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26 de novembro de 2024

Tá pago? A cultura do desempenho e algumas formas de se recusar a ela

Pintura a óleo Sisyphus, de Tiziano Vecellio (1548-1549)

1

Hans Magnus Enzensberger (1929-2022) traduzido por Daniel Arelli em Destinatário desconhecido: uma antologia poética (1957-2023) (Círculo de Poemas, 2024).

Instrução para Sísifo

O que você faz não tem futuro. Certo:
você entendeu, admita,
mas não se dê por vencido,
homem da pedra. Ninguém
vai te agradecer; as linhas de giz
que a chuva lambe indolente
marcam a morte. Não vá se alegrar
antes da hora, não se faz carreira
com o que não tem futuro. Só monstros,
espantalhos e adivinhos vivem à vontade
com a própria tragédia. Cale-se,
troque uma palavra com o sol
enquanto a pedra rola, mas
não se deleite com a sua impotência,
acrescente à ira do mundo
cem quilos, um grão.
Faltam homens que façam
em silêncio o que não tem futuro,
arrancando como mato a esperança,
seus risos, o porvir, rolando,
rolando sua ira montanha acima.1

2

A expressão anglófona method acting é usada para descrever um tipo específico de atuação, na qual ator e personagem devem mesclar-se física e emocionalmente, mesmo longe das câmeras. Em analogia, muitos designers acreditam que precisam “viver o design” 24/7, ou seja, dentro e fora do horário de trabalho. [N.E.]

De todas as definições que podem ser atribuídas à palavra design, método é aquela que revela uma de suas vocações: a atuação2. A teatralidade parece ser uma especialidade do design: imagens cintilantes, objetos que posam para as câmeras, pessoas produzidas para representar um produto, uma marca, uma instituição. Cenários falsos. Todo esse aparato reforça a malha à qual nós e os objetos que criamos estamos costurados. Designers, diretores de arte, redatores, fotógrafos, videomakers, arquitetos, entre muitos outros, são responsáveis por coreografar espetáculos por vezes movidos pelo  Estado da Arte, mas sempre subordinados ao Delírio do Capital. Daqui em diante consideremos o design, sobretudo, como um método de atuação. Merda pra você!3

Batendo o ponto, entrando em cena

3

No teatro, é comum que atores e membros da equipe desejem “merda” uns aos outros. A expressão equivale a dizer “boa sorte”. [N.E.]

4

Pude conferir a obra de Hsieh pessoalmente, através do projeto de itinerância da 30ª Bienal de São Paulo – A iminência das poéticas, realizada de 7 de setembro a 9 de dezembro de 2012 na capital paulista, e exposta em Belo Horizonte de 17 de janeiro a 17 de março de 2013.

5

Sugiro o vídeo (em inglês) “Tehching Hsieh: One Year Performance 1980-1981”, disponível no canal australiano Das Platforms no YouTube.

6

O artigo de opinião “The Rigour of Tehching Hsieh’s One Year Performance” foi publicado em maio de 2023 na edição 235 da revista Frieze. Os trechos que aparecem aqui foram traduzidos livremente por mim.

Entre 1980 e 1981, o artista taiwanês Tehching Hsieh se lançou numa proposta ousada de performance. Durante um ano inteiro ele registrou a passagem do tempo batendo ponto em um relógio industrial a cada hora do dia. Toda vez que batia o ponto, o artista capturava uma fotografia de si mesmo ao lado do relógio. As fotografias se juntam como quadros em um vídeo de seis minutos, onde é possível perceber a passagem do tempo, seja pelo cabelo que cresce, seja pela expressão cada vez mais apática em operar uma rotina tão estrita. No fim das contas, ele bateu o ponto 8.666 vezes de 8.760 possíveis (dormindo durante as 94 horas restantes)4.

