Descobrir prazeres contraproducentes pode abrir espaço para que a criatividade se mostre: um exercício de liberdade condicionado ao desejo de quem cria e não ao de quem consome!

14

O termo “Exército Industrial de Reserva” foi usado por Karl Marx (1818-1883) para nomear o contingente de trabalhadores desempregados ou subempregados. Para ele, essa parcela da população é usada como forma de dominação burguesa e garante que a mais-valia seja exercida.

Para muitos, os trabalhos que Eme tem se proposto a fazer (escrever poemas, produzir zines, participar de feiras de artes gráficas, levar a sua irmã a consultas médicas, ajudar nas tarefas de casa, ser o secretário dos seus pais que nunca sabem como gerar o boleto do cartão de crédito ou a guia GPS) são “pequenos” e de baixa performance diante das conquistas intergalácticas dos foguetes que não dão ré. Eme também quer mais, acredita que pode mais, mas, neste momento, está sentado no extenso banco de reservas do exército industrial14, olhando para portas fechadas e sente-se suscetível a diversas formas de abuso no mercado de trabalho. A recusa em agarrar-se a qualquer fresta que se abra tem a ver com ganhar um tempo para voltar mais forte.

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Trata-se de um fragmento do documentário Ervilha da fantasia (dir. Werner Schumann, 1985), que está disponível no YouTube.

Recentemente, Eme escreveu um poema sobre não se sentir pertencente à paisagem, mas então percebeu que está incrustado nela. Não apostaria numa definição de poesia como algo antiutilitário, ao passo que enxergar beleza altera nossa perspectiva e nos faz redimensionar o que é realmente importante nessa experiência compartilhada chamada vida. Os poetas também têm seu papel social de acordo com Paulo Leminski, curitibano e publicitário expoente da geração de poetas marginais surgida em 1970. Em um vídeo15, ele diz que “o poeta não é uma excrescência ornamental da sociedade e sim uma necessidade orgânica, porque através da loucura dos poetas, do que eles têm a dizer, que a sociedade respira”.

Este texto só foi possível porque Eme sentiu que era necessário abrir o peito e convidar as pessoas a vocalizar sentimentos que podem ser comuns. Uma vontade de não se perceber sozinho nessa. Eme não tem todas as respostas, mas sabe que essa tem sido sua forma de atravessar o deserto: pensar nos caminhos que ainda pode buscar, nas paisagens que ainda virão a ser tecidas.

O futuro desde então é o teu passado por vir.
Da presença da ausência, de Mahmud Darwich (Tabla, 2020)

1

Em 2012, a Assembleia Geral da ONU votou a favor do reconhecimento da Palestina como “Estado observador não membro”, o que permite a seus representantes que participem de debates, mas sem direito a voto. [N.E.]

A palavra Nakba significa “catástrofe” em árabe, e foi designada pelo historiador sírio Constantin Zureiq para definir o conflito que teve início após a criação do estado de Israel em 1948, quando cerca de 700 mil palestinos foram obrigados a deixar suas casas. Em diversas ocasiões, o título de Estado foi negado à Palestina em votações da Organização das Nações Unidas (ONU)1 – países como Inglaterra, Estados Unidos e França, aliados políticos e econômicos de Israel, se recusaram a conceder à Palestina o status de país independente e soberano. Isso significa que, há 76 anos, os palestinos refugiados vítimas da Nakba são apátridas, ou seja, pessoas sem registro nacional reconhecido. São vistos pelo sistema como integrantes de um povo sem origem, cidadãos míticos de lugar nenhum.

Em 1964, há exatos 60 anos, a Organização para a Libertação da Palestina (OLP) foi fundada com o objetivo de representar o povo na luta pela independência diante do projeto colonialista representado pelo sionismo. Profissionais do campo das artes se juntaram à OLP com a difícil missão de unificar a linguagem artística da Palestina enquanto muitos de seus pares eram dispersos pelo mundo, forçados a emigrar para sobreviver. Segundo a historiadora da arte Samia Halaby, em seu livro Liberation Art of Palestine (H.T.T.B. Publications, 2001):

2

Em casos em que a referência é mencionada em outra língua que não o português, a tradução foi feita livremente pela autora. [N.E.]

Os artistas estavam suficientemente organizados em 1964, de modo que, um dia após a reunião do congresso da Palestina para estabelecer a Organização para a Libertação Palestina (OLP), eles abriram uma exposição em Al-Quds (Jerusalém) para celebrar a ocasião. A exposição teve tanto impacto que as pessoas começaram a pensar na arte como parte do movimento de libertação.2

O uso de tecnologias de reprodução acessíveis e a ausência de direitos autorais ampliaram o alcance das obras [de artistas palestinos] e permitiram que elas fossem facilmente distribuídas e expostas em todos os cantos.

A linguagem apresentada em Jerusalém tinha apelo popular, porque combinava imagens cotidianas – ligadas ao artesanato, ao folclore, à música e à poesia – a símbolos da resistência palestina. O uso de tecnologias de reprodução acessíveis e a ausência de direitos autorais ampliaram o alcance das obras e permitiram que elas fossem facilmente distribuídas e expostas em todos os cantos. 

As artes e a expressão poética têm uma relação inseparável com a luta de libertação palestina, o que torna ainda mais bela a coincidência de que foi justamente um casal de artistas, que se conheceu e se uniu em meio à luta, o responsável pela construção de espaços dedicados unicamente às artes dentro da OLP: Ismail Shammout e Tamam Alakhal.

Ismail Shammout nasceu na cidade palestina de Lydda em 1930, onde foi treinado desde a infância pelo artista Daoud Zalatimo. Ele trabalhou como vendedor ambulante em um campo de refugiados em Gaza até conseguir frequentar uma escola de arte e desenvolver sua longa carreira como pintor no Egito. Ao contrário dos trabalhos de outros artistas de sua época, compostos por imagens sóbrias e estáticas, as telas de Ismail tinham um fluxo dinâmico, uma energia viva, e representavam cenas do cotidiano de resistência palestina.

Tamam, assim como Ismail, pintava histórias do patrimônio e da luta palestina, usava cores vivas e foi influenciada por vanguardas europeias como o impressionismo e o cubismo.

A artista e educadora Tamam Alakhal nasceu na cidade de Jaffa em 1935 e foi uma das primeiras mulheres palestinas a receber formação tradicional em artes visuais. Forçada a emigrar aos 13 anos, viveu em Beirute e depois no Cairo, onde se formou pelo Instituto Superior de Belas Artes em 1957. Tamam, assim como Ismail, pintava histórias do patrimônio e da luta palestina, usava cores vivas e foi influenciada por vanguardas europeias como o impressionismo e o cubismo. Entretanto, sua linguagem se distingue da de Ismail pelo estilo mais abstracionista com forte uso de elementos simbólicos. Entre eles estão o tatreez, conhecido bordado palestino, e o cavalo, um ícone da cultura árabe que representa força e rebeldia. 

Foi no Cairo que Tamam conheceu Ismail e, juntos, se tornaram figuras icônicas da arte palestina. Logo após a fundação da OLP, em 1964, Ismail foi responsável pela criação, em 1965, da Seção de Artes da OLP, que atraiu artistas de todos os movimentos de resistência da região. Ele também foi presidente da União Geral dos Artistas Palestinos (GUPPA) e da União dos Artistas Árabes. Na mesma época, Tamam assumiu a liderança da Seção de Arte e Patrimônio da OLP. Os dois tornaram possível a organização coletiva e ajudaram a direcionar a potência criativa dos artistas que lutavam para manter a história palestina viva na memória popular.

Assuntos palestinos

3

O artigo foi publicado no periódico Journal of Palestine Studies (volume 13, número 3), em 1984.

O autor palestino-estadunidense Edward Said destacou em “Permission to Narrate”3 que um grande problema em estabelecer a história dos povos árabes palestinos é a dispersão. A maioria dos artistas e intelectuais palestinos mais importantes do século 20 ainda eram jovens quando precisaram emigrar e, por isso, passaram a maior parte de suas vidas no exterior. No entanto, o período de exílio e peregrinação não os fez esquecer suas raízes na Palestina e acabou, na verdade, produzindo o efeito contrário:

O sionismo mundial roubou a bandeira e a mudou, roubou o nome e o alterou, roubou nosso lugar nas Nações Unidas, falsificou mapas, enciclopédias e dicionários, e roubou a cultura popular palestina, exibindo-a como israelense. No entanto, não pôde roubar a consciência palestina viva, cuja produção sobreviveu na poesia, literatura e nas artes como um arquivo histórico que cresce a partir dessa terra.

De forma semelhante, o pesquisador Arthur Debsi destaca em um artigo publicado pela Dalloul Art Foundation em janeiro de 2024, intitulado “Safeguarding the Palestinian Collective Memory”:

A rebelião palestina vai além da reivindicação de recuperar um território; é também um grande esforço para evitar o desaparecimento da identidade palestina. É um desafio ainda maior, uma vez que é conduzido por uma população majoritariamente em exílio. Assim, em paralelo aos incontáveis massacres de populações, como é possível resistir à aniquilação de uma cultura, uma história e uma tradição? A arte e a literatura se tornaram ferramentas de mobilização, utilizadas para perpetuar uma narrativa que está em constante perigo de ser esquecida.

Nesse contexto, surge, em 1971, a revista Assuntos Palestinos – em árabe Shu’un Filastinyya –, que se tornou a principal publicação intelectual da OLP e um veículo de difusão de obras visuais criadas por artistas palestinos. Ela trata de temas relacionados à cultura, política, arte e economia da Palestina através de matérias, entrevistas e resenhas de livros e filmes. Logo após sua criação, a revista cresceu e ganhou influência rapidamente – chegou a ser editada por escritores internacionalmente conhecidos, como Mahmoud Darwich e Elias Khoury, ambos autores de produções literárias que já foram traduzidas para o português e publicadas pela editora carioca Tabla.

Da esquerda para a direita: uma das edições da Assuntos Palestinos de 1971 e duas de 1972. Artistas e designers não foram creditados.
Uma edição de 1973 e duas de 1973. Artistas e designers não foram creditados.

As capas da revista cumprem um papel importante no reconhecimento dos artistas palestinos e na representação da história da arte palestina, de forma não apenas estilística, mas também narrativa: através delas, suas histórias podem ser contadas. O ato de observar as capas lado a lado igualmente revela um processo de amadurecimento: os temas, estilos e símbolos mudam à medida que a linguagem, do ponto de vista mais amplo, se consolida. As primeiras capas eram literais, mas com o tempo se tornaram mais subjetivas e poéticas, até que as paisagens e combatentes de guerra foram substituídos por cavalos, pássaros, trabalhos caligráficos e pinturas abstratas. É possível que essa mudança gradual reflita a maneira como os palestinos viam na arte uma expressão de sua luta por direitos políticos: a criatividade que dá origem a outras formas de expressão depende da assimilação de um vocabulário simbólico elementar, da mesma forma como a liberdade depende da garantia de direitos civis básicos.

[Arthur Debsi afirma que] ao incorporar as inspirações modernistas em seus trabalhos, os palestinos o faziam a partir de um sistema de símbolos que compõe o idioma visual da revolução.

