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27 de junho de 2024

Isto não é uma carta de amor ao Carnaval

A ilustração que acompanha este ensaio foi cedida por Herbert Loureiro (@herbbbbie no Instagram).

Todo mundo tem uma história de amor pelo Carnaval. Ou de ódio. A minha serve para os dois. Eu poderia tecer uma tese sobre a importância dessa festa para a cultura popular brasileira, mas este texto não é sobre isso. Ele é sobre como uma arquiteta metida a designer com menos de 1,60 m, que abomina aglomeração e, ao mesmo tempo, se encanta com as vivências de um bom bloco, encontrou algum tipo de equilíbrio nesse paradoxo, graças a um clássico e velho conhecido dos grandes bailes: os estandartes.

Não que eu venha de uma família tradicionalmente festiva e tenha pulado por bailes desde a barriga da minha mãe – se eu somar dez carnavais no currículo já seria muito. Essa muvuca começou a ficar interessante, no entanto, quando encontrei um grupo de amigos que também enxerga beleza numa meia arrastão rasgada e no glitter escorrendo pela cara suada.

Mas vamos aos fatos. O carinho que cultivo por essa festa vem das imprevisibilidades que vivenciamos ao longo de quatro dias. Aprendi que a única variável possível de controlar em um dia de bloco é o horário de sair de casa e, ainda assim, coloco aqui algumas ressalvas: a ressaca do dia anterior, a complexidade da fantasia da vez. Os encontros, a espontaneidade, a falta de seriedade perante si e à vida, a sensualidade e até mesmo a sacanagem – sem julgamentos, ela tem seu valor – são alguns dos elementos que, misturados à exaustão que reprimimos no corpo e na mente ao longo do ano, vêm à tona como um dilúvio para limpar tudo antes do começo de mais uma temporada.

Por outro lado, vários dos motivos para amar o Carnaval já citados poderiam ser interpretados negativamente: espontaneidade é o mesmo que desorganização? Mas como sou eu que dou este relato, me reservo o direito de eleger a pior característica da festa mais amada do Brasil: a multidão. Boa parte das tragédias carnavalescas derivam do excesso de gente na rua – da escassez de comida e bebida, dos banheiros transbordando, da dificuldade de locomoção, além do desespero de transitar no meio de tanta gente.

Ah, um ponto importante desta narrativa é que eu já passei por um arrastão (do tipo traumático, não estou mais falando da meia). Na hora, o ocorrido não me causou muito impacto. Era ano-novo, minhas faculdades mentais já não estavam em sua capacidade máxima, e a agonia generalizada da aglomeração camuflava a seriedade da situação em uma catarse coletiva. O tumulto aconteceu em cima de uma ponte e foi daqueles que não só tornava impossível encostar o pé no chão, mas também engolia, puxava para baixo.

Com o tempo, no entanto, percebi que esse episódio tinha agravado – e muito – o meu medo de aglomerações, o que transformou o Carnaval num dilema para mim – estar entre muitas pessoas ocupando o mesmo lugar ao mesmo tempo (explica o túnel no Boi Tolo, Sr. Newton) tinha deixado de ser só alegria. Nesses dias, eu vivo o céu e o inferno na Terra, o “credo, que delícia” e o “Deus me livre, mas quem me dera”. Porém, contudo, todavia, de tanto insistir nesse furdunço, uma luz começou a brilhar no fim do túnel.

O bloco eu não lembro qual era, o dia da semana muito menos, mas se para você fizer alguma diferença, posso dizer que ou era o último dia de festa, ou já tinha passado a hora de ser. De qualquer forma, a essa altura do campeonato, a exaustão tomava o lugar da simpatia e não deixava muita margem para paciência. O fato é que eu e minha gangue entusiasmada, cansados de nos perdermos, elegemos um dos muitos estandartes como ponto de encontro. Seja pela minha estatura ou pela minha formação em arquitetura e design, aquela escolha mudou a dinâmica do dia. De repente, não era tão assustador me afastar dos amigos para comprar um sacolé, ou me aprofundar em uma troca de olhares. O estandarte ainda estaria lá, a alguns foliões de distância, junto com um grupo de pessoas que me acolheria. Esse, sem dúvida, acabou sendo o melhor dia.