Em Time Clock Piece5, Hsieh intencionava registrar o tempo, essa convenção que se materializa em nossas rotinas de maneira muito pragmática: o minuto tem 60 segundos, a hora 60 minutos e o dia 24 horas. Sobre essa diferença entre o tempo da arte e o tempo da vida, ele afirma, em entrevista a Vivian L. Huang6, que é preciso que exista uma sincronicidade entre os dois para que suas performances aconteçam. Como imigrante ilegal nos Estados Unidos, tentou se infiltrar no mundo da arte de Nova York mesmo sem ter contatos importantes. Sem documentos que o permitissem aplicar para bolsas de instituições do país, lavou pratos e faxinou restaurantes para sobreviver. Sobre isso, ele diz:

Me senti bem fazendo o meu trabalho num contexto ilegal; foi difícil, mas tive algum tipo de liberdade. Eu não tinha identidade. Claro, é uma situação difícil, mas me deu energia. Se você tem medo, não é possível fazê-lo. Você tem que correr algum risco.

Na fala de Hsieh, é curioso notar que sua aparente falta de identidade fixa, fruto de seu deslocamento enquanto imigrante ilegal vivendo no país dos sonhos a serem conquistados, implica uma maior permissividade para mutações, oscilações, derivas e formas de abandono. Para ele, a rigidez do sistema pode apontar para um caminho de descobrimento do Eu. Como ele mesmo diz, viver à margem possibilita algum tipo de liberdade.

Ao adotar a estética industrial de um operário exemplar e o gesto repetitivo de inserir o cartão de ponto no relógio, Tehching Hsieh explicita a padronização e a mecanização dos corpos explorados pela indústria.

A natureza rigorosa de sua performance e a privação ou, ainda, a interrupção do sono faziam parte de um acordo que Hsieh travou consigo mesmo no início do projeto e que documentou em uma carta de intenção. A simplicidade dessa maneira de materializar o tempo e transformá-lo em objetos de arte (fotografias, cartões de ponto, indumentária etc.) documenta a passagem dele de modo cartesiano – rígido, esquemático – ao mesmo tempo que potencializa a dimensão política da Time Clock Piece. Ao adotar a estética industrial de um operário exemplar e o gesto repetitivo de inserir o cartão de ponto no relógio, o artista explicita a padronização e a mecanização dos corpos explorados pela indústria.

Apesar de ter iniciado sua série de performances de longa duração na década de 1980, a obra de Tehching Hsieh só começou a ganhar notoriedade em 2009 com uma exposição individual no Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA). No artigo de Vivian L. Huang para a revista Frieze, o curador britânico Adrian Heathfield é categórico ao definir o motivo pelo qual o trabalho de Hsieh foi excluído da história daquele período: ele não é branco.

É curioso pensar sobre o que ele diz da experiência: “Eu não tinha identidade”. Trabalhadores que batem ponto ou não, muitas vezes, ao responder à pergunta “quem é você?”, ou ainda, quando pedem “fale mais sobre você”, começam suas repostas pela descrição de suas ocupações. Essa âncora entre quem somos e o que fazemos para sobreviver – um vínculo difícil de escapar na sociedade como está configurada – faz pensar nos tipos de performances às quais estamos presos voluntariamente ou por desígnios misteriosos. Quando você se apresenta, diz algo mais? Nossas identidades enquanto pessoas trabalhadoras, porém, são descritas de maneiras muito superficiais.

7

Esta ideia está presente no poema “A vida na hora”, publicado na coletânea Poemas com tradução de Regina Przybycien (Companhia das Letras, 2011). “A vida na hora. / Cena sem ensaio. / Corpo sem medida. / Cabeça sem reflexão. / Não sei o papel que desempenho. / Só sei que é meu, impermutável. / De que trata a peça / devo adivinhar já em cena.”

8

Expressão visual utilizada por empresas de tecnologia para descrever os próximos passos de um empreendimento e as tarefas necessárias para alcançar objetivos.