A autoria das imagens escolhidas para as capas também mudou com o tempo. Nas primeiras 27 edições, artistas e designers não foram creditados. Informações desse tipo continuaram escassas, com poucas exceções, até o fim dos anos 1970, quando a revista estreitou relações com a GUPPA e passou a usar obras de artistas de todo o mundo árabe, como Jumana El-Husseini, Mohammad Chabaa, Adnan Al Sharif, Ibrahim Hazimeh, Seta Manoukian, Natheer Naba’a, Diaa Al-Azzawi, Kamal Boullata, Sliman Mansour, Abdel Hadi, Mohammed Bushnaq e Emile Menhem. Além disso, as ações globais da GUPPA, como a International Art Exhibition for Palestine (1978), em Beirute, acabaram atraindo artistas estrangeiros solidários à causa, entre eles o pintor alemão Max Ernst, cujo trabalho aparece na capa de uma das edições de 1979. Arthur Debsi afirma, no mesmo artigo, que essa interação com movimentos artísticos como o surrealismo e o dadaísmo é menos uma ocidentalização da arte palestina do que uma “palestinização” da arte ocidental, pois, ao incorporar as inspirações modernistas em seus trabalhos, os palestinos o faziam a partir de um sistema de símbolos que compõe o idioma visual da revolução. Uma breve introdução a essa gramática visual pode ser encontrada no artigo “Symbols in Traditional and Contemporary Palestinian Art”, do pesquisador Kamal Zeidan (Universidade Nacional An-Najah, 2013):

A oliveira: a Palestina é um dos locais de origem biológica da oliveira. Além de sua importância comercial e de sua simbologia religiosa, ela é frequentemente usada para representar a resistência, por ser uma árvore imortal, cujas raízes profundas são capazes de renascer.

A Kufiya: lenço palestino que se tornou símbolo da revolução. Durante o domínio Britânico na Palestina, ele foi usado em manifestações, o que levou à sua proibição, servindo apenas para reforçar seu caráter revolucionário.

A pomba: símbolo universal da paz, da liberdade e do futuro, aparece frequentemente com sua delicadeza, quietude e suavidade; em seu bico, costuma carregar outros símbolos, como a chave e o ramo de oliveira.

A chave: representa o sonho palestino de voltar para casa. Embora boa parte das edificações palestinas tenham sido destruídas e demolidas, suas chaves foram guardadas pelo povo como um amuleto de determinação.

O cavalo: além de desempenhar um papel essencial nas atividades antigas árabes, também representa originalidade, força e rebeldia.

O galo: está ligado ao amanhecer, ao futuro e à promessa de retorno ao território. O galo convida a começar um novo dia e, por isso, guarda a promessa de um amanhecer da liberdade.

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Intifadas são revoluções populares palestinas contra a ocupação israelense.

A pedra: representa a resistência desde a primeira intifada4 em 1987, chamada Intifada das Pedras, quando palestinos usaram pedras como arma contra a ocupação.

A mulher: geralmente mostrada com uma criança junto de si, a mulher representa a fertilidade apesar das duras condições e a gestação de um novo futuro.

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A edição estadunidense de 1977 foi traduzida para o inglês por Inea Bushnaq e seu prefácio foi escrito pelo linguista, filósofo e sociólogo Noam Chomsky.

Do ponto de vista editorial, os organizadores responsáveis pelo sucesso da Assuntos Palestinos e de outras publicações produzidas pelo centro de pesquisa da OLP foram Sabri Jiryis e Anis Sayigh. Jiryis é escritor e advogado, ativista pela causa palestina e autor de The Arabs in Israel (Monthly Review Press, 1977)4, uma publicação – até então sem tradução para o português – importante para o debate sobre a Palestina e o sionismo. Já Sayigh foi historiador, responsável pelo centro de pesquisa da OLP e também um dos criadores da Enciclopédia Palestina. Em 1948, durante a guerra árabe-israelense, a família de Sayigh fugiu para o Líbano, onde ele se formou. Mais tarde, foi professor no Centro de Estudos Orientais da Universidade de Cambridge, na Inglaterra. Em 1972, de volta ao Líbano, Sayigh foi vítima de um atentado israelense. Ele recebeu uma carta-bomba que tirou parte de sua visão e audição. Apesar disso, Sayigh seguiu trabalhando e coordenou mais três publicações, além de ter sido professor de pós-graduação em História na Universidade do Líbano e participado da produção de outras enciclopédias árabes.

Duas edições de 1973 e uma de 1974. Artistas e designers não foram creditados.
Uma edição de 1974 e duas de 1975. Artistas e designers não foram creditados.

Entre os demais escritores e colaboradores da revista, outras figuras notáveis são o jornalista Mahmoud Labadi e o poeta e novelista Ghassan Kanafani, assassinado em 1972, aos 36 anos. Atualmente, cinco dos livros de Kanafani estão disponíveis em português – todos publicados pela Tabla. Entre eles está O pequeno lampião, que o autor escreveu e ilustrou para presentear sua sobrinha Lamis em seu aniversário de oito anos.

[Em Beirute] foram publicadas 136 edições, até que, em fevereiro de 1983, o prédio que abrigava a Assuntos Palestinos sofreu um ataque com carro-bomba que matou oito funcionários da revista e mais dez do centro de pesquisa.

Assim como aqueles que trabalharam em sua redação, a Assuntos Palestinos também viveu como refugiada e habitou diversos lugares. Sua fundação aconteceu em 1971, em Beirute. Lá foram publicadas 136 edições, até que, em fevereiro de 1983, o prédio que a abrigava sofreu um ataque com carro-bomba que matou oito funcionários da revista e mais dez do centro de pesquisa. No artigo “18 Die in Bombing at P.L.O’s Center in Western Beirut”, publicado pelo The New York Times em 6 de fevereiro de 1983, o jornalista Thomas Friedman escreveu:

No momento da explosão, o centro de pesquisa estava em processo de reconstrução de sua biblioteca. Quando o Exército israelense invadiu Beirute Ocidental em setembro do ano passado, as tropas israelenses entraram no centro de pesquisa, desfiguraram seu interior e levaram toda a sua biblioteca, composta por 25.000 obras em hebraico, árabe e inglês sobre a história dos árabes palestinos e da Palestina. Era um dos maiores arquivos do mundo sobre a história palestina.

Após a destruição causada pelo ataque, a revista foi transferida para a Nicósia, no Chipre, e retomada no verão de 1985. Lá, ela seguiu até a edição 245, publicada em agosto de 1993, quando, por razões financeiras, precisou ser fechada. Em novembro de 2011, retomou novamente em Ramallah, cidade na Cisjordânia que é considerada a “capital provisória” da Palestina – para o povo palestino, Jerusalém ainda é a capital a ser reivindicada. A revista existe até hoje, porém não há muitos registros disponíveis on-line sobre as edições mais recentes.

Edições de 1977 por Kamal Boullata e Seta Manoukian. Edição de 1978 por Mohammed Chabâa.
Edição de 1978 por Natheer Naba'a, de 1982 por Bashir Sinwar e de 1986 por Abdel Hadi Shala.

A oliveira

Perguntas: o que quer dizer refugiado?
Dirão: é quem teve as raízes arrancadas da terra
Perguntas: o que quer dizer a “terra”?
Dirão: a casa, a amoreira, o galinheiro, o cheiro de pão, o céu primeiro.
Perguntas: como uma única palavra, de cinco letras, consegue suportar
tudo isso, mas não suporta a gente? 

Da presença da ausência, de Mahmud Darwich (Tabla, 2020)

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Os dados estatísticos foram extraídos dos seguintes veículos, comitês e agências de comunicação, respectivamente: NBC News, Washington Post, Committee to Protect Journalists, Andalou Agency e Middle East Monitor.

Arthur Debsi, autor de “Safeguarding the Palestinian Collective Memory”, afirma que mesmo que a Palestina seja uma terra com milhares de anos de história e habitada por inúmeras civilizações sucessivamente, o ano da Nakba é o mais importante de sua história, a ponto de ser chamado de ano zero. Para o autor e seus conterrâneos, é como se o passado pré-1948 tivesse desaparecido completamente. O trauma da destruição atravessa gerações e precisa ser processado por artistas capazes de transformar fragmentos em história. No dia 8 de outubro de 2024, o início dos ataques à Gaza, que já passou a ser chamado de Segunda Nakba, completou um ano. Os números são aterradores: 186 mil palestinos foram mortos; 1,9 milhão de pessoas foram evacuadas (cerca de 90% da população palestina atual); 129 jornalistas e profissionais de comunicação foram assassinados; 75 toneladas de bombas foram lançadas; 902 famílias foram inteiramente destruídas e tiveram seus registros civis apagados5.

Na década 1960, tomou força na Palestina o conceito de sumud, […] que representa a obstinação no ato de narrar uma história tão difícil de ser contada, que exige novos idiomas, novas formas de escrever.

Se 2023 é um novo ano zero, a nova história a ser contada a partir dele é ainda mais complexa. Ela necessitará de mais mãos, mentes e pincéis, pois os fragmentos de 1948 foram destruídos novamente, antes mesmo que fosse possível recolhê-los e reinterpretá-los. Na década 1960, tomou força na Palestina o conceito de sumud, que significa “perseverança”, uma palavra que se converteu em ideologia e a partir da qual foram criadas estratégias políticas, culturais e artísticas. O sumud representa a obstinação no ato de narrar uma história tão difícil de ser contada, que exige novos idiomas, novas formas de escrever. 

Mas o que acontece quando uma história é contada por uma árvore? O biólogo italiano Stefano Mancuso fala da característica de longevidade nas árvores em seu livro A incrível viagem das plantas (Ubu, 2022). Ele chama as plantas de “cápsulas do tempo”, pois são seres vivos capazes de viver por milênios, sendo as mais importantes espectadoras da – frágil, mortal e efêmera – vida humana.

As árvores são testemunhas da (nossa) história, e a história da Palestina tem como testemunha uma das árvores mais antigas e duradouras do mundo, a oliveira.

Ainda está em pé a macieira da qual caiu a maçã que acertou a cabeça de Isaac Newton (1643-1727) e o ajudou a formular a teoria da gravidade. Estão vivas as árvores que Charles Darwin (1809-1882) observou para escrever A origem das espécies (Ubu, 2018). As árvores são testemunhas da (nossa) história, e a história da Palestina tem como testemunha uma das árvores mais antigas e duradouras do mundo, a oliveira.

A origem da oliveira é tão antiga que se dissolveu no espaço e no tempo. Registros fósseis indicam sua presença em diferentes períodos geológicos e em diversas regiões, que traçam uma longa linha por toda a costa do Mar Negro e do Mediterrâneo. Mas a oliveira como a conhecemos, a versão que é cultivada hoje, tem origem na Síria e na Palestina: seu exemplar mais antigo está localizado em Al-Walaja, uma aldeia palestina, atualmente sob ocupação.