Onde a paisagem não é reservada às grandes marcas, [os estandartes] são expressões visuais populares que, quando reunidos, resultam numa explosão estética e criativa

Aquela sensação de segurança e liberdade me levou a concluir que não é por acaso que os estandartes estampam o horizonte do Carnaval. Onde a paisagem não é reservada às grandes marcas, eles são expressões visuais populares que, quando reunidos, resultam numa explosão estética e criativa. Vale abrir um parênteses para especificar que não me refiro tanto aos estandartes oficiais, mas aos efêmeros, empunhados por comerciantes, grupos de amigos, grêmios recreativos minúsculos, movimentos políticos em festa – mesmo que tenham sido improvisados 15 minutos antes do cortejo começar.

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O ensaio-manifesto Ornamento e crime (Cotovia, 2014) foi publicado pelo arquiteto austríaco Adolf Loos (1870-1933) em 1908 e logo tornou-se um cânone modernista frequentemente associado a Bauhaus e à Escola de Ulm, ambas alemãs. Já a Lei Cidade Limpa proíbe a utilização de espaços públicos para fixação de propagandas e regulamenta letreiros e outras intervenções em fachadas. Entrou em vigor em 2006 em São Paulo e sua versão carioca é válida desde 2017. [N.E.]

Esses dispositivos realizam um dos papéis mais triviais do design moderno: comunicar e orientar. Como no Carnaval todos estamos mais dispostos a decodificar símbolos e mensagens (essa sua fantasia é de quê?), não há restrições para o uso e abuso de cores, tecidos, lantejoulas e bordões. Ironicamente, quanto mais maximalista for seu apetrecho, melhor ele cumpre a função de guiar e debochar, ao mesmo tempo, do design europeu do século 20 e da Lei Cidade Limpa1.

O seguinte parecer vem da minha compreensão de profissional foliona, não de foliona profissional: práticas artísticas como essa influenciam nas maneiras como vemos e entendemos nós mesmos e os contextos nos quais estamos inseridos. Em uma escala maior, também intervêm em como interpretamos a dinâmica das massas e, portanto, como navegamos por elas. Através dessa partilha sensível, revogamos a comunicação verbal em proveito da leitura dos signos para absorvermos seus efeitos em nossos corpos.

Graças à elaboração dessa realidade temporária, mais visceral, pode-se dizer que visitar uma cidade durante o Carnaval e visitá-la em outra época do ano é como conhecer dois lugares muito diferentes. Já até ouvi uma pessoa comentar: “o [bloco] Eu acho é pouco eu conheço bem, agora preciso voltar pra conhecer Olinda”. Esses locais se tornam versões mais coloridas de si mesmos; a funcionalidade de suas ruas é alterada, abrigando e aproximando uma pequena, mas potente amostra da existência humana, que celebra sua complexidade.

O Carnaval também é uma época em que as regras são reinventadas. Personagens que criamos tornam-se quem realmente somos por aquele recorte de tempo.

O Carnaval também é uma época em que as regras são reinventadas. Personagens que criamos tornam-se quem realmente somos por aquele recorte de tempo. Não apenas simulamos novos papéis, mas nos transformamos em nossas fantasias. Se somos capazes de expressar essa face subjetiva, radicalmente criativa, ela também não deveria fazer parte de nós nos outros 361 dias do ano?

Nosso mundo interno é rico em imaginação e desejo. Carregamos nossos pierrôs e colombinas escondidos debaixo dos papéis cívicos que interpretamos no cotidiano e por isso utopias coletivas, como o Carnaval, são tão importantes para revelarmos nossos eus mais inventivos e menos rígidos.

Retomo aqui o título deste relato: isto não é uma carta de amor ao Carnaval, mas sim às pessoas que o amam e o recriam em cada oportunidade. Às que se enxergam como parte de um todo e fazem o exercício de estar juntas entre muitas. Se no dicionário uma festa é definida pela junção de música, comida, bebida, dança e pessoas com fins recreativos, tudo pode ser resumido a este último item: às pessoas, uma vez que os demais são invenções humanas. Por isso, qualquer iniciativa com a finalidade de reforçar o bem-estar de qualquer pessoa merece reconhecimento. Em suma, artefatos carregam o poder de mudar um enredo e desbloqueiam novas alegorias do sentir para que a fantasia seja eterna e viver seja só festejar.

é foliã amadora, ariana com ascendente em áries e abraça todos os cães que vê pela rua. Além disso, é arquiteta e urbanista pela FAUUSP, com pós-graduação em Design Gráfico e a Cidade pela Escola da Cidade. Trabalha com design e comunicação visual desde 2020. Entre seus projetos, destaque-se a identidade visual do jornal Sumaúma, desenvolvido com o escritório Bijari, que recebeu um iF Awards em 2024.
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