O que quero dizer com isso é que na busca por atender a expectativas, cumprir metas e gerar resultados tanto no campo do trabalho quanto em nossa vida pessoal, cada vez mais gamificada, estamos internalizando um ideal de performance. Em nossa cena cotidiana, ensaiada enquanto a peça já está em andamento, como dizia a poeta polonesa Wisława Szymborska7, com frequência nos sujeitamos a métricas quantitativas, mas, quando os números indicam que batemos a meta, o “lógico” é dobrar a meta (alô, Dilma Vana Rousseff). Essa mecânica é usada por boa parte das empresas no sistema capitalista: o crescimento precisa ser exponencial, até que não seja possível crescer mais e a estagnação leve à falência. Mas e a sua vida, ela tem um modelo de negócio, um roadmap8

O fato de que frequentemente começamos a responder à pergunta sobre quem somos pela nossa ocupação parece revelar uma pista clara de que equivalemos o nosso valor àquilo que podemos produzir. Ou ainda, que a nossa ocupação diz muito mais sobre nós do que as nossas origens ou histórias pessoais. Quase ninguém responde a essa pergunta dizendo: sou filho da Simone, irmão da Sophia, sobrinho da Rose, amigo da Renata e vizinho da Lindalva… Que o trabalho é uma forma de laço social, nós entendemos, mas por que ele predomina sobre as outras?

9

Definição extraída do Dicionário de Português licenciado para Oxford University Press.

performance [s.f.]

1 atuação, desempenho. “O orador teve uma performance notável.”
2 teatro espetáculo em que o artista atua com inteira liberdade e por conta própria, interpretando papel ou criações de sua própria autoria.9

A palavra performance não parece dar brecha para outras interpretações. Estamos falando de atuação, desempenho. É verdade, há vários tipos de performance. Do teatro às artes visuais, do cinema à novela das nove, do comercial de margarina ao horário político obrigatório, em casa ou no trabalho, nos esportes ou nos hobbies, nas academias fitness ou nas universidades, na análise ou no confessionário, há sempre um desempenho de papéis. Desempenhamos, sobretudo, papéis sociais.

No que diz respeito à classe, nos é vendida uma ideia de mobilidade – a meritocracia – condicionada ao esforço individual. No entanto, mesmo quando persistimos muito, nos dedicamos ao máximo, o sucesso nunca é garantido.

Já estreamos neste mundo cumprindo papéis – até hoje, pessoas a quem o sexo feminino foi atribuído no nascimento têm as orelhas furadas aos três meses de idade para garantir que seu gênero não seja confundido por estranhos. No que diz respeito à classe, nos é vendida uma ideia de mobilidade – a meritocracia – condicionada ao esforço individual. No entanto, mesmo quando persistimos muito, nos dedicamos ao máximo, o sucesso nunca é garantido. Para entender esse fenômeno – ou a ineficiência dele –, é necessário também olhar para as diversas demografias e perceber as desigualdades que dificultam a performance em cada grupo: dos privilegiados aos mais vulneráveis.

Tentar entender por que trabalhadores criativos têm sido atingidos, tanto física quanto mentalmente, pela ligação entre desempenho e produtividade, e,ainda, como isso tem esgarçado o tempo de maturação de suas criações, pode ser um relevante movimento de reflexão. É possível acompanhar a velocidade do mercado, cada vez mais acelerada pelas redes sociais? O utilitarismo estaria no cerne desse adoecimento? Entre o ócio orientado à criação e a construção diligente de repertório visual; a análise compulsória de tendências e os espelhamentos comparativos cotidianos (quais são os benchmarks da sua existência?), já faz tempo que não nos envolvemos em atividades que simplesmente não resultam em algo mensurável. 

A metrificação de tudo

Quantos passos você deu no dia, quantos quilômetros andou de bicicleta, quantas calorias queimou na esteira, quantos livros leu em um ano, quantas músicas escutou, quantos filmes viu, quantas fotos postou, quantas curtidas e compartilhamentos recebeu… É exaustivo estar atado a todos esses cronômetros que pedem sempre mais. 

É curioso que o tempo despendido consigo mesmo ou investido em seus próprios interesses tenha sido um dos primeiros alvos de réguas de produtividade na internet. Do meio para o fim dos anos 2000, muita gente criou conta no Last.fm porque queria registrar todas as músicas que escutava, saber quais eram seus artistas mais ouvidos (uma protoversão do que o Spotify faz hoje a cada ano). O mesmo vale para o Goodreads, que promete otimizar suas leituras com base em critérios autoimpostos. 