A oliveira não chora e não ri.
A oliveira é a modesta dama da encosta.
Sombra cobre sua única perna,
e ela não tira suas folhas diante da tempestade.
De pé, ela está sentada, e sentada, de pé.
Ela vive como uma irmã amigável da eternidade, vizinha do tempo
Isso a ajuda a estocar seu óleo luminoso
Esqueça os nomes dos invasores, exceto os romanos,
que coexistiram com ela, e tomaram emprestados alguns de seus galhos
Para tecer coroas. Eles não a trataram como uma prisioneira de guerra
Mas como uma avó venerável, diante de cuja calma dignidade
Espadas se despedaçam. Em seu reticente verde-prateado
A cor hesita em dizer o que pensa, e em olhar o que está por trás
O retrato, pois a oliveira não é verde nem prata.
A oliveira é a cor da paz, quando a paz é necessária.
Mahmoud Darwich

A oliveira é simultaneamente símbolo da paz e da resiliência. Na história da arca de Noé, presente tanto na Bíblia quanto no Alcorão, a pomba branca que sai da arca para procurar terra em meio ao dilúvio retorna com um galho de oliveira no bico. O achado do pássaro é um sinal de terra, mas também de trégua: chega ao fim a guerra entre Deus e a humanidade. Incorporada à identidade nacional, a oliveira está gravada na memória coletiva palestina enquanto metáfora de um enraizamento profundo no solo. Mahmoud Darwich e Mahmoud Awad Abbas são apenas alguns dos poetas que escreveram sobre a oliveira. A artista Tamam Alakhal pintou a oliveira em diversos quadros, assim como Khalil Rabah, artista palestino contemporâneo, usa oliveiras em instalações artísticas no deserto. O galho da árvore representa a longa espera pela paz e pelo fim da ocupação, aparecendo com frequência nos cartazes de protesto e na arte de guerrilha. Uma das texturas presentes do Kufiya, lenço palestino que se tornou símbolo de resistência, é formada por folhas da oliveira.

Se as Oliveiras conhecessem as mãos que as plantaram, o seu azeite se transformaria em lágrimas.
Mahmoud Darwich

A raiz da oliveira é o que sustenta o misticismo ao redor de sua sobrevivência. Mesmo quando o tronco é serrado por inteiro, ou até incendiado, a raiz ainda é capaz de fazer brotar um ramo novo.

Em termos botânicos, a força da oliveira é extraordinária. Sua madeira é resistente à decomposição, o formato e a espessura das suas folhas fazem com que elas aguentem ventos fortes, secos e salgados, mas o fenômeno mais notável relacionado a ela é a sua habilidade de renascer. Quando pensamos na imagem de uma árvore, geralmente visualizamos a parte que fica acima da terra, mas do ponto de vista estrutural, a raiz é que é a parte mais importante. Ela coleta nutrientes e informações do solo e indica o caminho – quando e como a planta deve crescer. Além disso, a raiz é o que permanece: durante o crescimento, o tronco e as folhas se regeneram e são substituídos, mas não a raiz. A raiz permanece; ela alarga e alonga, mas seu material vegetal mais acrescenta do que substitui. A raiz da oliveira é o que sustenta o misticismo ao redor de sua sobrevivência. Mesmo quando o tronco é serrado por inteiro, ou até incendiado, a raiz ainda é capaz de fazer brotar um ramo novo. Quando nos conectamos a formas de conhecimento antes não tão considerados, como a cosmologia indígena e a história árabe, esbarramos no princípio de que as árvores podem nos ensinar a contar histórias; e a oliveira, coincidentemente a árvore símbolo da Palestina, conta uma história sobre renascimento, tal qual a fênix mitológica, descrita pelo poeta sufista Farid Ud-Din Attar, no clássico da literatura árabe A linguagem dos pássaros (Attar, 2015):

A Fênix vive cerca de mil anos e sabe exatamente o dia em que vai morrer. Chegada a hora da morte, reúne a sua volta grande quantidade de folhas de palmeira e, desvairada entre as folhas, desfere gritos merencórios. Pelos furos do bico, emite notas variadas, e a música lhe sai do fundo do coração. Suas lamentações expressam a tristeza da morte, e ela treme igual uma folha. Ao som de sua trombeta, os pássaros e animais se aproximam para assistir ao espetáculo, desnorteados, e muitos morrem por lhes faltarem as forças. Enquanto ainda respira, a Fênix bate as asas e eriça as penas, e, com isso, produz fogo. O fogo se espalha pelas copas das palmeiras, e tanto as frondes quanto o pássaro são reduzidos a carvões acesos e, logo, a cinzas. Mas depois que a derradeira chama tremeluz e se extingue, uma nova e pequena Fênix surge das cinzas. Nunca sucedeu a ninguém renascer após a morte?

Quando uma história é contada por apenas uma pessoa, seu alcance é limitado e sua vida relativamente curta, porque acompanha a vida de quem a conta. Para crescer e ir mais longe, histórias precisam de outras pessoas que as recontem e as compartilhem, como as árvores de uma floresta, que compartilham entre si nutrientes e informações através de uma rede que conecta as suas raízes e, pela colaboração, sobrevivem. 

Sobre referências e pesquisas contínuas

Realizei um esforço extra para incluir neste ensaio uma boa quantidade de nomes de pesquisadores e artistas que transformam este material em um bom ponto de partida para novas pesquisas. Então, convido você a deixar-se levar pela curiosidade: pesquise na internet os nomes citados, leia os livros e conheça as imagens. Este texto é uma semente que você pode plantar e, assim, dar continuidade à nobre intenção da revista Assuntos Palestinos: o que é visto, é lembrado, e o que é lembrado, sobrevive.

Todas as imagens e informações principais sobre a revista foram retiradas do site Palestine Poster Project, um projeto on-line que disponibiliza materiais excelentes e livres de direitos autorais. Vale a nota de que, durante a pesquisa para este projeto, parte do site foi derrubada.

Este ensaio foi composto a partir de fragmentos de diversas fontes que não foram citadas diretamente, mas precisam ser reconhecidas. São elas: o projeto de divulgação da cultura islâmica no Brasil História Islâmica, coordenado por Mansur Peixoto; o periódico sobre cultura gráfica e política internacional Signal, do projeto cooperativo de design JustSeeds; e o Centro de Estudos Árabes da Universidade de São Paulo (CEAR-USP).

Ilustração licenciada por Luan Zumbi (@luanzumbi) para ilustrar este ensaio.

1

Dualidade elaborada por Freud na década de 1920. Enquanto a pulsão de vida estaria associada à excitação e à autopreservação, a de morte levaria à estagnação e à inanição. [N.E.]

O projeto (do) humano como uma entidade fixa que (se) constrói hierarquicamente sobre tudo o que falha (propositadamente ou não em sê-lo) é um discurso arbitrário de poder que ocorre simbolicamente nos limiares entre o “eu” e o “outro”. A abjeção – a ojeriza causada pela ameaça de perda da distinção entre o sujeito e o objeto – manifesta-se nesse concomitante “entre” – que aproxima repúdio e fascínio, pulsão de morte e pulsão de vida1, divino e profano.  É o vertiginoso caos identitário entre “o que eu sou” e “o que eu não sou”, uma reação entre o sujeito e o objeto que se manifesta corporeamente durante o colapso da significação – esta sempre antropocêntrica, sempre constituída e orientada pelo projeto de (re)produção do (conceito de) humano. 

2

Understanding Computers and Cognition: A New Foundation for Design, de Terry Winograd e Fernando Flores (Ablex Publishing Corporation, 1986).

3

Designs for the Pluriverse: Radical Interdependence, Autonomy, and the Making of Worlds, de Arturo Escobar (Duke University Press, 2018).

4

Design in Crisis: New Worlds, Philosophies and Practices, editado por Adam Nocek e Tony Fry (Routledge, 2021).

5

O artigo “Ontological Designing”, de Ann-Marie Willis, foi publicado no  periódico Design Philosophy Papers (volume 4, número 2, 2006).

O humano e o design convergem filosoficamente na imposição de um viés tendencioso que admite apenas uma única forma de perceber e construir a existência. Isso impede a eclosão do impossível, de tudo aquilo que tem o potencial de ser de outra forma. Este texto se propõe a re(fletir/analisar/interpretar/pensar) o design ontologicamente, ou seja, em sua compreensão existencial, através de uma teoria pós-humana que parte justamente da perversão da identidade humana, a teoria queer. Ela desestabiliza a forma de projetar (n)o campo simbólico da percepção e pode invocar um possível fim do antropoceno, ao mesmo tempo que aponta para outras e novas trajetórias, relações e formas jubilantes e inimagináveis de ser. Para alguns teóricos do design, como Terry Winograd e Fernando Flores, o design pode ser ontológico porque, “ao projetar ferramentas, nós projetamos as condições de nossa existência e, por sua vez, as condições de nosso design”2. Segundo Arturo Escobar, essas mesmas “ferramentas são fundamentais para a ação e, por meio de nossas ações, geramos o mundo”3. Adam Nocek e Tony Fry complementam citando Anne-Marie Willis, “o humano é um ser que projeta e cujo design, por sua vez, projeta o humano”4,5. Assim, se, ao projetar objetos, projetamos a forma de perceber nossa existência e, portanto, quem somos, projetar um objeto – material, filosófico, físico, conceitual – pode evocar o êxtase pós-humano?

[A teoria queer] desestabiliza a forma de projetar (n)o campo simbólico da percepção e pode invocar um possível fim do antropoceno, ao mesmo tempo que aponta para outras e novas trajetórias, relações e formas jubilantes e inimagináveis de ser.
6

Um corpo estranho: ensaios sobre sexualidade e teoria queer, de Guacira Lopes Lobo (Autêntica, 2018).

Diferente de queer em “estudos queer”, linha que sucede os “estudos gays e lésbicos” e os “estudos LGBT+”, a teoria queer se faz pertinente por conectar o pós-humanismo ao design. Sua qualidade “relacional” procura desestabilizar os significados do domínio fenomenológico pela perversão do desejo, que sustenta tanto o sujeito quanto o objeto (este em seu sentido amplo, do filosófico ao físico e material). Nisto implica-se a discussão crítica pós-humana, interessada em questionar a materialidade histórica passada, presente e futura “para além dos limites do pensável”6 e em desarranjar a forma de pensar das vertentes do design interessadas na cultura material, que historicamente estão fundamentadas na subjetivação normativa entre objetos (novamente filosóficos e/ou físicos) e sujeitos. Nessa relação, a desestabilização simbólica ateada pela crítica queer leva a um estado transgressor, amoral e psicótico de abjeção, que incita uma reação concomitantemente psíquica e material, à medida que emancipa os sistemas e os regimes de significação ao ejetar o “ser” do domínio “sujeito-objeto”.

Será a noção de queer predicada no humano? 

7

Philosophical Posthumanism, de Francesca Ferrando (Bloomsbury, 2020).

Um dos principais pontos de intersecção entre a filosofia pós-humana e a teoria queer é a interrogação “o que é ser humano?”. Ao mesmo tempo que o pós-humanismo relaciona-se intrinsecamente com campos de pesquisa que estudam a produção da diferença e a desconstrução da subjetividade humana como algo fixo, delimitado e “neutro”, a teoria queer tem a normatividade da noção de “humano” como um dos seus principais eixos de crítica. Aproxima-se da retórica anti-humanista, mas não se delimita a tal movimento, porque analisa o funcionamento das normas da sexualidade na constituição do sujeito e das hierarquias humanas para então criticar e desestabilizar as estruturas que sustentam tal subjetividade normatizada e normatizante. Ao mesmo tempo que “o pós-humanismo está em dívida com as reflexões desenvolvidas a partir das ‘margens’ desse sujeito humano centralizado, devido à sua ênfase no humano como um processo, mais do que um dado, inerentemente caracterizado por diferenças e identidades mutáveis”7, a teoria queer induz a um ativismo de emancipação dessa mesma noção de “humano”, que, por sua vez, se sustenta na auto(de)limitação simbólica e hierárquica em oposição cínica à alteridade, ou ao outro que não é o sujeito.

