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27 de outubro de 2021

Uma identidade, mil encruzilhadas

Entre o ser e o não-ser, reconheci a vida do jovem Franz Fanon na minha própria experiência no Design.

Ilustração por Tiago Sansou

Aquele avião tinha mais pessoas negras do que estávamos acostumados a ver. Eu estava em uma viagem de volta para Salvador com a minha irmã. Fazia meses que não conversávamos e havia um estranhamento que foi nosso ponto de partida. Aviões não eram lugares estranhos para nós. Nossa mãe tem ótimas histórias sobre como quase nasci prematuro em uma série de conexões voltando de Rostock, na antiga Alemanha Oriental, um tempo depois da queda do muro. Dois anos depois, estávamos em Luanda, na Angola, durante a guerra civil. Lá, tive malária e quase morri, naquele mesmo hospital minha mãe descobriu que estava grávida da minha irmã. Foi daí que voltamos para Salvador. Mas essa viagem era diferente: fazia meses que eu e minha irmã não conversávamos e havia um estranhamento que foi nosso ponto de partida.

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O Outro, aqui é da categoria psicanalítica encontrado em Freud ou Lacan, mas também na filosofia Sartriana. Ou, por que não, nas cosmovisões Bantu-Congo demonstradas por Bunseki Fu Kiau.

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Frantz Fanon foi um psiquiatra e filósofo político martinicano. Tornou-se intelectual orgânico da Frente de Libertação Argelina, inspirando movimentos de libertação nacionais na Palestina, África do Sul e Estados Unidos.

Diferente de nós, aquela parecia ser a primeira viagem deles. Tinha uma senhorinha apertando um crucifixo. Um rapaz mais velho apertava o rosto contra a janela do avião para assistir à partida do voo com a empolgação de uma criança. Ruídos difusos, som dos flashes e selfies. Perto de nós, existiam mais corpos como os nossos. O motivo do nosso estranhamento foi o Outro1 e, não demorou muito para que minha irmã e eu retomássemos nossas conversas falando sobre reconhecimento, representatividade e identidade. Há quem conheça Fanon2 exclusivamente pela violência revolucionária, mas foi a partir desse tipo de conversa que o conheci.

“[…] Em todos os países ditos civilizados ou civilizadores, a família é um pedaço da nação. A criança que deixa o meio familiar reencontra as mesmas leis, os mesmos princípios, os mesmos valores. Uma criança normal, crescida em uma família normal, será um homem normal. Não há desproporção entre a vida familiar e a vida nacional […] constatamos o inverso no caso do homem de cor. Uma criança negra, normal, tendo crescido no seio de uma família normal, ficará anormal ao menor contacto com o mundo branco.” [Frantz Fanon]

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Bairro de Luanda. Eternizado pelo poema de Agostinho Neto, primeiro presidente de Angola.

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Ngala (ou Lingala) é uma das grandes línguas bantus. Em Angola existem outras línguas mais influentes, como o Kimbundo, Umbundo, Kikongo, Côkwe e Nganguela. A língua oficial é o Português.

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Ioiô, nhô ou nhonhô eram termos utilizados pelos escravizados e seus descendentes para tratar, com reverência, os homens brancos, especialmente patrões e proprietários. Diminutivo de sinhô, nhonhô se referia mais comumente aos homens mais jovens da casa-grande.

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Racionais Mcs – capítulo 4 versículo 3.

Quando era bem pequeno, em Angola, era do Kinaxixi3. Lá, eu era “o brasileiro” e – apesar de minha pele escura e retinta – por vezes era também “o mulatinho”. Seja pelos meus trejeitos, sotaque ou origem, isso causava nas pessoas dois tipos de reação: havia quem morreria para renascer brasileiro, e havia quem dizia “não se confia em mulato”. A primeira era muito mais comum; nunca entendi plenamente o que significava e de onde vinha a segunda. Talvez tenha a ver com o fato da minha irmã ter aprendido ngala4 brincando na rua, por isso levava palmatória das professoras na escola. Nessa mesma rua, aprendi inglês com um amigo Zairense, o que me tornou o xerifinho da sala.