Esse último exemplo é interessante, pois a plataforma, comprada pela Amazon em 2013, estimula seus usuários a determinarem um desafio de leitura para o ano vigente. Você define a quantidade de livros que deseja ler, e é a sua autodisciplina que determinará com quanto rigor essa meta será perseguida. Mas pare. Imagine que sua meta seja 12 livros por ano, um por mês. Se as suas escolhas literárias forem ruins, seu desafio de leitura te impediria de abandonar livros pela metade? Sobra tempo para experimentar que tipo de histórias você realmente gostaria de ler?

A foto diante do espelho na academia com a legenda “Tá pago” parece emblemática no sentido de estar atada a um cronômetro, assim como as fotos de Hsieh ao lado do relógio de registro.
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Plataforma semelhante às demais citadas, na qual os usuários registram, dão notas e comentam os filmes a que assistiram.

Ao fazer a análise de dados dos seus interesses, seja no Goodreads, no Last.fm ou no Letterboxd10, você pode comparar e ver em que direção você está… crescendo?! Ops! ERRO 404; câmbio desligo; NÃO! A foto diante do espelho na academia com a legenda “Tá pago” parece emblemática no sentido de estar atada a um cronômetro, assim como as fotos de Hsieh ao lado do relógio de registro. Mas, investigando melhor, qual é esse preço que está sendo pago na cultura do desempenho?

O frenesi de se tornar um case de sucesso, um exemplo a ser seguido, nos cega de quão mesquinha é essa tarefa. Aqui eu quero chamar o design de método sobretudo performático, pois ele mascara sua atuação com a promessa de solução para um problema indefinido, que nunca é solucionado efetivamente… Sempre se precisa de mais. Solucionar um problema é criar outros três (ou mais!). Quantas pombas cabem nessa cartola?

Claro, não é justo imputar todo esse peso em cima de designers e não perceber os interesses corporativos por trás desse sistema que enxergou no design uma fórmula fácil para cooptar indivíduos. Desde que se entende por atividade, o design interfere na escolha monológica – voluntária, livre de obrigações – do consumidor e manipula suas emoções, disfarçadas de identificação com a marca x ou com o produto y (design emocional – alguém se lembra dessa?), em detrimento de relações mais dialógicas: diplomacia, troca, solidariedade e respeito mútuo. No texto “O cidadão como consumidor”, publicado no Brasil pela piauí (Edição 79, 2013), o sociólogo alemão e diretor do Instituto Max Planck para o Estudo das Sociedades, Wolfgang Streeck, comenta o impacto desse processo de individualização através do consumo:  

As vastas possibilidades de consumo nos mercados ricos fornecem um mecanismo que permite que as pessoas concebam um ato de compra como um ato de autoidentificação e autoapresentação, que diferencia o indivíduo de certos grupos sociais e o une a outros. Comparada a modos mais tradicionais de integração social, a socialização por meio das escolhas do consumidor parece mais voluntária, resultando em laços sociais e identidades menos restritivas – de fato, inteiramente livres de obrigações. […] Isto porque, em um mercado rico, comprar algo envolve apenas escolher aquilo de que você mais gosta (e pode pagar), a partir de um menu de opções, em princípio infinito, que aguarda a sua decisão, sem necessidade de negociar ou ceder como era preciso fazer nas relações sociais tradicionais. Assim, a socialização pelo consumo é monológica e não dialógica, voluntária e não obrigatória, individual e não coletiva.

Uma autoconsciência exagerada dos próprios papéis sociais pode levar a certo tipo de enrijecimento, uma retração, um sentimento de  impotência diante das distâncias entre quem monopoliza o poder e quem está sujeito a ele. Mas saber que esses papéis são oscilantes, disputáveis e impermanentes ajuda a nos situarmos de maneira horizontal – abaixo dos que acumulam milhões ou bilhões, estamos todos no mesmo barco. Sentar com o desconforto dessas cenas que representamos em nossas interações diárias, virtualmente cercados de objetos de desejo, nos demanda jogo de cintura e, sobretudo, humor. Essa atitude, nem tão pessimista por ser comunitária, alivia a pressão social que insiste em moldar vencedores.