Mas se a crítica queer é inegavelmente pensada por humanos – mesmo que, em sua grande maioria, por humanos que, à sua maneira, não se conformam à norma existencial – será a própria noção de queer predicada filosoficamente na noção de humano? A resposta vai além do sim e do não, ainda que ambos estejam necessariamente implicados na questão. Por um lado, sim, pois há o privilégio da sexualidade e do corpo humano na análise teórica; por outro lado, não, pois há o indeferimento dos valores humanistas no entendimento da constituição da subjetividade. Queer não é um conceito ambivalente ou binário, mas transversal. Ou seja, queer transpõe, passa por, percorre o humano estabelecendo com ele relações relativas, situacionais e instáveis. Não há nada mais queer que um conceito indefinível e indefinidor.

Disso infere-se que queer, por transitar entre o sim e o não em sua relação ontológica com o humano, mostra-se indefinível em sua gênese e tem o potencial e o desejo irreprimível de desestabilizar o conceito de humano. Queer, portanto, não se manifesta como “ser” (não é uma subjetividade), mas como um “fazer” e um “desfazer” coexistentes, um constante devir entre desejo e desvio transitórios, mutantes e ingovernáveis. 

Queer(izar): não aquilo que é, mas aquilo que faz

Desde o estudo de sua etimologia aos seus possíveis desdobramentos materiais (em que se pode incluir o design como meio agenciador), a teoria queer faz-se consistentemente crítica à noção de norma na construção da subjetividade porque devasta quaisquer categorias de identificação por meio da perversão do desejo. Queer refere-se a uma ação espacial que passou a ser utilizada na terminologia sexual para caracterizar sexualidades e gêneros “distorcidos” – incondizentes com uma “linha reta” (straight). Uma das primeiras e mais influentes publicações sobre o tema, o livro Tendencies, de Eve Kosofsky Sedgwick (Duke University Press, 1993), afirma que o termo queer significa “através” ou “do outro lado” e origina-se da raiz indo-europeia “-twerkw” que dá origem ao termo alemão quer (transversal). Em latim, torna-se torquere (torcer, girar, deturpar), e, em inglês, significa thwart (impedir, contrariar, frustrar).

8

Mais um trecho extraído de Um corpo estranho: ensaios sobre sexualidade e teoria queer, de Guacira Lopes Lobo (Autêntica, 2018).

9

Um corpo estranho: ensaios sobre sexualidade e teoria queer.

A origem da teoria queer é frequentemente associada aos acontecimentos do fim da Revolução Sexual, como a ação dos movimentos liberacionistas e gays da década de 1970. Ainda em Tendencies, Sedgwick atesta que queer não está exclusivamente condicionado aos estudos de gênero e de sexualidade identitária, por ser “multiplamente transitório”. É “excêntrico, raro, extraordinário e talvez ridículo,  […] um insulto que tem a força de uma invocação sempre repetida, conferindo um lugar discriminado e abjeto àqueles a quem é dirigido”8. Queer desdobra-se conceitualmente em perverso, indefinível e esquisito; é um causador de instabilidade e desarranjo; um sorriso de deboche como forma de protesto e contestação; uma excentricidade cujo desejo oblitera a integração e a tolerância; “um corpo estranho, que incomoda, perturba, provoca e fascina”9. Uma profanação milagrosa, um milagre profano.

Queer provoca a transformação, o contínuo devir, o abalo da lógica por meio da pulverização, perturbação e desconstrução de discursos hegemônicos e dominantes.

Queer perturba a lógica ocidental que percebe o mundo de forma binária, polarizada e os regimes de significação simbólica (família, Estado, Igreja) que classificam tudo o que existe entre um termo superior, fixo, central e determinado e outro inferior, plural, oposto e subordinado. Queer provoca a transformação, o contínuo devir, o abalo da lógica por meio da pulverização, perturbação e desconstrução de discursos hegemônicos e dominantes. Um ideal, ou mesmo uma necessária utopia de abolição da representação fixa e imutável das subjetividades, queer faz-se um verbo e deve ser entendido em seu sentido pós-/não-/anti-humano, pois desconsidera as taxonomias do especismo que tornam o humano “especial”. Queer renuncia ao excepcionalismo humano no êxtase coletivo da criatividade e da inventividade para minar o privilégio antropocêntrico.

Perversão não(normativa/definível/identitária)

São três os eixos de desestabilização aqui identificados para explicar brevemente a noção de queer: sua não-(ou anti-)normatividade, sua incapacidade de ser definido e sua não-identidade. Queer desdenha de tudo o que é legítimo e dominador para a produção de outras e novas trajetórias sem definir um escopo a priori. O ativismo queer incita o colapso de qualquer normalização, porque se direciona ao desvio e à falência do “eu” com a intenção de aniquilar a construção da subjetividade fixa e imutável sustentada pela delimitação e pela redundância do desejo. Tal processo relaciona-se diretamente à subjetivação (o processo simbólico de tornar-se sujeito) e tem ocorrido historicamente por meio da constituição falocêntrica da heterossexualidade dominante/obrigatória e da produção estruturante de sua alteridade por categorias de sexualidade e de identidade subjugadas.

10

Extraído do capítulo “How Queer Can You Go? Theory, Normality and Normativity”, escrito por Claire Colebrook, que faz parte do livro Queering the Non/Human, editado por Noreen Giffney e Myra J. Hird (Routledge, 2008).

11

Trecho do ensaio “Queer Psychoanalysis / Psychoanalysing Queer”, de Eve Watson, publicado no volume 7 do periódico ARCP, intitulado “Lacan and Critical Psychology” (2009).

Põe-se em causa os modelos psicanalíticos de identidade como projetos de subjetividade antropocêntrica por induzirem “um viés originalmente normalizador, seja postulando o complexo de édipo como a estrutura transcendental para a constituição da subjetividade, seja o falo como o significante da presença”10. De acordo com esses modelos, em geral, os impulsos motivados pelo desejo seriam moldados pela falta primordial que o falo imaginário materializa simbolicamente na forma de um cilindro de carne – um signo de uma heterossexualidade moralmente considerada “correta” e, por muito tempo, obrigatória. Em reação, a teoria queer interroga tal estrutura a partir do ímpeto de criar outras formas em que o desejo se manifesta. Essa contradição à normatização ou a qualquer dominação subjetiva faz parte do “projeto queer de uma desestabilização radical da (hetero)normatividade”11, através de uma abordagem sobre o desejo que seja indeterminável, indefinível, muitas vezes absurda e até impossível, impensável e irrepresentável.

Queer reage aos regimes que eclipsam a pluralidade emergencial das subjetividades, reduzindo o sujeito a uma forma fixa de existência. Ou seja, queer não reconhece nenhuma categoria normativa e, por isso, faz-se indefinido enquanto forma de reivindicação.

Queer reage aos regimes que eclipsam a pluralidade emergencial das subjetividades, reduzindo o sujeito a uma forma fixa de existência. Ou seja, queer não reconhece nenhuma categoria normativa e, por isso, faz-se indefinido enquanto forma de reivindicação. Se queer “define-se” pela sua indefinibilidade ou incapacidade de ser definido e definível, a emancipação que canaliza provém de constituir-se como um conceito que significa tudo e nada ao mesmo tempo. Assim, queer frustra toda e qualquer categoria de subjetividade que poderia ser empregada em processos de submissão, ao minar o seu locus simbólico, a identidade. Por isso, dizer “eu sou queer” é um paradoxo, pois queer corrói justamente a ideia de identidade e suas categorias ao manifestar-se desdenhosamente em contradição a qualquer forma de categorização subjetiva, em especial àquelas que servem à manutenção do lugar de poder antropocêntrico.

12

O termo pink money começou a ser usado nos Estados Unidos na década de 1990 e descreve o poder aquisitivo da comunidade LGBT+. Culturalmente, ele associa o pertencimento à comunidade ao consumo de produtos, muitas vezes estampados com as cores do arco-íris. [N.E.]

13

The Ahuman Manifesto: Activism for the End of the Anthropocene, de Patricia MacCormack (Bloomsbury, 2020).

O termo “queer” aqui empregado não se refere exclusivamente ao uso terminológico empreendido desde a década de 1990 por ativismos e políticas de identidade LGBT+ estadunidenses e hoje mundializados. O uso dessa palavra foi cooptado pelo capital e frequentemente representa a comoditização globalizada que leva ao mascaramento do pink money12, dada a hipermidiatização, a hiperidentificação (narcisismo) e a consequente corrosão do termo em prol de um nicho de mercado que, ironicamente, não beneficia necessariamente as identidades LGBT+, muito menos as que estão sujeitas a maiores riscos e vulnerabilidade. Queer, neste texto, é empregado no sentido de sua genealogia filosófica e de sua crítica teórica incomensurável a qualquer política de identidade. Aqui, o sentido de queer nada tem a ver com a identidade nem com a humanidade, mas com uma “forma de (anti-)identidade filosófica”13.

14

Seduction, de Jean Baudrillard (Palgrave Macmillan, 1991).

15

Philosophical Posthumanism, de Francesca Ferrando (Bloomsbury, 2020).

Queer é uma outra forma de compreender, viver e manifestar o desejo. Um desejo não-faltante, não-falocêntrico, antipatriarcal e não-antropocêntrico: um desejo parricida, que aniquila a ordem e a economia do pai, do simbólico. Esse desejo queer é um desejo perverso porque desdenha do padrão, norma e identidade do que se considera “desejo”. Se “o perverso é aquilo que perverte a ordem dos termos”14, o desejo queer é intrinsecamente perverso. Se queer é uma forma descentralizada e desreferenciada de ser e de imaginar para além das regulações da sociedade, inevitavelmente também incorpora um “paradigma recorrente de abjeção humana”15. Ou seja, na transitoriedade e na instabilidade periférica da significação e da existência, a indiferenciação do desejo opera de forma tão perversa que performa um processo de abjeção cujo objetivo é dilacerar e extinguir o sujeito (opressor) ou qualquer representação simbólica que lhe impeça de existir e tornar-se autônomo.

Abjeção e materialidade na perversão dos objetos de desejo

16

O artigo Traversing Liminality: Gay Leisure Spaces and Identity Formation in Contemporary Chinese Society”, de Chu Xu, foi publicado online em 2023, no periódico Leisure Sciences.

17

Mil platôs – vol. 1: Capitalismo e esquizofrenia, de Gilles Deleuze e Félix Guattari (Editora 34, 2011).

18

O termo aparece no livro Homo Sacer: Sovereign Power and Bare Life, de Giorgio Agamben, que foi traduzido para o inglês por Daniel Heller-Roazen (Stanford University Press, 1998). O autor parte do Direito da Roma Antiga para conceitualizar o homo sacer atualmente. Dada a presença da biopolítica e das formas soberanas de poder, pertencem a essa classificação indivíduos que passam a ser considerados juridicamente excluíveis e tornam-se, portanto, facilmente passíveis à vulnerabilidade e ao abandono social.

