Dualidade elaborada por Freud na década de 1920. Enquanto a pulsão de vida estaria associada à excitação e à autopreservação, a de morte levaria à estagnação e à inanição. [N.E.]
O projeto (do) humano como uma entidade fixa que (se) constrói hierarquicamente sobre tudo o que falha (propositadamente ou não em sê-lo) é um discurso arbitrário de poder que ocorre simbolicamente nos limiares entre o “eu” e o “outro”. A abjeção – a ojeriza causada pela ameaça de perda da distinção entre o sujeito e o objeto – manifesta-se nesse concomitante “entre” – que aproxima repúdio e fascínio, pulsão de morte e pulsão de vida1, divino e profano. É o vertiginoso caos identitário entre “o que eu sou” e “o que eu não sou”, uma reação entre o sujeito e o objeto que se manifesta corporeamente durante o colapso da significação – esta sempre antropocêntrica, sempre constituída e orientada pelo projeto de (re)produção do (conceito de) humano.
Understanding Computers and Cognition: A New Foundation for Design, de Terry Winograd e Fernando Flores (Ablex Publishing Corporation, 1986).
Designs for the Pluriverse: Radical Interdependence, Autonomy, and the Making of Worlds, de Arturo Escobar (Duke University Press, 2018).
Design in Crisis: New Worlds, Philosophies and Practices, editado por Adam Nocek e Tony Fry (Routledge, 2021).
O artigo “Ontological Designing”, de Ann-Marie Willis, foi publicado no periódico Design Philosophy Papers (volume 4, número 2, 2006).
O humano e o design convergem filosoficamente na imposição de um viés tendencioso que admite apenas uma única forma de perceber e construir a existência. Isso impede a eclosão do impossível, de tudo aquilo que tem o potencial de ser de outra forma. Este texto se propõe a re(fletir/analisar/interpretar/pensar) o design ontologicamente, ou seja, em sua compreensão existencial, através de uma teoria pós-humana que parte justamente da perversão da identidade humana, a teoria queer. Ela desestabiliza a forma de projetar (n)o campo simbólico da percepção e pode invocar um possível fim do antropoceno, ao mesmo tempo que aponta para outras e novas trajetórias, relações e formas jubilantes e inimagináveis de ser. Para alguns teóricos do design, como Terry Winograd e Fernando Flores, o design pode ser ontológico porque, “ao projetar ferramentas, nós projetamos as condições de nossa existência e, por sua vez, as condições de nosso design”2. Segundo Arturo Escobar, essas mesmas “ferramentas são fundamentais para a ação e, por meio de nossas ações, geramos o mundo”3. Adam Nocek e Tony Fry complementam citando Anne-Marie Willis, “o humano é um ser que projeta e cujo design, por sua vez, projeta o humano”4,5. Assim, se, ao projetar objetos, projetamos a forma de perceber nossa existência e, portanto, quem somos, projetar um objeto – material, filosófico, físico, conceitual – pode evocar o êxtase pós-humano?
Um corpo estranho: ensaios sobre sexualidade e teoria queer, de Guacira Lopes Lobo (Autêntica, 2018).
Diferente de queer em “estudos queer”, linha que sucede os “estudos gays e lésbicos” e os “estudos LGBT+”, a teoria queer se faz pertinente por conectar o pós-humanismo ao design. Sua qualidade “relacional” procura desestabilizar os significados do domínio fenomenológico pela perversão do desejo, que sustenta tanto o sujeito quanto o objeto (este em seu sentido amplo, do filosófico ao físico e material). Nisto implica-se a discussão crítica pós-humana, interessada em questionar a materialidade histórica passada, presente e futura “para além dos limites do pensável”6 e em desarranjar a forma de pensar das vertentes do design interessadas na cultura material, que historicamente estão fundamentadas na subjetivação normativa entre objetos (novamente filosóficos e/ou físicos) e sujeitos. Nessa relação, a desestabilização simbólica ateada pela crítica queer leva a um estado transgressor, amoral e psicótico de abjeção, que incita uma reação concomitantemente psíquica e material, à medida que emancipa os sistemas e os regimes de significação ao ejetar o “ser” do domínio “sujeito-objeto”.