O esforço olímpico

Em 2021, na ocasião dos Jogos Olímpicos de Tóquio, comprei o livro Esforços olímpicos (Todavia, 2021), de Anelise Chen, escritora estadunidense nascida em Taiwan. Me interessei pela obra porque eu não compreendia bem a ideia de competição dos Jogos Olímpicos: a celebração máxima da superação pela performance, pelo esforço físico e, ainda, com a dimensão de espetáculo midiático. Tudo isso me intrigava, ao mesmo tempo que me deixava chateado. Sempre pensava que, se apenas três atletas ou equipes ocupam o pódio, quantos outros ficam de fora, mesmo depois de colocar seus limites à prova? Não seria mais justo que todos fossem igualmente honrados? Era um dilema interessante e posso dizer que com os Jogos Olímpicos de Paris, em 2024, aprendi a acompanhar as disputas e a torcer com menos aflição. 

Ah, o livro. Ele conta a história de uma ex-atleta da natação que está para finalizar seu doutorado (um megaesforço acadêmico), mas sente que está sobrecarregada e que vários aspectos da sua vida estão vindo abaixo. Essa sensação de erguer algo sobre um projeto de vida já cambaleante acaba salientando uma inclinação para a desistência. Desistir também é uma forma de ganhar tempo para si. Dando exemplos não ficcionais de atletas que desistiram, ou que, por alguma razão, não subiram ao pódio, Anelise Chen se debruça sobre as agruras das perdas e vitórias e sobre as aflições de uma desistência iminente, aquele sentimento de já estar virando as costas para algo ou alguém.

A narrativa de Chen traça um paralelo entre os esportes e a vida acadêmica, mas a mesma ideia também pode ser extrapolada para o contexto corporativo. Empresas se preocupam em medir o desempenho de suas equipes constantemente, em busca da eterna otimização. Quando uma peça da engrenagem mostra sinais de avaria, ou melhor, quando um integrante do time não cumpre bem o seu papel em campo, a solução drástica e unilateral é descartá-lo, removê-lo. Livrar-se de quem erra é uma forma de impedir que o erro se espalhe.

A dissonância cognitiva parece estar no centro da crise corporativa atual, em que, cada vez mais, somos instigados a ultrapassar todos os nossos limites, ir além do humanamente possível e demonstrar um nível de comprometimento impossível

No clássico Bartleby, o escrivão: uma história de Wall Street (Ubu, 2017), a personagem principal de Herman Melville (1819-1891) incorpora a aridez do trabalho burocrático, mas passa a se recusar a cumprir ordens e a realizar tarefas no escritório de advocacia onde trabalha. Bartleby é uma personagem reverenciada na literatura, que repete constantemente seu lema “Acho melhor não” – traduzido, às vezes, como “Prefiro não”. A frase é igualmente pregnante e absurda diante da realidade também irracional do mercado financeiro de Wall Street, onde a história acontece. Essa dissonância cognitiva parece estar no centro da crise corporativa atual, em que, cada vez mais, somos instigados a ultrapassar todos os nossos limites, ir além do humanamente possível e demonstrar um nível de comprometimento impossível… Quando nos recusamos, como Bartleby, ou sofremos burnout, somos tachados de indesejáveis, apáticos ou desengajados.

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O termo é uma aglutinação das palavras empreendedor e precarizado. Foi criado pelo designer e pesquisador italiano Silvio Lorusso, autor de Emprecariado: Todo mundo é empreendedor. Ninguém está a salvo (Clube do Livro do Design, 2023).

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A citação a Ehrenberg foi extraída do artigo “O culto da performance: o novo modelo de trabalho do século XXI”, de Thiago Alencar da Rocha, que foi publicado na Revista Sem Aspas (Volume 7, Número 1), da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em 2018.