Um projeto em design que incorpore a teoria queer tem o potencial de perverter a continuidade unidirecional dos processos de materialização e de objetificação, ambos inscritos à dominação e à normalização dos desejos como bens de mercado ou commodities. Essa perversão ocorre porque queer produz a liminaridade, “um estado de ambiguidade transitória em que a estrutura e a agência se cruzam, ou em que elas existem entre diferentes estruturas”16. A liminaridade despreza e infringe os regimes de normalização através da alteração de sentidos, porque é ambígua e transitória entre o “eu” e o “outro”, entre o sujeito e o objeto. Ela convoca, assim, à experiência abjeta em sua qualidade a-semiótica17, em que o prefixo “a-” propõe uma forma de pensamento rescindida das estruturas de significação baseadas em binarismos acerca do conhecimento. O “a-bjeto” existe em algum lugar entre o conceito de objeto e o conceito de sujeito; no espaço liminar. A abjeção pode ser vista como um processo de emancipação tanto da subjetividade quanto da objetividade, manifestando-se nos (marcadores dos) corpos em desvio e em exclusão social, na materialidade do homo sacer18. Distinta de quaisquer polarizações ou nuances morais, deste processo pode emergir a subjetividade autônoma à humanização, seja “negativamente” pelo repúdio (por exemplo, os indivíduos subjugados por marcas de classe, origem etc.), seja “positivamente” pela autonomia em tornar-se a si próprio de forma incondicionável às “leis” do humano.

Central na abjeção é a perversão do regime de poder e a busca por autonomia. A abjeção localiza-se num estágio pré-linguístico e, portanto, anterior à formação do sujeito e à constituição do desejo. Dentro de regimes de significação estabelecidos no campo simbólico, ambos os desenvolvimentos levam à normalização. Ao compreender o mecanismo da experiência abjeta e ao relacioná-lo metodologicamente a uma abordagem queer no design, é possível conceber outras/novas formas não reprodutivas, insubmissas ao desejo condicionado e fixo, não padronizadas, não normatizadas e normatizadoras e, obviamente, anticapitalistas  de (se) criar e de (se) projetar.

Ao compreender o mecanismo da experiência abjeta e ao relacioná-lo metodologicamente a uma abordagem queer no design, é possível conceber outras/novas formas não reprodutivas, insubmissas ao desejo condicionado e fixo, não padronizadas, não normatizadas e normatizadoras e, obviamente, anticapitalistas de (se) criar e de (se) projetar.

Nem sujeito, nem objeto

19

Do ensaio “Abjection, Art and Bare Life”, de John Lechte, que faz parte da coletânea Abject Visions: Powers of Horror in Art and Visual Culture, editada por Rina Arya e Nicholas Chare (Manchester University Press, 2016).

O abjeto não nega a estrutura do processo de humanização, mas a perverte para criar um sujeito autônomo, singular. Constrói a si próprio pelo uso e apropriação de estruturas de aceitação e rejeição na constituição da subjetividade que “apontam para a possibilidade de uma identificação – positiva ou negativa – em relação à qual o ego está no controle. O abjeto é radicalmente outro em comparação. É o inimaginável, o indizível – aquilo que me agarra pela garganta e me derruba e em relação ao qual não posso fazer nada”19. Para Julia Kristeva, autora de Powers of Horror: An Essay on Abjection (Columbia University Press, 1982), o abjeto é aquele

[…] que perturba a identidade, o sistema, a ordem. O que não respeita fronteiras, posições, regras. O entretanto, o ambíguo, o composto. […] A abjeção é imoral, sinistra, ardilosa e suspeita: um terror que desmembra, um ódio que sorri, uma paixão que usa o corpo para a permuta em vez de inflamá-lo, um devedor que te vende, um amigo que te apunhala…

20

“Introduction: Not I, or, The Abject Objection”, de Maggie Hennefeld and Nicholas Sammond, que abre o volume Abjection Incorporated: Mediating the Politics of Pleasure & Violence (Duke University Press, 2020).

Na revolta contra o sujeito, o ser da linguagem, o abjeto faz da rejeição um sintoma para a (re)construção da linguagem na produção da (própria) cultura. O abjeto não se submete a nenhuma subjetividade para não ser controlado nem manipulado, e é isso o que o difere do objeto, que, por sua vez, existe por meio da hierarquia simbólica submissa em relação ao sujeito. Por outro lado, o objeto e o abjeto convergem à medida que ambos se opõem ao “eu”. O abjeto, porém, não pode ser posicionado nessa oposição linear, porque não é nem sujeito nem objeto – é um não-objeto definitivamente indefinível e transitório. Um “não-objeto queer”. Irrepresentável, indecodificável e sem qualquer forma – amorfo –, o horror semiótico “para aqueles que sentem sua própria subjetividade soberana subitamente ameaçada pelo mero reconhecimento do Outro”20. Em sua estranheza que atormenta, o abjeto é queer por excelência. Em seu ápice, dilui-se com o impossível e com o inimaginável; em sua voracidade, fúria e impiedade, pulveriza o sujeito desde suas entranhas.

21

Powers of Horror: An Essay on Abjection, de Julia Kristeva (Columbia University Press, 1982).

Ao manipular as noções fronteiriças das dicotomias, o abjeto manifesta tanto a morte quanto a vida: rompe os significados e faz das linguagens (poesia, arte, literatura, cinema, design) a ressurreição semiótica do próprio significado por meio de “uma alquimia que transforma o impulso da morte no começo da vida, de uma nova significância”21.

A potência da materialidade abjeta na arte e no design

22

Trecho extraído da monografia de bacharelado The Biomorphic Grotesque in Modernist and Contemporary Painting, de Audrey Howell, apresentada à Claremont Graduate University, da Califórnia, em 2014. O texto na íntegra está disponível online.

A abjeção tem um componente físico em sua teoria, porque a perda de distinção entre o sujeito e o objeto provoca no humano a reação de horror, asco, repúdio: a fratura exposta, o vômito, o esgoto, o cadáver, a merda como signo do êxtase. A materialidade abjeta circunda aquilo que caracteriza um corpo, sujeito ou objeto, enquanto conglomerado material em estado liminar à significação, ou seja, àquilo que já foi constituinte de si, mas não é mais. Uma forma de materialidade (queer), outrora velada por uma fronteira e então revelada por sua ruptura, incita a questionar e imaginar o potencial pós-humano do corpo e de sua agência criativa: “se não soubéssemos como éramos, que formas possíveis um corpo poderia assumir?”.

A reação de horror é o momento em que, concomitantemente, as fronteiras corporal e psíquica são brutalmente reconhecidas na fragilidade de suas constituições.
23

Powers of Horror: An Essay on Abjection, de Julia Kristeva (Columbia University Press, 1982).

O horror à materialidade abjeta demonstra a ameaça psíquica (e a potência extática) que esses materiais evocam, justamente por remontarem a memórias do período de formação da identidade em que o semiótico e o simbólico ainda não haviam sido distinguidos pela linguagem, mas encontravam-se no mesmo universo plural, múltiplo e indiferenciado. A reação de horror é o momento em que, concomitantemente, as fronteiras corporal e psíquica são brutalmente reconhecidas na fragilidade de suas constituições. Materiais que provocam tal reação, como “[…] urina, sangue, esperma, excremento, portanto, aparecem de forma a garantir um sujeito que carece de sua identidade. A abjeção desses fluidos internos torna-se, de repente, o único ‘objeto’ de desejo sexual”23.

24

Abject Visions: Powers of Horror in Art and Visual Culture, editado por Rina Arya e Nicholas Chare (Manchester University Press, 2016).

25

Idem.

Entre a repulsa e o desejo, a materialidade abjeta é utilizada na criação de obras de arte  porque cabe a ela “ocupar o espaço entre a matéria e o significado”24 e, portanto, criar um potencial radical para novas materialidades autônomas ao desejo simbólico. Apesar de irrepresentável dada a sua essência de não-sujeito e não-objeto, o abjeto é evocado, conjurado pela criação, como em um ritual profano de purificação, de forma a romper qualquer significação que possa ser apreendida pelo interlocutor. Com isso, pode-se intencionalmente “explorar materiais básicos para promover uma política sexual radical […] como manifestação de um ‘materialismo insurgente’ que atua ‘contra a repressão social’”25. Considerando-se a importância da noção de historicidade também na arte, a evocação do abjeto está presente desde o famoso urinol de Duchamp (Fountain, 1917), ao Jesus Cristo crucificado imerso em urina de Andres Serrano (Immersion (Piss Christ), 1987) passando pela suposta merda enlatada de Piero Manzoni (Merda d’Artista, 1961), para citar alguns exemplos.

26

Parte da descrição da performance Felt is the past tense of Feel, publicada no site da Australian Catholic University (ACU) em 2006. Traduzida livremente pelo autor.

A visceralidade do material abjeto continua a ser evocada (talvez de forma mais literal em sua materialidade) na arte contemporânea, em obras realizadas ou não por artistas plásticos. A videoperformance Felt is the Past Tense of Feel (2006), de Catherine Bell, é um exemplo da ambiguidade que causa choque, prazer e surpresa – todos indicadores da arte abjeta. Nela, a artista “explora a ideia de emoção reprimida e o porquê de sermos condicionados a engoli-la’ e não a gritá-la. A ação metódica e controlada de sugar a lula desmente a luta histérica traçada no palco, […] a tensão entre a mente que repete o cenário traumático e o ponto em que decidimos resistir ou expurgar a emoção”26.

Na arte e na literatura, o sujeito artista, para proteger-se e purificar-se do abjeto, encontra como única solução sua fusão com a abjeção. Essa experiência estética, semiótica e material de catarse e êxtase poético pode ocorrer também no design, em sua faceta ativista não-antropocêntrica.
27

The Biomorphic Grotesque in Modernist and Contemporary Painting”, de Audrey Howell (Claremont Graduate, 2014).

28

Wasted Lives. Modernity and its Outcasts, de Zygmunt Bauman (Polity Press, 2004).

29

Idem.

Nesse sentido, “tanto a arte abjeta quanto a grotesca têm sido veículos poderosos para os artistas expressarem críticas, frustrações ou protestos contra normas sociais opressivas ao longo do século XX”27. Isso abre precedentes para sua continuidade no século XXI, ou até quando tais imposições normativas ainda estiverem instauradas, não apenas no campo da arte, mas também no campo do design, visto que o ato criativo, de concepção semântica e material em mútua fusão, é das diversas zonas em que tais campos se encontram em intersecção. Na arte e na literatura, o sujeito artista, para proteger-se e purificar-se do abjeto, encontra como única solução sua fusão com a abjeção. Essa experiência estética, semiótica e material de catarse e êxtase poético pode ocorrer também no design, em sua faceta ativista não-antropocêntrica. Vertente que contradiz a lógica de desperdício/descarte em que “[…] para que algo seja criado, outra coisa deve primeiro ser […] despedaçada, triturada e descartada para que não atrapalhe o chão e prejudique os movimentos” de quem cria28. Nessa contradição à lógica humanizadora, o design assume que “não pode haver oficina artística sem um monte de lixo”29. No entanto, esse mesmo “lixo” poderia ser incorporado em sua totalidade, à medida que ele interroga a morte e a vida do objeto na circularidade dos materiais que o compõem; que afronta o sujeito que se sustenta cinicamente sobre o descarte e que interroga a sua própria constituição. Nisso, o design, bem como a arte, pode fundir-se material e semioticamente com o abjeto na formulação emancipadora de um “eu” que me ab(ejeto) para constituir-me como próprio à custa da minha própria morte.

Um design não-antropocêntrico, uma práxis do não-objeto

30

“Queer Posthumanism: Cyborgs, Animals, Monsters, Perverts”, de Patricia MacCormack, que faz parte do livro The Ashgate Research Companion to Queer Theory, editado por Noreen Giffney e Michael O’Rourke (Routledge, 2009).

Um design não-antropocêntrico afiliado à filosofia queer estabelece-se pela agência de sua práxis material aliada a um ativismo coletivo orientado criticamente ao “humanismo e aos estudos tradicionais da sexualidade, da psicanálise à filosofia […] [propondo] desafios não- e pós-humanos ao fechamento dos estudos de identidade e sexualidade que se baseiam na estabilidade da base nível zero ‘humano’, um homem heterossexual branco”30, cisgênero, euro-americano e dono de propriedades.