Já em Natal, era da Zona Sul. Em Salvador, era da Orla. Em alguma medida ocupava o lugar do branco. Vez ou outra, quando fazia birra, minha mãe me chamava de ioiô5; até ouvia alguns tios dizerem: “ioiô, não, pô, vai um ser preto Tipo A6”. Odiava e temia esse lugar. Não sei o que mais me afligia: se era ser chamado de ioiô ou a ideia de que teria que passar a ser o Ioiô. De certa forma esse mal-estar ainda me acompanha.

Sou negro, sou micreiro, sou nordestino, sou angolano, sou homem, sou cis, todas essas identidades dizem o que sou, mas nenhuma delas diz quem sou, pois sou a síntese dessa mutiplicidade. Enfim, contarei a história sobre ser um jovem negro e nordestino que por coincidência era micreiro e queria se tornar designer. 

Para Fanon, as identidades são históricas; identidade é tomar consciência de si na relação com o que lhe é exterior. Sendo assim, é intrinsecamente ligada a outras pessoas, que estão intrinsecamente ligadas à sociedade, que, por sua vez, está intrinsecamente ligada ao contexto histórico. Essas identidades surgem da necessidade de separar aquilo que é igual do que é diferente. O que é e o que não-é. E é justamente na zona do não-ser, especificamente na negação de sua sujeição, que reside a liberdade que proporciona novas formas de se estabelecer no mundo. Logo, em hipótese alguma as identidades podem ser essencializadas e, por isso, podem ser superadas.

De forma ainda mais simples: Fanon aponta que é o branco que cria o negro através do racismo.  O branco foi quem achatou nagos, bantus, berberes em Negro – ao criar o racismo – da mesma forma que helenos, francos, ibéricos tornaram-se o Branco – como ideal de humanidade. Ao criar o negro como objeto, o branco objetifica também a si, só que numa situação de poder e privilégio. A branquitude enclausura ambos na negrura e na brancura, tornando-as essências fixas e desistoricizadas, assim, perdendo de vista a noção relacional das identidades. 

Por outro lado, o negro cria a Negritude quando se recusa a ser objeto do branco, e ousa se afirmar enquanto sujeito. A função da negritude é negar a negação colonial para romper com o fechamento criado pelo branco: libertar o negro da negrura e o branco da brancura. Isso só é dialeticamente possível com a negritude – que é, portanto, necessária e incontornável. Essa recusa é a única que tem o poder de negar a negação colonial, recolocando a identidade no horizonte histórico e político.

Sou negro, sou micreiro, sou nordestino, sou angolano, sou homem, sou cis, todas essas identidades dizem o que sou, mas nenhuma delas diz quem sou, pois sou a síntese dessa mutiplicidade.

Enquanto crescia, pareciam existir apenas duas instâncias possíveis de ser negro: o negro raiz e o negro Tipo A. O primeiro era aquele periférico, seu corpo era dança, era axé, pagode, reggae; seu corpo era um corpo do trabalho, da exploração, da malandragem, do futebol, da capoeira, da ginga, do candomblé; sua mente e seu desejo eram ingênuos e simples; sua erudição, ainda menor. A sua essência era a expressão máxima do apagamento e desumanização. Em seu corpo, habitava uma estéril zona de não-ser.

O negro Tipo A faz parte da elite. É sensual, seu corpo é a manifestação do desejo masculino, mulheres se jogam aos seus pés só para serem pisadas como mero tijolo da estrada dourada rumo ao arco-íris, enquanto ele escolhe qual delas vai expor em sua parede da sala como um troféu de caça. Embora as mulheres brancas e negras se digladiem para se tornar a cabeça-prêmio da sala, é mais comum que a branca vença. Controversamente, homens brancos desejam ter o seu falo, ser o seu falo. Rico, ele é dez vezes melhor do que qualquer branco em qualquer jogo que eles queiram jogar. Algo entre um Michael B. Jordan e um Pelé. Em algum nível, ele está lá para servir de referência para todos os outros irmãos que têm sonhos ingênuos de liberdade e guiá-los para o que realmente importa: poder e reconhecimento.