Da mesma forma, não é coincidência que o heroísmo olímpico esteja tão disseminado na cultura corporativa do presente. O trabalhador emprecariado11, independente de vínculo empregatício, se tornou um superatleta, no que o sociólogo francês Alain Ehrenberg denominou O culto da performance. Em seu livro homônimo (Ideias e Letras, 2010), ele esmiúça como o mundo do trabalho se tornou um fenômeno de desempenho sobretudo como “maneira de assumir a responsabilidade por si mesmo diante das carências das políticas públicas do emprego e da incapacidade da administração em manejar os laços eficazes entre oferta e demanda no mercado de trabalho”12

Para Ehrenberg, ícones midiáticos, como atores ou atletas de grande expressão, eram antes estrelas admiradas a certa distância. Hoje, com smartphones colados ao rosto, assistimos de perto a performances ultraprocessadas: nas redes sociais, todos parecem estar exaustos ou muito satisfeitos, mas sempre sedentos por atenção. A necessidade de performar o heroísmo de jornadas árduas, ou o sucesso absoluto e sem esforço, acaba desviando a atenção das batalhas travadas, dia após dia, por dignidade. Simplesmente não perecer ou trazer para casa o pagamento no fim do mês não enchem estádios.

Sísifo deixa a pedra de lado e vai fumar um cigarro

Mas quem é esse tal de Eme e por que ele se sente no direito de questionar aqueles que contam passos, batimentos cardíacos, níveis de gordura corporal? Eme tem 30 anos e ainda mora com os pais. Está desempregado, acima do peso, hipermedicado, inadimplente e desencantado com a prática do design. Desde que se formou, foi demitido duas vezes e participou de inúmeros processos seletivos que não deram em nada.

E o que Eme tem feito para superar esses momentos de baixa? Por vezes está à deriva, por outras, visita o LinkedIn sem muita convicção de que aquela plataforma explicitamente masturbatória – em que o culto à performance é celebrado da forma mais tacanha possível – lhe levará a um posto de trabalho. Ajustar seu perfil para agradar recrutadores-robôs está fora de cogitação. Quando entra em outros sites de vagas, frequentemente encontra anúncios à procura de profissionais 8 em 1: redator, cinegrafista, sonoplasta, editor de vídeos, animador, gestor de mídias e, por fim, designer de identidades visuais e branding. Afinal, tudo cabe debaixo do grande guarda-chuva do design.

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Sobre esse assunto, recomendo a leitura da reportagem “Cai interesse por programas de pós-graduação no país” publicada pela Revista Fapesp em junho de 2024 e em julho pelo Nexo.

As habilidades de Eme em relação ao design parecem se distanciar da lógica produtivista e se aproximar de um viés mais crítico. Infelizmente, esse interesse não gera uma renda fixa, muito menos notoriedade ou prestígio. Eme já pensou em entrar em um programa de pós-graduação stricto sensu, mas acredita que o espaço acadêmico lhe demandaria algo que ele fundamentalmente não possui: saúde mental para enfrentar um ambiente classista, racista e nada acolhedor, além de inundado pela ideia de performance – mais publicações, mais prazos apertados, mais disputa por capital político e social13.

Postar nas redes sociais sobre um novo certificado ou uma megapromoção transforma esses acontecimentos em feitos estáticos, que ocultam o percurso e todo o sofrimento envolvido.

Por outro lado, se recusar a performar para as câmeras, para os feeds e para o Outro – que espia e inveja – também implica ceder o controle da narrativa que esse Outro hipotético pode ter sobre sua vida, sabendo que há pouco ou nenhum controle sobre como as pessoas nos percebem. Postar nas redes sociais sobre um novo certificado ou uma megapromoção transforma esses acontecimentos em feitos estáticos, que ocultam o percurso e todo o sofrimento envolvido. Na experiência de Eme, é visível que somos colocados para digladiar uns contra os outros em arenas virtuais. Essa disputa feroz define quem leva os projetos mais interessantes, as cadeiras com melhores remunerações e, ainda, a validação de toda uma comunidade. É muita pressão.

