Livro Do documentário à videoarte, as principais cenas de uma história em curso – 10 anos da Escola Livre de Cinema de Nova Iguaçu.
“O território é uma invenção dos sujeitos em ação na cidade. E essa cidade (Rio) necessita desse debate de território porque está tudo centrado na Zona Sul. No Rio, fincar o pé na dimensão de território é central para essa disputa. Na cidade, a gente é organizado pelo mundo do trabalho. O mundo do trabalho é um mundo de desigualdade.” [Marcus Faustini]1
Se você é um jovem periférico, durante anos você vai ouvir que para conseguir estudar e arranjar um bom emprego, você terá que deixar o seu bairro ou sua cidade. E, de fato, é o que acontece. Mas o que não aparece na conta dessa mudança é que nem sempre a adaptação a um outro contexto, que acaba evidenciando um choque de classes, vai ser fácil. Alcançar as expectativas de professores e chefes vai parecer impossível porque, para nós, estruturalmente, é. E as culpas e frustrações desse insucesso só são superadas quando entendemos como funciona o sistema social de exclusão. Compreender isso me parece chave para que os designers percebam que não estão alheios às discussões de classe e para que os criativos não-privilegiados consigam pensar em trajetórias profissionais mais ajustadas e respeitosas com as suas histórias e subjetividades.
Ao contrário do que possa parecer, a área criativa não é muito diferente de outros setores produtivos: as condições existem para beneficiar determinadas pessoas e suas concepções de mundo. Agora, no auge dos meus 34 anos e depois de ter assimilado como essa estrutura funciona, consigo perceber o quão violento foi para mim aprender e concluir isso. E ainda é, para tantos jovens periféricos talentosos que, com um esforço absurdo, se inserem em uma faculdade e no mercado criativo, mas não conseguem se desenvolver e expressar seus talentos de forma plena. Também só nesse momento consigo discernir, pontuar e descrever algumas das causas daquela sensação de deslocamento e fracasso, que no geral vêm do mesmo lugar: eu não pertencia a classe privilegiada do setor criativo.
Um dos primeiros sinais de que não conseguia me inserir naquele ambiente criativo foi a minha falta de identificação com os repertórios, geralmente europeus e norte-americanos, utilizados na academia ou nos espaços de trabalho. Um repertório visual condizente com a sua atuação vai sendo adquirido no decorrer da sua vida profissional. Na faculdade, obviamente, você vai utilizar a cultura visual que acumulou até aquele momento. Muitos de nós, periféricos, não terão a mesma bagagem cultural que os alunos de classes mais altas, que frequentavam determinados circuitos culturais ou que já viajaram por vários países, mas isso não quer dizer que não tenhamos repertório visual. Na verdade, as nossas subjetividades, vivências e saberes não são reconhecidos como cultura, ou são vistas como de baixo valor. Isso não é insignificante, é uma forma de classificar e diferenciar quais valores estéticos vão ser aprovados e legitimados. Aqui lembro do conceito de capital cultural, segundo a teoria de Bourdieu, que
“indica acesso a conhecimento e informações ligadas a uma cultura específica; aquela que é considerada como a mais legítima ou superior pela sociedade como um todo. Uma das características consideradas típicas do grupo dominante é conseguir se legitimar e legitimar sua cultura como a melhor (…), que tem valor simbólico. (…) Aqueles que têm acesso a esse capital cultural, a essas informações, terão mais valor, mais “distinção”, assim como acesso facilitado a outros recursos escassos. Nesta acepção, o conceito de capital cultural deixa de ser apenas uma subcultura de classe e passa a ser uma estratégia, um instrumento de poder”
Não à toa, também tenho dificuldade de me identificar com a produção criativa de muitos estúdios. O que produzem acaba sendo um reflexo da formação visual e cultural de uma determinada classe social, que carrega gostos, vivências, recortes raciais e relações com a cidade bem específicas. Como periférica, considero a circulação na metrópole, tanto os lugares que as pessoas percorrem quanto o tipo de transporte, um marcador de classe significativo. Um exemplo de como essa diferença de experiências influencia nas representações visuais é o fato de que o Rio de Janeiro é muitas vezes retratado como é visto por um morador da Zona Sul / Centro da Cidade / Barra da Tijuca. As percepções das pessoas que moram em outras áreas da cidade ou ainda em outras cidades da região metropolitana ou do estado são negligenciadas ou ainda representadas de forma deturpada. Esse Rio de Janeiro retratado de forma insistente como praia-Cristo-Pão de Açúcar ignora as características visuais, simbólicas e históricas das outras áreas do estado. Nesse sentido, o que tem sido gerado nos estúdios me parece muito descolado do que tem sido criado no campo da cultura e da arte no país – como o resgate de narrativas apagadas pela história e o empoderamento das expressões culturais periféricas. O design parece mais preocupado em se encaixar no mercado internacional, elaborando projetos com aspectos muito uniformizados.
Em dados de 2015 (link), 75,1% dos estabelecimentos.
Em 2011 (link), este eixo respondia por 58% dos postos de trabalho na área criativa.
Um outro ponto que está totalmente atrelado à manutenção dessa mesma narrativa de classe no setor criativo é a concentração dos escritórios de estúdios e empresas ligadas ao setor criativo também na mesma região. Hoje, a cidade do Rio de Janeiro concentra o maior número2 de estabelecimentos relacionados à indústria criativa da região metropolitana, agrupados principalmente no eixo Centro – Zona Sul – Barra da Tijuca3. E isso acaba trazendo algumas consequências problemáticas tanto para os profissionais individualmente quanto para o mercado de trabalho criativo.