A noção de coletividade é imprescindível para a interseccionalidade, pois resiste à significação normativa enquanto cultiva a perda do “eu” fixo e identitário, que está fragmentado e fundido ao fluxo do desejo indiferenciado.
31

Idem.

A formação teórica e prática de tal abordagem não-antropocêntrica do design se verifica em encontros, atravessamentos e agrupamentos do coletivo. A noção de coletividade, aliás, é imprescindível para a interseccionalidade, pois resiste à significação normativa enquanto cultiva a perda do “eu” fixo e identitário, que está fragmentado e fundido ao fluxo do desejo indiferenciado. Nesse ativismo que coloca em causa o humano e a humanização, categorias de identidade são temporariamente suspendidas da permuta transitória do desejo individual, que, por sua vez, está condicionado ao “livre-arbítrio” das castrações psicanalíticas e mercadológicas, ao criar “formações híbridas de desejo que resultam do que Deleuze e Guattari chamam de aliança ‘não natural’ do desejo”31.

32

“Introduction: Queering the Non/Human”, das editoras no livro Queering the Non/Human Noreen Giffney e Myra J. Hird (Routledge, 2008).

33

“Queer Posthumanism: Cyborgs, Animals, Monsters, Perverts”, de Patricia MacCormack.

Essas formações coletivas, no emprego de um método queer, “dizem respeito a genealogias, objetivos, prioridades, interconexões com o ativismo e outras teorias e campos”32 e se dão de forma interseccional, por serem compostas por aqueles que outrora eram simbolicamente compreendidos como “desperdício”, “descarte” ou “abjeto” pela subjetividade hegemônica, responsável pela humanização que exclui corpos outros. É essa a potência emancipatória do não-objeto. Do ponto de vista do sujeito, “essas pessoas são consideradas aberrações ou deformidades da evolução humana – monstros, híbridos. Religiosamente, são legiões demoníacas – feminismo, ativistas dos direitos dos animais, outros terroristas políticos da alteridade, política como criação de ‘matilhas’ e outras entidades difamadas”33. Do ponto de vista do objeto, este em seu sentido material e físico, e portanto em direta relação com o design e a arte, trata-se daqueles que incorporam os meios e linguagens do desenho e do projeto de forma não necessariamente tecnológica, nem exclusivamente manual; nem à procura do belo ou do perfeito, nem à procura do choque ou da representação grotesca; nem com o lucro comercial como objetivo nem como hobby; mas sempre a instrumentalizar esse sistema aberto para o agenciamento subjetivo, material e semiótico de seus desejos e potências interconectados para a criação não-reprodutiva do “humano”.

Essa incorporação queer é coletiva, ativista, artística, produtiva, espaço-temporal e transformativa. Não por acaso, Jup do Bairro e Linn da Quebrada, em entrevista a Judith Butler (2021), referem-se à versão latinoamericana de queer, o cuir: o cu que não sou, mas que vou; que ejeto o que a cultura tanto suplica para não ver à custa de sua própria desintegração simbólica; que vou pavimentando o caminho com o excremento das minhas próprias entranhas, vindas do espaço visceral que, quando expostas, ferem a identidade do humano fundamentada na normativa reprodutiva do corpo e da subjetividade. O cu que vou carregando as terminações nervosas do prazer em ser um estraga prazer. O cu que vou produzindo a cultura do cu, que só por ser cu, sou um não-objeto, sem identidade, nem sujeito nem objeto, no limiar do sentido e do significado, uma benção e uma maldição que te aniquilo enquanto te fascino.

34

Posthuman Ethics: Embodiment and Cultural Theory, de Patricia MacCormack (Routledge, 2012).

35

Aspiro ao Grande Labirinto, de Hélio Oiticica (Rocco, 1986).

Se a noção de identidade está intrinsecamente vinculada à reprodução da primazia simbólica do “humano” pela linguagem e pelos discursos que fabricam a mitologia da subjetividade singular, fálica e unificada, a noção de codependência simbólica com a alteridade produzida isomorficamente pela falha de seus objetos (filosóficos, de desejo, materiais – em amplo sentido) é a catarse pós-humana que o queer traz. Uma catarse que demanda deixar de ser humano para abrir o mundo à vida da diversidade indiferenciada. Uma catarse artística do fim do antropoceno que o design queer pode manifestar, pois, segundo Patricia MacCormack, “os encontros com a arte precisam se tornar inumanos, na medida em que a arte é definida como aquilo que afeta ao longo de trajetórias deliberadamente organizadas para alterar a percepção”34. Hélio Oiticica parecia já falar sobre algo semelhante ao afirmar que “só derrubando furiosamente poderemos erguer algo válido e palpável: a nossa realidade”35. A realidade daqueles e para aqueles que, a princípio, nunca tiveram acesso pleno ao status de humano: mulheres, pessoas racializadas, sexualidades dissidentes, imigrantes do sul global, animais não-humanos, ecossistemas… ou seja, toda e qualquer forma de vida e existência ilegítima à “verdade” da forma irredutível do humano. Queerizar o objeto pela interrogação dessas “verdades” que sustentam a reprodução de suas identidades, categorizações, representações e diferenciações é criá-lo fora das epistemologias de significação. O não-objeto perverte, corrompe e expurga a vida e a morte em nome da autonomia sígnica pela pulsão psicótica e incessável do desígnio até a constituição própria de si, semioticamente não-antropocêntrico. À custa de si mesmo, à custa do humano.

Verso da ilustração licenciada por Luan Zumbi (@luanzumbi) para ilustrar este ensaio.

A ilustração que acompanha esse ensaio foi criada por La Minna (@la_minna) especialmente para a Recorte.

Com a disseminação das tecnologias digitais nas últimas décadas, o ser humano tem se desconectado não só da T/terra, mas de si mesmo. Esse processo, porém, não é recente. A civilização ocidental há séculos estabelece e reforça um modelo de pensamento e relação com o mundo que sustenta a desconexão, separando o ser humano do que o senso comum chama de “natureza”. O design tem sua participação nisso, por ser responsável pela concepção de grande parte dos artefatos e interfaces que medeiam nossas interações de diversas maneiras, seja com o ambiente, entre humanos, seja com os demais seres. No contexto atual, marcado por problemas relacionados à saúde física e mental, instabilidade climática, política e social, há um movimento pela busca de formas diferentes de estar no mundo. A reconexão parece ser essencial para essa mudança de orientação.

“Humano versus natureza”, uma ideia que se tornou sólida

Em 2020, ano que marca o início da pandemia de covid-19, que fez milhões de vítimas ao redor do globo e afetou de forma drástica a rotina de grande parte dos cidadãos, outro evento inédito ocorreu: a massa de objetos construídos pela humanidade superou a biomassa terrestre. O estudo “Global human-made mass exceeds all living biomass”, publicado no número 588 da revista Nature naquele mesmo ano, constatou que a massa antropogênica tem dobrado a cada 20 anos ao longo do século XX. A cada semana, produz-se o equivalente ao peso de todos os humanos vivos; a massa de plásticos equivale ao dobro de todos os animais terrestres, enquanto a dos prédios e infraestrutura superou a das árvores e arbustos.

Todas as fotografias foram clicadas por Tanise.

Para alguns estudiosos, o impacto humano no planeta alcançou intensidade suficiente para  definir o início de uma nova era geológica: o Antropoceno. Apesar de não haver consenso quanto à determinação cronológica desse período, ele é marcado pela alteração do clima, da composição atmosférica, do solo, das águas e da biosfera. Além da denominação Antropoceno, outros termos concorrentes são aceitos, como Capitaloceno (que considera o sistema capitalista como o responsável pela crise ambiental) e Plantationceno (que destaca a colonização e a colonialidade como processos centrais na degradação do meio ambiente). Independentemente de nomenclatura e datação, é impossível negar que o “domínio humano sobre a natureza” afetou de forma implacável o ecossistema terrestre. Além disso, submeteu as pessoas a uma forma cruel e desencantada de estar no mundo.

Tamanha destruição só pode ser justificada por uma alta dose de insensibilidade – que é intrínseca a sistemas políticos e econômicos que praticam o extrativismo, a monocultura e a colonização. Esse estado de torpor, por sua vez, está atrelado a uma desconexão profunda. Em um mundo orgulhoso em classificar-se como conectado, é importante se questionar: a que essa suposta conexão se refere? Enquanto o termo é usado de forma ampla – para não dizer excessiva – pelos departamentos de marketing das grandes corporações, as camadas que separam o ser humano da T/terra tornam-se ainda mais numerosas e cada vez mais extensas, grossas, rígidas, tanto em sua forma material quanto imaterial.

A ideia europeia de superioridade do homem foi imposta à força em todos os continentes, através da colonização, caracterizada pelo domínio, conquista, exploração, extração, extermínio e aculturação de outros povos.

Em algum momento de sua história, o ser humano parece ter se descolado da T/terra. O mais provável é que esse tenha sido um longo processo, que se iniciou a passos lentos e foi ganhando velocidade exponencial até decolar na velocidade dos mais ágeis foguetes, caças e mísseis. Historicamente, a divisão entre humano e natureza ganhou evidência na Idade Moderna, com o Renascimento e o Iluminismo que colocaram o ser humano no centro de tudo, com seu racionalismo, cientificismo e individualismo. Esses movimentos têm lugar e data: Europa, metade do século XIV e início do século XVII, respectivamente. Porém, não se limitaram a esse espaço e tempo. A ideia europeia de superioridade do homem foi imposta à força em todos os continentes, através da colonização, caracterizada pelo domínio, conquista, exploração, extração, extermínio e aculturação de outros povos. Essa força destruidora seria mais tarde intensificada pela industrialização, pelo liberalismo e pela globalização. Philippe Descola, antropólogo francês, afirma no livro Outras naturezas, outras culturas (Editora 34, 2016):

Para que se possa falar de natureza, é preciso que o homem tome distância do meio ambiente no qual está mergulhado, é preciso que se sinta exterior e superior ao mundo que o cerca. Ao se extrair do mundo por meio de um movimento de recuo, ele poderá perceber este mundo como um todo.

[…] a partir do momento em que nos habituamos a representar a natureza como um todo, ela se torna, por assim dizer, um grande relógio, do qual podemos desmontar o mecanismo e cujas peças e engrenagens podemos aperfeiçoar. 

Assim, a percepção de que existe uma humanidade e uma natureza, e que aquela é superior a esta, foi usada como um argumento fundamental para a contínua destruição da natureza em favor do progresso humano. Em seu livro Estar vivo: ensaios sobre movimento, conhecimento e descrição (Vozes, 2015), o antropólogo Tim Ingold discorre sobre a importância da postura bípede para os humanos, estabelecendo um vínculo entre a biologia e a separação homem-natureza:

Enquanto os pés, impelidos pela necessidade biomecânica, embasam e impulsionam o corpo para dentro do mundo natural, as mãos estão livres para entregar os projetos inteligentes ou concepções da mente sobre ele: para os primeiros, a natureza é o meio através do qual o corpo se move; para o último, apresenta-se como uma superfície a ser transformada. 

