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26 de abril de 2021

Você é o que você vê?

Ainda outro dia, revelou-se um novo panorama do quadro clássico de Vermeer, Moça com brinco de pérola. Uma equipe de cientistas passou dois anos munida de microscópio com lentes poderosas para escanear mais de 9 mil fotografias desse trabalho do século 17. O resultado, uma imagem com 10 bilhões de pixels, agora disponível para consulta pública na internet. É um poder de análise inédito na História da Arte, num nível de detalhamento que o olho humano é incapaz de atinar. Descobriu-se, por exemplo, que a tal moça tem cílios tão delicados que você não veria nem se tivesse a remota permissão para encostar os cravos do seu nariz na pintura. 

Outra observação curiosa dada pelos pesquisadores em entrevistas é que a pérola que dá charme à moça e assunto ao quadro é uma grande ilusão de óptica construída com pinceladas translúcidas. Uma pontuação interessante se pensarmos que, no final das contas, qualquer pintura figurativa feita na história da humanidade é uma grande ilusão de óptica construída com pigmentos. Assim como fotografias ou a própria tela eletrônica em que você me lê neste momento. A história pictórica da humanidade pode ser resumida à frase “se você vê é porque está com disposição de ver”. Ou de ser ligeiramente enganado a fim de ver. 

Fico imaginando o que John Berger, se vivo fosse, refletiria sobre essa descoberta. Provavelmente, penso, sentiria vontade de reescrever boa parte dos ensaios do seu livro Modos de ver, em que originalmente gasta muita saliva para fazer o leitor enxergar que ponto de vista é um conceito absolutamente fluido e temerariamente abstrato — ainda mais em relação a produções artísticas. “O jeito que vemos algo é afetado pelo que sabemos e no que acreditamos” é um dos conceitos que abrem e guiam a linha de pensamento do livro. Uma ideia que pode soar um pouco corriqueira se você parar para pensar de verdade sobre o assunto, mas algo que dificilmente — admita — para para pensar. 

Estamos acostumados a aceitar as imagens como elas são, ainda mais em tempos de superbombardeamento de informações por todos os lados. E ainda mais habituados, para a grossa maioria de nós que nada na parte rasa da reflexão acadêmica, a aceitar explicações definitivas sobre determinados assuntos, importadas da cabeça de alguém que, em teoria, entende sobre eles. Mas Berger pontua — em explicações que deveriam ser relidas de tempos em tempos — que essa fluidez de pontos de vista é tão normal quanto necessária. Analisar uma pintura de cinco séculos (ou a reprodução de uma pintura, como faz questão de deixar claro que são coisas absolutamente díspares) com o olhar e os preceitos morais de hoje é potencialmente diferente de analisá-la ontem, vinte anos atrás, cem anos atrás. E isso vai variar de acordo com o contexto do mundo em que você vive, a religião do momento ou o tipo de governantes que flutuem sobre a sua cabeça.

Estamos acostumados a aceitar as imagens como elas são, ainda mais em tempos de superbombardeamento de informações por todos os lados. E ainda mais habituados, para a grossa maioria de nós que nada na parte rasa da reflexão acadêmica, a aceitar explicações definitivas sobre determinados assuntos, importadas da cabeça de alguém que, em teoria, entende sobre eles.

O próprio livro do crítico, mesmo não sendo uma pintura a óleo, ganha novas nuances de acordo com a época em que se lê. Quando foi publicado, em 1972, o mundo era mais “simples” — esteticamente falando. O pensamento cultural colonizador ainda dominava, costumes, criações e pensamentos de fora das fronteiras da Europa ou dos Estados Unidos eram absorvidos ou relidos sob o preceito de exotismo, e a questão da reprodutibilidade da imagem ainda não era exatamente difundida (de novo, em comparação histórica com hoje). Claro, para quem vivia na época, a tecnologia já era fascinante. Câmeras fotográficas eram razoavelmente populares (entre a classe média), o cinema e a televisão eram difundidos em velocidades estonteantes, os impressos, riquíssimos, e o acesso à arte clássica, muito mais acessível do que no Renascimento. 