“Em termos de consciência, a consciência negra se considera como densidade absoluta, plena de si própria, etapa anterior a toda fenda, a qualquer abolição de si pelo desejo. Contra o devir histórico, deveríamos opor a imprevisibilidade. […] Eu tinha necessidade de me perder absolutamente na negritude. Talvez um dia, no seio desse romantismo doloroso… ” [Frantz Fanon]

Para Fanon, a negritude – como negação da negação – não pode ser o horizonte final, pois criaria um novo narcisismo, apenas invertendo este da branquitude. Mas há um momento em que ela precisa negar a si própria. 

Assumir-se enquanto negro não pode nos privar de nos vermos para além da negrura, nos reconhecermos enquanto universais, e não apenas naquilo que o branco disse que é negro. A consciência de si não é fechamento, mas possibilidade para o diálogo com o Outro. Romper com o fechamento não é abrir mão da Negritude, no entanto, não podemos esquecer que o “Negro” não é uma essência, mas uma criação limitadora de um Outro. 

Tudo isso me faz titubear para falar da relação entre nosso trabalho e as opressões sistêmicas à nossa miríade de identidades. Em vez de falar sobre o Design, tenho buscado pensar a raiz dessas opressões radicalmente e, a partir desse ponto, perguntar se é – e como é – necessário repensar um projeto de sociedade. O que se convenciona, ou não, chamar de Design vem por consequência. Mas este é só o primeiro dilema. O segundo dilema é a complexidade que esses temas suscitam. De novo, a expectativa é envolver uma série de disciplinas como história, sociologia, economia, biologia, antropologia, psicologia; tudo isso acompanhado de um modelo particular de racionalidade. Ao mesmo tempo, como designers, esperamos que elas venham construídas a partir de todo um storytelling

Se o nosso primeiro dilema no Design é não conseguir enxergar o papel das opressões na estrutura social, um remédio possível é justamente tomar as armas da crítica que nos possibilitam enxergá-las, e apontá-las para dentro do Design. Aqui, usarei as armas de Fanon – sua zona de não-ser – para pensar como a interdição do reconhecimento opera nas relações de design. Para o segundo dilema, farei coro aos que rejeitam uma suposta neutralidade, àqueles que são chamados amadores e também àqueles que não encaram identidade enquanto ilha. Relacionar as opressões sistêmicas com nossa miríade de identidades significa elaborar formas alternativas de contá-las e, por consequência, descobrir particularidades e conflitos. Só assim para entendê-las de verdade.

Em Salvador, eu morava perto do centro de Lauro de Freitas, com minhas tias e tios. Um dos meus parentes era da área de TI, e no computador da família tinha o Photoshop CS2. Eu adorava jogos, quadrinhos, cinema, anime, mangá, tecnologia. Eu adorava softwares de criação e edição de jogos como o M.U.G.E.N, RPG Maker e o WarCraft III Editor. Daí vieram minhas primeiras tentativas de edição e criação de imagens. Além disso, ajudava minha família a abrir, escrever e enviar e-mails, e, às vezes, criar slides e apresentações para aulas no PowerPoint.

Meu primeiro grande projeto foi o que um “designer de verdade” chamaria de branding e de um sistema de identidade visual da lan house que minha tia resolveu abrir no centro de Lauro de Freitas. Fiz o papel de parede da tela dos computadores, a logomarca, cartão de visitas, cartazes, banners, camisetas e todas as coisas que se espera. Meu pagamento era poder ficar lá e ver quantos animes eu quisesse, além de usar computadores bem melhores do que o da minha casa. Eu ainda recebia uma mesada quando o trabalho era duro demais. Foi a primeira vez que eu fui pago para fazer qualquer coisa. Eu me sentia o máximo.