Claramente, há diferenças importantes entre os humanos e os demais seres, porém elas não deveriam legitimar uma ruptura. Da mesma forma, as diferentes formas de vida – animais, vegetais, fungos e bactérias – possuem maneiras muito distintas e singulares de inteligência e agência. São as relações entre eles, e deles com o ambiente, que estabelecem o equilíbrio na biosfera terrestre. O ser humano não escapa dessa realidade. O processo de criação e evolução colaborativa entre seres vivos e ambiente é estudado pela filósofa estadunidense Donna Haraway, que cunhou o termo “simpoiesis”, que significa fazer-com [making-with]. Em Quando as espécies se encontram (Ubu, 2022), ela diz:

Adoro o fato de que genomas humanos sejam encontrados em apenas cerca de 10% de todas as células que ocupam o espaço mundano que chamo de meu corpo; os outros 90% das células são preenchidos pelos genomas de bactérias, fungos, protistas, e tais, alguns dos quais tocam uma sinfonia necessária para que eu esteja viva e outros que estão de carona e não causam a mim, a nós, nenhum dano. Sou em vasta medida excedida numericamente por meus diminutos companheiros; melhor dizendo, devenho um ser humano adulto em companhia desses diminutos comensais. Ser um é sempre devir com muitos.

O fato é que além da divisão entre humanos e não humanos, foram criadas também divisões entre nós mesmos. Essas inúmeras divisões dicotômicas, binárias – bom versus mau, civilizado versus selvagem, eu versus outro –, além de determinarem uma perspectiva reducionista e limitada, possuem a característica de sempre colocar um como superior ao outro. 

Enfim, a divisão “humano versus natureza” é uma invenção solidificada e exportada por humanos modernos. Certamente, o grupo “humanidade” é um clube exclusivo, como aponta Ailton Krenak. Em Ideias para adiar o fim do mundo (Companhia das Letras, 2019), o filósofo e ambientalista questiona: “por que insistimos tanto e durante tanto tempo em participar desse clube, que na maioria das vezes só limita a nossa capacidade de invenção, criação, existência e liberdade?”.

O design e a modernidade

O design como profissão surge em um contexto industrial e tem como alicerce a separação entre as fases de projeto e produção. Com origens operárias, a figura do designer passou a exercer exclusivamente o trabalho de planejamento e concepção. Isso ocorreu devido à constatação pelas indústrias do valor do design: o segredo e a exclusividade eram instrumentos de vantagem comercial.

Transformações na organização industrial e, consequentemente, no trabalho, como a produção seriada através de moldes, a mecanização de processos e a extrema divisão de tarefas foram essenciais para o surgimento do design como conhecemos hoje.

Assim, transformações na organização industrial e, consequentemente, no trabalho, como a produção seriada através de moldes, a mecanização de processos e a extrema divisão de tarefas foram essenciais para o surgimento do design como conhecemos hoje. Em uma escala mais ampla, Rafael Cardoso aponta em Uma introdução à história do design (Blucher, 2008):

O design é fruto de três grandes processos históricos que ocorreram de modo interligado e concomitante, em escala mundial, entre os séculos XIX e XX. O primeiro destes é a industrialização: a reorganização da fabricação e distribuição de bens para abranger um leque cada vez maior e mais diversificado de produtos e consumidores. O segundo é a urbanização moderna: a ampliação e adequação das concentrações de população em grandes metrópoles, acima de um milhão de habitantes. O terceiro pode ser chamado de globalização: a integração de redes de comércio, transportes e comunicação, assim como dos sistemas financeiro e jurídico que regulam o funcionamento das mesmas. Todos os três processos passam pelo desafio de organizar um grande número de elementos díspares – pessoas, veículos, máquinas, moradias, lojas, fábricas, malhas viárias, estados, legislações, códigos e tratados – em relações harmoniosas e dinâmicas. Conjuntamente, esse processo pode ser entendido como um movimento para integrar tudo com tudo. Na concepção mais ampla do termo “design”, as várias ramificações do campo surgiram para preencher os intervalos e separações entre as partes, suprindo lacunas com projeto e interstícios com interfaces.

De fato, desde o seu surgimento, o design se expandiu, abrangendo vários “pontos de contato” do ser humano com o mundo. Ele acompanhou e contribuiu para viabilizar as mudanças que ocorreram desde então, como o desenvolvimento das metrópoles, das grandes corporações, de novas tecnologias e materiais e, mais recentemente, do boom digital. Através de processos e ferramentas cada vez mais precisas e com finalidades objetivas, designers desenvolvem projetos que atendem a problemas ou oportunidades comerciais que não são necessariamente reais ou genuínas, muito pelo contrário.

Em 1971, o designer, educador e ativista social Victor Papanek, no livro Design for the Real World: Human Ecology for Social Change (Thames & Hudson, 1985), enfatizou a necessidade de designers assumirem a responsabilidade pelos impactos sociais e ambientais de seu trabalho.

1

A menos que a referência tenha sido descrita em português, os trechos citados neste ensaio foram traduzidos livremente pelo autor. [N.E.]

Nunca antes na história homens adultos se sentaram e projetaram seriamente escovas de cabelo elétricas, calçadeiras cobertas de strass e carpetes de vison para banheiros, e depois fizeram planos elaborados para fabricar e vender esses aparelhos para milhões de pessoas1.

Nesse trecho do prefácio do livro, Papanek aponta para o absurdo representado pela utilização de esforço humano e recursos naturais para a criação e venda de objetos que não deveriam sequer existir. Porém, apesar de suas críticas e sugestões, a prática do design permanece a mesma até os tempos atuais. Quase 50 anos depois, o antropólogo e ativista ambiental colombiano Arturo Escobar escreveu o seguinte em Designs for the Pluriverse (Duke University Press, 2018):

[…] muito do que acontece sob o pretexto de design atualmente envolve uso intensivo de recursos e vasta destruição material; o design é central para as estruturas de insustentabilidade que baseiam o mundo contemporâneo, o chamado mundo moderno. 

Além de ter uma participação direta na destruição ambiental do planeta, o design participa ativamente na manutenção de um modelo de pensamento e relação com o mundo que propicia o consumo crescente. O design é urbano, mas não só isso, ele compõe um sistema de signos que está além da realidade material e é capaz de moldar o comportamento humano. Jean Baudrillard tinha muito a dizer sobre isso quando escreveu o livro Simulacros e simulação na década de 1980 (Relógio d’Água, 1991).

Cada um de nossos objetos práticos se associa a um ou vários elementos estruturais, mas por outro lado escapam continuamente da estruturalidade técnica para as significações segundas, do sistema tecnológico dentro de um sistema cultural. O meio ambiente cotidiano permanece, em larga medida, um sistema “abstrato”: nele os múltiplos objetos acham-se em geral isolados de sua função, é o homem que lhes assegura, na medida de suas necessidades, sua coexistência em um contexto funcional […]. 

Sobre a funcionalidade, Baudrillard afirma:

[…] o termo funcional não qualifica de modo algum aquilo que se adapta a um fim, mas aquilo que se adapta a uma ordem ou a um sistema: funcionalidade é a faculdade de se integrar em um conjunto. Para o objeto, é a possibilidade de ultrapassar precisamente sua “função” para uma função segunda, de se tornar elemento de jogo, de combinação, de cálculo, em um sistema universal de signos.Esses signos, refinados e reforçados continuamente e coletivamente, adquirem coerência e um caráter de naturalidade, de realidade ou, para usar o termo de Baudrillard, de hiper-realidade: “geração pelos modelos de um real sem origem nem realidade”. Essa é a ordem do consumo, que se desenvolve às custas de todas as formas de vida, mesmo as humanas. Em Antropofagia zumbi (N-1 Edições, 2021), Suely Rolnik afirma que, na sociedade atual, a autoestima dos indivíduos depende de uma hierarquia imaginada na qual eles são julgados e medidos uns contra os outros, constituindo um sistema de comparação que se torna cada vez mais poderoso, como se fosse inevitável.

Existe uma relação de codependência entre o design e o modo de vida capitalista. O isolamento, nesse contexto econômico e social, não é uma consequência, e sim um aspecto fundamental: separado da “natureza” e entre sua própria espécie, o ser humano se depara com um vazio irremediável.

Projetando um mundo desejável

“Em que mundo você gostaria de viver? Como ele seria?” Essas perguntas não são feitas com a frequência que deveriam. Nascemos em um modelo social, político e econômico predeterminado, indiferente aos nossos instintos, sensações, pensamentos e desejos; hegemônico, inimigo da autonomia; e assolador de encanto, imaginação e esperança. Mas assim como todos os modelos, ele não é eterno. Nos resta tentar definir o que virá em seguida.

É urgente questionarmos a atual configuração e nos permitirmos conceber uma nova realidade, para que possamos projetar a partir de nossas verdadeiras necessidades e aspirações – como pessoas que fazem parte de um ecossistema, e não como usuários e consumidores.

Num tempo em que visões apocalípticas dominam o imaginário individual e coletivo sobre o futuro, mundos desejáveis tornam-se cada vez mais distantes e improváveis. Justamente por isso a pergunta “em que mundo você quer viver?” é tão importante. É urgente questionarmos a atual configuração e nos permitirmos conceber uma nova realidade, para que possamos projetar a partir de nossas verdadeiras necessidades e aspirações – como pessoas que fazem parte de um ecossistema, e não como usuários e consumidores.

2

O ensaio da Recorte Ano 3 “Cansado de viver o fim do mundo: dicas para romper com o realismo capitalista”, de Eduardo Souza, foi inspirado pelo livro Realismo capitalista, de Mark Fisher (Autonomia Literária, 2020) e é uma leitura fundamental para aqueles que se sentem presos à lógica do capital, mas têm dificuldade de imaginar outras realidades. [N.E.]

No campo do design, uma abordagem pouco conhecida, que se volta contra a lógica capitalista de produção e mercado parece despontar. O design especulativo, descrito por Anthony Dunne e Fiona Raby no livro Speculative Everything: Design, Fiction, and Social Dreaming (MIT Press, 2013), abre caminho para o uso do design enquanto ferramenta para a investigação de futuros possíveis. A área possui grande potencial para iniciar debates e proporciona alento ao expandir horizontes. Porém, as criações que derivam desse novo campo, até agora, tiveram alcance restrito e, na maioria das vezes, não conseguem escapar do pessimismo. De certa forma, ainda estamos presos aos modos de fazer motivados pelo consumo, o que dificulta a elaboração de propostas que consigam ser mais que críticas ressentidas ao capitalismo. Ou seja, nossos projetos, por mais que tentem apontar para o futuro, ainda estão ancorados à hegemonia do agora2. Mas outras perspectivas precisam ser consideradas.

Os povos originários, que há séculos resistem à colonialidade, nos mostram que existem outras formas de nos relacionarmos com a T/terra. Por exemplo, sem a noção de posse (para eles, a T/terra não é nossa, nós é que somos da T/terra) e sem exclusividade humana (para eles seres não humanos e entidades naturais também têm agência). Confluir com esses povos pode ser um ponto de partida para mudarmos de orientação, rumo a maneiras sustentáveis de habitar o planeta. 

A virada de chave está em recuperarmos a consciência vital de que somos parte de uma dança cósmica. Enquanto prevalecer o pensamento dual exclusivista inventado pelo humano moderno, ele estará fadado a consumir a T/terra, em uma tentativa desesperada de preencher o vazio deixado por ter-se separado dela. O tempo em que vivemos implora por uma mudança radical: a dualidade precisa ruir, criando espaço para a pluralidade. Quanto aos meus desejos para o novo mundo, eles têm a ver com simplicidade, afeto, cuidado, comunidade e arte. E os seus?