Em A arte queer do fracasso (Cepe, 2020), o estadunidense Jack Halberstam reflete sobre como as pessoas queer já frustram as expectativas sociais simplesmente por não se enquadrarem na idealização capitalista de seus corpos, seja por sua expressão de gênero, seja por sua orientação sexual. Ele argumenta que pessoas bem adaptadas ao capitalismo são as que têm mais chance de sucesso, uma vez que a cisheteronormatividade está colada ao desenho patriarcal da sociedade. O fracasso e a indisciplina são artes fundamentalmente queer

Não seria desejável sentar do lado oposto ao dessa configuração? Escapar dessa hierarquia social tosca? Com o que ou quem negociamos isso? Ser queer e ter orgulho disso parece ser uma forma de rebeldia. “Be gay, do crime”… Um modo de frustrar ainda mais a já baixa expectativa da sociedade em relação a corpos dissidentes: forjar novos caminhos e inventar outras ideias de sucesso também desviantes!

O mito de Sísifo pode ser lido como uma alegoria ao direito de desistir.  Sua punição divina por desobediência aos deuses do Olimpo era subir um monte carregando uma grande e pesada rocha e assisti-la, todos os dias, rolar abaixo assim que chegava ao cume. Fazer o caminho de subida e descida de maneira repetitiva, até a eternidade, era seu castigo. Sua prisão era a disciplina. A urgência de contemplarmos o absurdo de nossas rotinas e deliberadamente escolher continuar puxando essa rocha deixa implícita uma realidade alternativa, em que ela é simplesmente abandonada. Talvez Sísifo estivesse mesmo fadado até a eternidade, mas é quase impossível não imaginar os desdobramentos de sua indisciplina e revolta. Quem sabe nós, condenados pelos Deuses do Capital, possamos, sim, largar a pedra e ir tomar um ar, por mais que essa decisão demande uma coragem contígua à rebelião. 

Enquanto profissional do design, penso em como precisamos considerar a dimensão política de nossas práticas, para além de sermos “resolvedores de problemas” (para Sísifo, o problema nunca acaba, ele recomeça) e, muitas vezes, “apagadores de incêndios” (como bombeiros heroicos). Há um papel ético na produção não só das imagens e dos objetos que tomam as ruas, mas sobretudo dos discursos. Estar atento a quais discursos os produtos do seu trabalho estão vinculados, quais ideais estão fortalecendo, talvez amenize o sentimento de estar alimentando um monstro que suga a sua energia e te coloca para dormir. 

A sensação de esvaziamento que sentimos coletivamente pode ter origem na priorização de resultados em detrimento da fruição do processo. Ao participar desse teatro mascarado, deixamos de lado um aspecto fundamental do design: a presença da mão do trabalhador, da artesania, da arte do fazer, mesmo quando se trata de produtos produzidos em escala. Essa marca – no sentido de vestígio – perdeu espaço para imagens cada vez mais achatadas, homogêneas, falsamente neutras, prontas para serem desembaladas e engolidas, mas nunca mastigadas.

Somente quando nos livramos dos cronômetros a que estamos atados, ganhamos mais tempo para nós mesmos e para os nossos e podemos exercer o cuidado e a solidariedade em comunidade, entre pares.

A hegemonia de um design pronto para a digestão tem a ver com a ideia moderna de que tempo é igual a produção. Há muito fomos convencidos de que trabalhar o necessário para conquistar o que realmente precisamos não é suficiente e de que fins de semana servem exclusivamente para “recarregar as energias”. Somente quando nos livramos dos cronômetros a que estamos atados, ganhamos mais tempo para nós mesmos e para os nossos e podemos exercer o cuidado e a solidariedade em comunidade, entre pares. Como podemos estender a mão uns aos outros, de forma a construir vínculos dialógicos, diplomáticos, que ganham força através da presença, da conversa, da escuta e da troca?

Em “Viver com nada”, publicado na 12ª edição da revista Piseagrama, Wellington Cançado elenca artefatos para serem extintos imediatamente do planeta. Para ele, a abolição de uma extensa lista de objetos nocivos abriria possibilidades, inclusive criando trabalhos de contra-produção e novos modos de descarte e reaproveitamento de materiais:

Mas, ao juntar as listas de toda a humanidade, teríamos milhares, quiçá milhões, de artefatos a serem recolhidos, destruídos, reciclados. O que significaria finalmente um trabalho relevante para bilhões de pessoas por décadas, incluindo a transformação e o desmanche das fábricas, dos parques industriais e das cadeias produtivas extensas e complexas outrora produtoras dos artefatos banidos.