Eu era um rato de bancas de revista e bibliotecas. Passava o dia todo lendo os quadrinhos do homem-aranha ou qualquer Shonen que parasse na minha mão; lembro de ler a trilogia Arqueiro do Bernard Cornwell na biblioteca pública ao lado da minha casa. Minha irmã pensava que eu queria ser japonês, uma tia achava que eu deveria estar é querendo ser branco, enquanto uns tios achavam que eu não deveria gastar tanto tempo lendo; eu tinha era que estar jogando futebol, aprendendo a jogar capoeira – “como assim seu estilo predileto não é Reggae? Iiiih, caiu no meu conceito”. Eu era o que esperavam de mim, e também o que eu constituía de mim. Mas, ainda assim, nenhuma das duas coisas. Nessa relação, alguma coisa daquelas duas instâncias do que se faz do negro foi perdendo espaço para dar lugar a um novo território de identidade. 

Essas experiências e tudo que elas significavam me faziam sentir mais próximo a essa coisa inenarrável que, às vezes, a gente chama de Design. Na adolescência, precisei fazer um transplante de córnea, mas isso só alimentou meu desejo de trabalhar com o que me era proibido. Depois que tomei essa decisão, vi que não existiam oportunidades tão boas em Salvador. Todos os relatos que ouvia eram de agências de publicidade que só contratavam empregados locais numa condição de subemprego e precariedade; se fosse para fazer Design™, só valeria a pena com agências do Sul e do Sudeste. Por algum motivo, era lá que se fazia Design. Ainda por cima, descobri que todas as minhas glórias na lan house eram coisa de micreiro.

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Futebol na Bahia.

Graças ao Sisu, fui para Curitiba, aquela cidade de que sempre ouvíamos que “o povo é civilizado, diferente daqui”, “o povo é limpo, diferente daqui”, “as meninas são bonitas, diferente daqui”, “Aqui o povo só quer saber de dançar pagode, bater um baba7 e esperar o carnaval, diferente de lá”, “lá todo mundo é branco, a Rússia Brasileira”. De vez em quando, alguém falava que eventualmente eu poderia esbarrar com alguns nazistas; mas a cidade-modelo era assim mesmo. Desbancar racistas e adquirir reconhecimento eram certamente coisas que eu queria fazer; então, fui.

Quando tinha a mesma idade, meu pai saiu de Angola e foi para a Alemanha Oriental. Minha mãe saiu do interior da Bahia para a capital do Rio Grande do Norte. Eu pensei que naturalmente aquela seria a minha vez de “superar brancos e mostrar do que é feito um negro”.

“Em um grupo de jovens antilhanos, aquele que se exprime bem, que possui o domínio da língua, é muito temido; é preciso tomar cuidado com ele, é um quase-branco. Na França se diz: falar como um livro. Na Martinica: falar como um branco.” [Frantz Fanon]

“Reconheci” Fanon justamente quando morei em Curitiba e fiquei fascinado pelas nossas semelhanças. Tratando direto com o proprietário, consegui um apartamento que era bem mais barato que o comum. Tinha muitos pontos de travestis e prostituição por perto e ficava numa  região sabidamente perigosa dentro de um bairro nobre, perto da faculdade. Bem, se eu não tinha dinheiro para morar perto da faculdade nos lugares mais confortáveis, com imobiliária, em um condomínio, não havia decisão a se tomar. Até então, tinha trabalhado em alguns estágios que pagavam um pouco menos que meio salário e, de vez em quando, fazia alguns freelas ou bicos em bares.

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Aimée Césaire foi poeta e político da Martinica. Juntamente a Léopold Senghor, foi ideólogo do conceito de negritude, sendo a sua obra marcada pela defesa de suas raízes africanas. Sua obra mais famosa é Discurso sobre o colonialismo’.

Lembro de chegar do trabalho e ver um vídeo do Richard Pithouse falando sobre as vivências de Fanon. Nascido numa família de classe média na Martinica, havia sido aluno de Aimé Césaire8 – que foi seu contato com o movimento de Negritude – antes de se mudar para a França para estudar psiquiatria. Até então, Fanon se identificava como francês. Mas, ao pisar na França, percebe que não poderia ser francês, por ser negro. Os prédios eram 3 vezes mais caros para negros na França, o que o leva a um prédio que havia sido um bordel. É nesse prédio que ele escreve Peles negras, máscaras brancas.