Hoje, os preceitos do livro, ainda que importantes para manter no lugar a cabeça de qualquer um que queira alimentar um pensamento analítico, preservam um mix de inocência com assustadora realidade. Lembra daquela ideia de que a história se repete como tragédia ou como farsa? Berger, nos anos 1970, pula das páginas do livro para lhe mostrar que, olá, estamos vivendo a farsa (a possibilidade da tragédia, eu deixo por tua conta). E o seu smartphone prova que eu tenho razão. 

Pegue, por exemplo, o capítulo em que o ensaísta se debruça sobre a cultura da nudez nos quadros clássicos e compare com a cultura que criamos sobre os nossos corpos na última década graças à difusão das câmeras de bolso e aos libertarianismos (válidos e necessários) de sua exposição em redes sociais, de maneira pública ou privada. Descontando-se a discussão sobre o diferente potencial de interpretação em relação ao gênero do corpo exposto, ele pontua uma observação cultural interessante (em termos ocidentais): há uma dessemelhança notável entre o corpo despido e o corpo nu, e este último só vem à tona por conta do olhar do espectador. Ou seja, grosso modo, um nude só é um nude se quem está olhando quer ou sabe ver um nude. E esse pensamento está cada vez mais interligado ao modo como nos expomos nas redes sociais diariamente. 

Assim como determinados artistas se utilizavam da nudez para transmitir ao observador uma sensação de posse sobre aquele corpo, ainda que temporária e abstrata, hoje eliminamos a figura do atravessador e somos, em simultâneo, observados e observadores. Sempre correndo atrás de autovalidações através das validações alheias sobre uma imagem que, convenhamos, nem sempre condiz com a realidade. Seja de propósito, com uso de retoques, ângulos e filtros mil. Seja sem querer, seduzidos e hipnotizados pelas angulares das câmeras dos celulares que, pela primeira vez na história da humanidade, vêm moldando e distorcendo como enxergamos a nós mesmos. De novo, vemos sempre o que queremos ver — mas agora com a adição de um novo jeito de ver-nos. 

Os pintores, que produziam retratos que eram fiéis até certo ponto, mas distorcidos pelas suas percepções morais e as suas técnicas, foram substituídos pelo olhar mecânico das lentes do smartphone. E seguimos continuamente nessa ultrarreprodutibilidade, mostrando-nos (nus ou não) e querendo entender como os outros veem o modo que nós queremos exibir da forma que gostaríamos que fôssemos vistos. Berger ficaria louco com tantas “formas de ver”. Porém, depois de se habituar às interfaces do Instagram e dar meia dúzia de scrolls no feed, ele pegaria seu livro e falaria “olha, está tudo aqui no sétimo capítulo”. 

Ali, faz uma crítica severa ao capitalismo por meio de uma contraposição das pinturas clássicas às formas de comunicar da publicidade de então. Com algumas poucas palavras trocadas, essa análise se encaixaria com perfeição ao capitalismo das vidas que encarnamos hoje por vontade própria (entre algumas aspas), transformando a nossa própria realidade em cases de publicidade a ser consumida pelos nossos seguidores/espectadores ao mesmo tempo que consumimos e reagimos à publicidade alheia. 

Há uma lista irônica em que ele traz os símbolos que vêm desde os primórdios das pinturas analisadas e se mantinham na imagem explorada pela publicidade. Cito algumas:

– Os gestos das modelos e das figuras mitológicas;

– O mar, oferecendo uma vida nova;

– A ênfase sexual dada às pernas femininas;

– A equivalência entre álcool e sucesso;

– O uso românico da natureza para criar um lugar onde a inocência pode ser reencontrada. 

Soa familiar para você? Pelo visto o seu feed não soa mais tão único, não é mesmo?

Retrato de John Berger por Maria Júlia Rêgo para o Clube do livro

Este texto foi publicado originalmente como leitura complementar do mês de fevereiro de 2021 do Clube do Livro do Design. O Clube, realizado por Tereza Bettinardi, promove debates mensais a partir da literatura do Design.

é jornalista e observador cultural, com formação pela USP e especialização em moda. Trabalhou quase 20 anos ao lado de Gloria Kalil e hoje produz conteúdo e dá consultorias via sua plataforma de slow media Calma., além de colaborações eventuais no mercado editorial, passando por Folha de S.Paulo, Vogue, Elle e Publifolha, entre outros.
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