Este ensaio quer aproximar o design da discussão sobre fotolivros. O assunto é debatido pelas artes visuais, literatura e comunicação, mas segue limitado dentro do design – somente alguns raros textos e pesquisas recentes foram publicados a respeito. Também é um exercício para tornar minha pesquisa sobre o tema mais acessível fora dos cânones acadêmicos. Os apontamentos aqui reunidos transitam entre os campos da fotografia e das artes visuais, entrelaçados ao do design, formando, assim, um conjunto indissociável. Exponho pontos de vista e argumentos de pesquisadores, críticos e artistas, para ampliar a percepção a respeito do tema.

O fotolivro é, portanto, o suporte dessas relações interdisciplinares e objeto fundamental para se pensar a fotografia e o livro; a fotografia e o texto; a fotografia e o gráfico. Como Adolfo Navas expõe em Fotografia & poesia [afinidades eletivas] (Ubu, 2018) e Horacio Fernández organiza e descreve em Fotolivros latino-americanos (Cosac Naify, 2011), fotolivros dão acesso à memória, à experiência e à percepção de mundo, e penso que o design é um elemento-chave nessas narrativas visuais, quando também se reconhece como imagem.

***

Fotolivros estão em evidência, ocupam espaços de importância nos circuitos das artes visuais e gráficas, assim como no da fotografia contemporânea. No Brasil, a criação e produção desse tipo de publicação é bastante expressiva apesar das barreiras do mercado editorial, que, em geral, demanda altas tiragens e pressupõe estratégias complexas de distribuição. Nos últimos 10 anos, no entanto, elas vêm ganhando mais espaço em editoras, livrarias, feiras, exposições, sites e redes sociais. A ampliação desses espaços pode ser atribuída a feiras de publicações independentes, como Tijuana e Feira Plana, e a festivais, como Imaginária e Zum.

O que são fotolivros? Essa é a principal questão, e é a partir dela que conduzo a ideia de que, para cada fotolivro criado e produzido, diferentes argumentos podem ser elaborados, já que, em cada um deles, diferentes sujeitos, linguagens, técnicas e meios de circulação e exposição são utilizados. Marina Feldhues, pesquisadora e autora de Fotolivros – (in)definições, histórias, experiências e processos de produção (Editora UFPR, 2021), compreende, em geral, que fotolivros são livros fotográficos temáticos que contam e mostram subjetividades. Uma definição já suficiente para começar o debate.

Embora o termo fotolivro seja utilizado largamente nos circuitos das artes, não há consenso sobre sua definição, longe disso. Por envolver tantas linguagens e sofrer tanto generalizações quanto reduções, sua caracterização é fugidia e acaba variando muito entre autores.

Mas qual é o termo correto: fotolivros ou livros fotográficos? Livros fotográficos são livros de fotografia? E os livros de artista? Fotolivros não seriam, então, livros de artistas que fotografam? Dá para fazer muitas perguntas, mas quase sempre chegamos às mesmas respostas. Embora o termo fotolivro seja utilizado largamente nos circuitos das artes, não há consenso sobre sua definição, longe disso. Por envolver tantas linguagens e sofrer tanto generalizações quanto reduções, sua caracterização é fugidia e acaba variando muito entre autores. Por conta disso, apontarei algumas das maneiras possíveis de defini-lo ou compreendê-lo. 

Uma definição não conclusiva, mas que serve como introdução para aqueles que não têm familiaridade com o tema, parte do Getty Research Institute e do Art & Architecture Thesaurus. Fotolivros são livros, com ou sem texto, nos quais a informação essencial é veiculada por um conjunto de imagens fotográficas. Não são álbuns de fotografia, pois as imagens em um fotolivro constituem um conjunto que configura uma narrativa visual, ou seja, se fossem embaralhadas contariam uma história diferente. O fotolivro seria, portanto, uma obra autônoma, temática e autoral, em que as fotografias estão no livro como componentes de um todo. 

Outra definição, mais usual, complementa a primeira. Horacio Fernández, em sua publicação de pesquisa Fotolivros latino-americanos, afirma que fotolivros são livros fotográficos de expressão e criação, que envolvem diferentes profissionais e devem ser qualificados como arte. Além da fotografia e do livro, outros elementos podem ser discutidos e esmiuçados, sendo eles o texto, o design, a materialidade e a produção. Essa multiplicidade de elementos reforça a ideia de que selecionar, editar e ordenar fotografias em páginas é fundamental para a narrativa visual da obra. O design tem destaque aqui.

Em um fotolivro, vejo fotografias, claro, mas também vejo espaços vazios, textos, formas, cores – manipulo a capa – abro o livro, folheio as páginas, me fixo em determinadas imagens, me distraio em outras, faço associações entre elas.

Neste ponto, num esforço em responder de que maneira as relações entre design e imagem acontecem em fotolivros, parto da premissa de que design também é visualidade. Pois em um fotolivro, vejo fotografias, claro, mas também vejo espaços vazios, textos, formas, cores – manipulo a capa – abro o livro, folheio as páginas, me fixo em determinadas imagens, me distraio em outras, faço associações entre elas. O design – mais especificamente, o design gráfico – é responsável por criar relações entre todos esses elementos visuais e materiais que coexistem no fotolivro.

Centro (2014) de Felipe Russo. Design por Beatriz Matuck. Fotografias de Julia Thompson.

Gerry Badger, em seu artigo “Por que fotolivros são importantes” publicado na Revista Zum #8 em abril de 2015, define o fotolivro como um tipo particular de livro em que “as imagens predominam sobre o texto e em que o trabalho conjunto do fotógrafo, do editor e do designer gráfico contribui para a construção de uma narrativa visual”. Adolfo Navas reforça essa ideia e percebe o fotolivro como um tipo específico de obra que propõe uma experiência visual e se define pela relação estreita entre a fotografia, o livro e o design. Ou seja, na criação e na produção de um fotolivro, o artista ou fotógrafo não deveria estar sozinho, sendo o designer um agente indispensável na articulação desses elementos.

As decisões de design em um fotolivro, como o tamanho de uma fotografia na página, seu alinhamento e escala; a quantidade de fotografias, o tamanho das margens ou mesmo o posicionamento dos textos, influenciam diretamente na narrativa visual da obra. Espaços vazios podem sugerir contemplação, enquanto imagens justapostas ou sangradas criam mais intensidade. Essas escolhas definem contraste, ritmo, movimento, equilíbrio e hierarquia, mas também emoções, sensações e memórias acessadas por meio do design como uma estrutura que informa ao mesmo tempo que sensibiliza.

Penitentes: dos ritos de sangue à fascinação do fim do mundo (Tempo d'Imagem, 2019) de Guy Veloso. Design por Beatriz Matuck. Fotografias de Julia Thompson.

Outra definição de fotolivro, mais inclinada às artes visuais, tem o livro de artista como ponto de partida. Paulo Silveira, influente na pesquisa acadêmica, faz críticas ao uso do termo fotolivro e prefere o termo livro fotográfico. Essa distinção ocorre quando o livro fotográfico é produzido em um ambiente artístico, como um livro de artista, concebido por um artista fotógrafo ou um artista que fotografa. O termo fotolivro, para Silveira, embora seja cada vez mais usado e validado, está associado diretamente à sua tradução literal do inglês – photobook – e pode ter apenas pretensões mercadológicas. Tento me descolar dessa tese.

O fotolivro tem a capacidade particular de aglutinar e expor a cultura visual de qualquer lugar.

Penso que a palavra fotolivro, por ser uma tradução literal, carrega, sim, traços socioculturais estadunidenses ou de países europeus, mas também percebo que seu uso frequente é consequência de uma adaptação espontânea e independente, que decorre da democratização desse tipo de publicação em países latino-americanos, em especial no Brasil. O fotolivro tem a capacidade particular de aglutinar e expor a cultura visual de qualquer lugar. No Brasil, ele é uma categoria de livro de fotografia específica, que, mesmo “contaminada” do ponto de vista linguístico, faz parte de algo além de discussões locais.

Também ando perdido esses dias (2021) de Guilherme Freire e Vítor Ramos. Design por Beatriz Matuck. Fotografias de Julia Thompson.

Silveira se refere ao livro de artista como um livro-obra, em que o artista usa diferentes linguagens de maneira autônoma e original. Pode vir a ser um livro-objeto ou um livro-experimental, seja uma peça única ou reproduzida em escala. Aquilo que está no livro foi pensado especificamente para aquele volume, tornando-o um objeto de expressão. O objeto transforma-se, assim, em um produto da arte contemporânea, seja ele um livro ilustrado ou um livro escultura. A fotografia, quando presente, é apenas mais uma de tantas possibilidades artísticas. 

O pesquisador e artista Amir Cadôr amplia um pouco mais essa questão, e se destaca por não fechar totalmente a definição do que é um livro de artista, por entender que “livros de artista não se deixam encerrar facilmente em uma simples definição”. Ele defende a ideia de que existem aproximações e distanciamentos entre livros de artista e fotolivros, mas que os termos não são equivalentes. Para Cadôr, livro de artista é uma categoria muito abrangente que comporta o fotolivro, mas nem todo fotolivro é um livro de artista: “todo livro de artista tem um artista como autor, mas nem todo fotolivro tem como autor um artista”. Me aproximo dessa tese.

As aproximações e distanciamentos entre livros de artista e fotolivros são instáveis, nada óbvias. E é justamente essa ambiguidade que enriquece a discussão.

Feldhues traz outras percepções, pois muitos “fotolivros de hoje são livros de artista, tendo sido eles feitos por autores que se denominam artistas e fotógrafos”. Por isso, no que diz respeito à autoria, é sempre importante analisar a obra e dar voz ao autor, quando possível. Andrew Roth, historiador, é mais categórico e não acredita na oposição entre livros de artista e livros fotográficos. As aproximações e distanciamentos entre livros de artista e fotolivros são instáveis, nada óbvias. E é justamente essa ambiguidade que enriquece a discussão. 

Quando trago o design para a discussão acerca da definição de fotolivro, não o restrinjo à diagramação ou à concepção de um projeto gráfico. Se fotolivros, de maneira geral, dependem de fotografias dispostas em páginas para existir, o designer, ao estruturar a narrativa e sensibilizar o leitor, torna-se coautor, ao lado do artista que fotografa. A condição do designer enquanto autor é debatida por Michael Rock na revista Design Observer de 1996, quando afirma que cada ação executada em um projeto gráfico tem efeito na leitura do livro. Assim, abordagens subjetivas e até intuitivas em projetos gráficos de fotolivros são articulações que excedem a prática de diagramar. Na geração de sentido da obra, o design faz e é – ao mesmo tempo e no mesmo espaço – uma experiência visual e material – uma experiência relacional.

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Esta discussão não se encerra aqui e pode ser revisitada de outras maneiras. Continuo a pesquisa enquanto encerro este ensaio e, mesmo sem escolher uma definição pragmática ou definitiva para o termo fotolivro, sugiro uma ampliação da percepção do design enquanto visualidade. Como o crítico contemporâneo Rick Poynor explica, é possível pensar o design em diversos contextos, pois o design é relacional, diverso, complexo, paradoxal e percebido visualmente. Em tempo, como Gui Bonsiepe expôs na palestra “Design e a crise” (2012), se o design está “predominantemente no domínio da visualidade” e intimamente “entrelaçado com a experiência estética”, abrem-se brechas para outras definições de fotolivro. Cabe a nós colocá-las no papel.