Obviamente que meu caso é diferente: sempre me percebi enquanto alguém com muito orgulho de ser uma pessoa negra, com muito orgulho por ser angolano e potiguar com raízes baianas, orgulho de ter visto os movimentos de Negritude em Salvador. Minha família me serviu de Aimé Césaire. Mas, de uma maneira peculiar, sempre existiu alguma forma de estranheza com o meu lugar racial: eu me percebia enquanto uma pessoa racializada, talvez, do mesmo modo que Fanon se sentia Francês. E por isso, só fui me sentir realmente negro em Curitiba. 

Quando alguém oferece explicações sistêmicas sobre essas opressões sistêmicas, imediatamente terá que nadar contra uma turbulenta corrente de discursos fundados apenas em experiências individuais.

Nos últimos anos, algumas pessoas passaram a se interessar em ouvir e pensar a respeito de raça, classe ou gênero. Afinal, todos nós temos alguma experiência com essas identidades e milhões de ideias sobre como elas se parecem. Entretanto, muitas vezes, esse diálogo é sufocado por amálgamas de um multiculturalismo liberal ou do mito da democracia racial Freyriano ou mero reacionarismo.

Então, quando alguém oferece explicações sistêmicas sobre essas opressões sistêmicas, imediatamente terá que nadar contra uma turbulenta corrente de discursos fundados apenas em experiências individuais. Por exemplo, ouvir coisas como “esse não é seu local de fala”, “Não fale mal da Beyoncé” ou também “Design de verdade é feito para o mercado” e assim por diante. Tem quem diga que o trabalho do Designer é projetar, solucionar problemas; completamente errados, o trabalho do Designer é construir armadilhas.

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Algumas áreas de design têm se dedicado a elaborar modelos de práticas para aplicação em diversos contextos. Esses modelos são concebidos como ferramentas; daí a ideia de que designers podem “resolver problemas” com sua “caixa de ferramentas“ (toolkit).

A ideia do toolkit9 supõe que apenas determinadas condições, métricas e métodos de design são capazes de produzir conhecimento. Uma abordagem como essa cria um paradoxo engraçado: defende que apenas a criação de condições altamente artificiais pode detectar o que as pessoas universalmente precisam em seu cotidiano, apartadas daquelas condições. A partir disso, cria-se um conjunto de explicações “sistemáticas” que valerão como verdade; todas as outras condições são qualificadas como “anedotas” e suas intenções serão descartadas. Ou seja, produz a partir de um olhar paternalista das necessidades do Outro. 

Nessa visão, os “amadores” devem ser tutorados para contar suas histórias. Entretanto, esse paternalismo do design torna impossível que os “amadores” determinem o que são seus próprios preconceitos, ideologias e incapacidades e o que constitui uma espécie de universalidade particular a partir de suas emoções, tradições e hábitos. O resultado é um empirismo subtrativo cujo objetivo é simplificar, acelerar e produzir. Ao mesmo tempo, pode servir para contar uma história sobre o valor da “empatia” ou da “escuta ativa” do Outro.

[As ferramentas de Design Thinking] são métodos em que pessoas estranhas a determinados ambientes entrevistam “informantes nativos”, imaginando que eles fornecerão os dados necessários para tornar aquele espaço “melhor”.
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Oriundo da psicologia cognitiva, Donald Norman ganhou notoriedade com “O design do dia-a-dia”, em que aponta diferentes níveis de necessidades de usuários. Isso o levou à consultoria de grandes corporações e à fundação da IDEO, que presta serviços de design thinking e ensina essas práticas.

Com isso, temos um prato cheio para uma verdadeira armadilha da identidade. As coisas podem ficar um pouco mais complicadas se partimos do pressuposto de que o Design tem sido usado como ferramenta para domesticação produzindo um imaginário neocolonialista. Se ontem existiam padres jesuítas, hoje temos designers que “em vez de negar o futuro, ou de ignorá-lo, domesticam-no de antemão […] O futuro deixa de ser ameaçador, perde o caráter de incógnita, não traz consigo qualquer mudança substancial no status dos grupos dirigentes…”, segundo Álvaro Vieira Pinto.