Em um nível mais profundo, essa proposta poderia eliminar os sofrimentos produzidos pela própria sociedade, como a depressão e a ansiedade, ela também nos faz pensar a respeito da devolução da autonomia às pessoas, à medida que devolve a elas o poder de decisão sobre quais objetos seriam salvos e quais seriam banidos.

Descobrir prazeres contraproducentes pode abrir espaço para que a criatividade se mostre: um exercício de liberdade condicionado ao desejo de quem cria e não ao de quem consome!

Não é de muito bom tom criticar a roda (do Capital), e como o seu giro mói pessoas, sonhos, subjetividades, sutilezas, nuances e relações. A roda pode virar toda sua ira contra você. Minha intenção com esta reflexão é identificar comportamentos que alimentam ainda mais esse moinho e otimizam, predatoriamente, seu poder de destruição do nosso imaginário. Escrever poesia ainda que não almejando o Prêmio Nobel, ou desenhar sem objetivo de expor numa galeria, ou ler um livro por prazer. Descobrir prazeres contraproducentes pode abrir espaço para que a criatividade se mostre: um exercício de liberdade condicionado ao desejo de quem cria e não ao de quem consome!

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O termo “Exército Industrial de Reserva” foi usado por Karl Marx (1818-1883) para nomear o contingente de trabalhadores desempregados ou subempregados. Para ele, essa parcela da população é usada como forma de dominação burguesa e garante que a mais-valia seja exercida.

Para muitos, os trabalhos que Eme tem se proposto a fazer (escrever poemas, produzir zines, participar de feiras de artes gráficas, levar a sua irmã a consultas médicas, ajudar nas tarefas de casa, ser o secretário dos seus pais que nunca sabem como gerar o boleto do cartão de crédito ou a guia GPS) são “pequenos” e de baixa performance diante das conquistas intergalácticas dos foguetes que não dão ré. Eme também quer mais, acredita que pode mais, mas, neste momento, está sentado no extenso banco de reservas do exército industrial14, olhando para portas fechadas e sente-se suscetível a diversas formas de abuso no mercado de trabalho. A recusa em agarrar-se a qualquer fresta que se abra tem a ver com ganhar um tempo para voltar mais forte.

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Trata-se de um fragmento do documentário Ervilha da fantasia (dir. Werner Schumann, 1985), que está disponível no YouTube.

Recentemente, Eme escreveu um poema sobre não se sentir pertencente à paisagem, mas então percebeu que está incrustado nela. Não apostaria numa definição de poesia como algo antiutilitário, ao passo que enxergar beleza altera nossa perspectiva e nos faz redimensionar o que é realmente importante nessa experiência compartilhada chamada vida. Os poetas também têm seu papel social de acordo com Paulo Leminski, curitibano e publicitário expoente da geração de poetas marginais surgida em 1970. Em um vídeo15, ele diz que “o poeta não é uma excrescência ornamental da sociedade e sim uma necessidade orgânica, porque através da loucura dos poetas, do que eles têm a dizer, que a sociedade respira”.

Este texto só foi possível porque Eme sentiu que era necessário abrir o peito e convidar as pessoas a vocalizar sentimentos que podem ser comuns. Uma vontade de não se perceber sozinho nessa. Eme não tem todas as respostas, mas sabe que essa tem sido sua forma de atravessar o deserto: pensar nos caminhos que ainda pode buscar, nas paisagens que ainda virão a ser tecidas.

é filho da Simone, irmão da Sophia, sobrinho da Rose, amigo da Renata e vizinho da Lindalva. Sua banda mais ouvida, segundo o Last.fm, é The xx, e seus filmes favoritos, de acordo com o Letterboxd, em nenhuma ordem específica, são: Os catadores e eu (2000), Dias perfeitos (2023), Blow-Up (1966) e A lei do desejo (1987). Este ano leu 33 livros (até a data de publicação deste texto), e abandonou vários, conforme o Goodreads. Escreve poesia, entre outras piras, e publicou, em 2024, Resma e Cancelamento de ruído #2, zines 6 e 7 respectivamente. Tem um diploma de bacharel em Design pela Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais.
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