Artigo “COMPERJ e Arco Metropolitano: Perspectivas incertas e inacabadas de descentralização econômica na RMRJ” – Almanaque Agenda Rio – Políticas Públicas no Rio Metropolitano (2007 – 2017), Editora Mórula, 2018.
Também do Almanaque Agenda Rio, artigo “Novos modos de circulação para um novo horizonte de bem-estar na cidade”.
Do ponto de vista da vida prática, essa centralização “resulta na sobrecarga dos fluxos pendulares diários em uma mesma direção e horários, decorrentes de massivos deslocamentos casa-trabalho“4, ou seja, ela reforça a dinâmica de deslocamento diário que a população faz hoje da região metropolitana do Rio em direção aos bairros do Centro e Zona Sul da capital, especialmente os moradores da Baixada, que são os que perdem mais tempo em translado casa-trabalho do país5. Essa longa duração se dá principalmente porque a região tem um sistema de mobilidade desigual e precário, do qual o seu planejamento e suas escolhas de investimentos não priorizaram a melhoria dos transportes públicos de média e alta capacidade, usados pela maior parte dos trabalhadores da metrópole. Um exemplo desse sucateamento é o trem, um dos principais meios de transporte do Grande Rio que transporta diariamente 600 mil pessoas e que tem problemas diários e antigos com superlotação, trens quebrados, atrasos, suspensão de serviços sem aviso prévio, entre outros. O impacto disso nos trabalhadores em geral e, obviamente nos criativos, são jornadas de horas de locomoção, cansaço, estresse, menos tempo de descanso e uma grande dificuldade de conseguir e se manter no emprego, já que isso afeta a produtividade e o comprometimento com horários. Além disso, essas dificuldades acabam se constituindo como um eficiente instrumento de segregação socioespacial, afinal quem vai querer ir à praia ou a um museu no fim de semana e encarar 2 horas no transporte depois de ter feito isso a semana inteira?
É improvável pensar em projetos de design realmente mais plurais, que possam trazer soluções para questões que atinjam outros locais e que contemplem outros grupos sociais, se eles partem sempre do mesmo lugar e das mesmas pessoas – como já dito anteriormente. Soluções aplicadas atualmente no mercado de trabalho, como programas que promovem a diversidade de equipes dentro das empresas, parecem trazer uma oportunidade de superação das desigualdades. Por outro lado, podem esconder preconceitos e impedir que possamos realmente enfrentar as estruturas que sustentam essas disparidades. E essa dificuldade de mudança se torna mais evidente quando percebemos que os donos e as donas das grandes agências e estúdios e/ou que aqueles ocupam os cargos de decisão dos projetos são pessoas com muitos privilégios e os projetos vão continuar reproduzindo a concepção de mundo delas.
Artigo “Uma política cultural para as práticas criativas” – Barbara Peccei Szaniecki (Lugar Comum nº 35-36), 2011.
Como alternativa a isso, poderíamos pensar na criação de estúdios e agências fora dessa região central, porém, para que isso aconteça, é necessário mais do que força de vontade individual dos empreendedores ou trabalhadores criativos. Até porque, ao contrário do discurso incentivador e de sucesso sobre empreendedorismo, a escolha por essa forma de atuação exige contatos influentes, recursos (sobretudo uma reserva de emergência), planos B, C, D… tudo o que pessoas pobres, que normalmente estão mais vulneráveis, não têm. Por isso, é fundamental a criação de uma política pública com foco nas práticas criativas6. Primeiro com investimentos no básico: infraestrutura como internet, luz e água – já que as regiões periféricas e suburbanas são as que têm a maior precariedade desses itens. Depois no fortalecimento e modernização dos setores de economia criativa e empreendedorismo das prefeituras desses lugares. E, finalmente, as empresas contratantes precisam fazer um esforço para buscar profissionais criativos de outras localidades e com outros perfis, não somente, mas sobretudo em projetos que abordem questões sociais e culturais sobre grupos minorizados.
Acredito ser fundamental ter consciência de que, embora a indústria criativa crie uma atmosfera de inovação ao seu redor, ela está completamente imersa dentro de um modo de relação social e de trabalho que vai reproduzir e reforçar relações de classe e de poder. E também que se, por um lado, políticas públicas como as cotas e o PROUNI favoreceram a entrada de alunos pobres e negros nas universidades, por outro, alguns cursos de design (talvez a maioria) não estavam preparados para acolher as necessidades e questões que esses alunos iriam trazer. Então, cientes desse cenário, é urgente pensar em alternativas e mudanças que possam contemplar os não-privilegiados. E aqui gostaria de deixar explícito que, infelizmente, não tenho esperança de que essa mudança será feita por boa vontade, nem pela academia nem pelo mercado. Pelo contrário, creio que nós mesmos, designers que estamos na periferia da sociedade e do capital, é quem vamos precisar conceber essa nova forma de atuação, forçando o debate sobre as nossas demandas. Como a cultura da Baixada Fluminense me ensinou, vai ser preciso imaginar novos mundos, gerar nossos próprios métodos, forçar barreiras e cavar os espaços para criar novas possibilidades de pertencer e atuar na área criativa. Foi a partir desse aprendizado que, junto com uma amiga, criei a DesignLinhadas, um estúdio criativo na Baixada Fluminense que se propõe a despertar imaginários criativos e positivos sobre a periferia através do design e das artes visuais. Há seis anos, estamos provando que um modo de trabalho que consegue acolher as nossas necessidades, desejos e identidades é possível.