Em português simples, visualize as ferramentas de Design Thinking, Personas, User Journeys, mapas de empatia. Todos esses são métodos em que pessoas estranhas a determinados ambientes entrevistam “informantes nativos”, imaginando que eles fornecerão os dados necessários para tornar aquele espaço “melhor”. O designer chega lá, todo pomposo, e acha que vai resolver a vida dessas pessoas porque fez um curso com o Don Norman10 ou porque vai criar um app. Agora, imagina isso numa favela, num assentamento Xukuru, numa prisão, numa escola pública, numa zona rural do interior do Maranhão; o que você acha que seu Design vai fazer lá?

A proposta de Fanon é encruzilhada entre identidade e diferença, entre particular e universal, entre a subjetividade e a objetividade, entre a política e o afeto, entre o passado e o futuro. Acredito que é na mesma encruzilhada que o designer produz o micreiro através dos contornos da identidade, que Prêmios de Design criam ou reforçam a exclusão do Norte e do Nordeste. É aí que o design se torna o objeto da branquitude e por vezes prende a negritude em objetos e fetiches. Fanon matou esse urubu ontem, mas para isso usou lasca de pedra da estátua de Borba Gato.

Nas minhas primeiras euforias, também disse que “Design é tudo”, “Todos precisam de Design”, “Design é minha vida!”. Ao voltar a Salvador no carnaval, comentei que um bloco afro “poderia fazer cartazes mais ‘clean’ e ‘minimalistas'”, “Olhem lá o Baianasystem e sua identidade visual, suas capas de disco, não é perfeito?!”, “O futuro do afro é fazer o mesmo, não é?!”

As respostas para essas armadilhas se deram em caminhos muito turbulentos, mas presentemente eu sei que posso me considerar um sujeito de sorte, não só por me sentir são e salvo e forte enquanto abutres ainda rondam os nossos corpos. Mas tenho pensado comigo que tenho Virgílios novos e antigos que são afro-brasileiros e andam do meu lado. E assim já não posso morrer como no ano passado.

Não seria exagero dizer que esse texto seria impossível sem o contato com “A ‘interdição do reconhecimento’ em Frantz Fanon: a negação colonial, a dialética hegeliana e a apropriação calibanizada dos cânones ocidentais” do Deivison “Nkosi” Faustino.

E se a sorte ainda não tivesse me sorrido o suficiente com o mero contato deste artigo, ainda tive o privilégio de poder contar com uma enorme troca e conversas sobre o reconhecimento na Fenomenologia do Espírito em Hegel e como o jovem Fanon tratou o assunto, sou muito grato por este que é sabidamente um dos maiores especialistas da vida e obra do grande autor martinicano.

A euforia das idas e vindas esconde uma violência: eu não queria mais ser não-ser, queria ser humano, queria me tornar sujeito. Para isso, teria que me tornar branco, me diziam que eu poderia até me tornar preto, mas em um modelo específico de preto, aquele preto A. Que não é branco, mas, ao menos, não seria aquele preto nordestino, eventualmente poderia ser aquele preto designer. Em algum momento resolvi negar todos esses lugares. Mas ao mesmo tempo, não queria ficar preso em uma África onde eu sequer um dia vivi, mesmo com a experiência da ida e da volta, por não ser produto de mim, e nem do meu próprio tempo. De minha zona de não-ser sai um Micreiro que pede ao meu Designer “peça licença”, para que os dois em conjunto falem ”Laròyé Exu!”.

Exu fala todas as línguas. Exu faz cartazes, canta em discos, Exu estava em Bandung. Exu é micreiro, mas também é designer.

Este texto faz parte da coluna Chão de Fábrica, co-editada por Eduardo Souza. Integram a coluna histórias em primeira pessoa sobre trabalho, que possam inspirar a estruturar demandas e imaginar novas formas de organização.

é micreiro sênior e UX designer. Formado pela Apple Developer Academy. Graduando em Design Gráfico na UTFPR. Membro da ONG Jogarta. Faz parte do grupo de complicadores da Rede Design & Opressão.
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