Será a noção de queer predicada no humano?
Philosophical Posthumanism, de Francesca Ferrando (Bloomsbury, 2020).
Um dos principais pontos de intersecção entre a filosofia pós-humana e a teoria queer é a interrogação “o que é ser humano?”. Ao mesmo tempo que o pós-humanismo relaciona-se intrinsecamente com campos de pesquisa que estudam a produção da diferença e a desconstrução da subjetividade humana como algo fixo, delimitado e “neutro”, a teoria queer tem a normatividade da noção de “humano” como um dos seus principais eixos de crítica. Aproxima-se da retórica anti-humanista, mas não se delimita a tal movimento, porque analisa o funcionamento das normas da sexualidade na constituição do sujeito e das hierarquias humanas para então criticar e desestabilizar as estruturas que sustentam tal subjetividade normatizada e normatizante. Ao mesmo tempo que “o pós-humanismo está em dívida com as reflexões desenvolvidas a partir das ‘margens’ desse sujeito humano centralizado, devido à sua ênfase no humano como um processo, mais do que um dado, inerentemente caracterizado por diferenças e identidades mutáveis”7, a teoria queer induz a um ativismo de emancipação dessa mesma noção de “humano”, que, por sua vez, se sustenta na auto(de)limitação simbólica e hierárquica em oposição cínica à alteridade, ou ao outro que não é o sujeito.
Mas se a crítica queer é inegavelmente pensada por humanos – mesmo que, em sua grande maioria, por humanos que, à sua maneira, não se conformam à norma existencial – será a própria noção de queer predicada filosoficamente na noção de humano? A resposta vai além do sim e do não, ainda que ambos estejam necessariamente implicados na questão. Por um lado, sim, pois há o privilégio da sexualidade e do corpo humano na análise teórica; por outro lado, não, pois há o indeferimento dos valores humanistas no entendimento da constituição da subjetividade. Queer não é um conceito ambivalente ou binário, mas transversal. Ou seja, queer transpõe, passa por, percorre o humano estabelecendo com ele relações relativas, situacionais e instáveis. Não há nada mais queer que um conceito indefinível e indefinidor.
Disso infere-se que queer, por transitar entre o sim e o não em sua relação ontológica com o humano, mostra-se indefinível em sua gênese e tem o potencial e o desejo irreprimível de desestabilizar o conceito de humano. Queer, portanto, não se manifesta como “ser” (não é uma subjetividade), mas como um “fazer” e um “desfazer” coexistentes, um constante devir entre desejo e desvio transitórios, mutantes e ingovernáveis.
Queer(izar): não aquilo que é, mas aquilo que faz
Desde o estudo de sua etimologia aos seus possíveis desdobramentos materiais (em que se pode incluir o design como meio agenciador), a teoria queer faz-se consistentemente crítica à noção de norma na construção da subjetividade porque devasta quaisquer categorias de identificação por meio da perversão do desejo. Queer refere-se a uma ação espacial que passou a ser utilizada na terminologia sexual para caracterizar sexualidades e gêneros “distorcidos” – incondizentes com uma “linha reta” (straight). Uma das primeiras e mais influentes publicações sobre o tema, o livro Tendencies, de Eve Kosofsky Sedgwick (Duke University Press, 1993), afirma que o termo queer significa “através” ou “do outro lado” e origina-se da raiz indo-europeia “-twerkw” que dá origem ao termo alemão quer (transversal). Em latim, torna-se torquere (torcer, girar, deturpar), e, em inglês, significa thwart (impedir, contrariar, frustrar).
Mais um trecho extraído de Um corpo estranho: ensaios sobre sexualidade e teoria queer, de Guacira Lopes Lobo (Autêntica, 2018).
Um corpo estranho: ensaios sobre sexualidade e teoria queer.
A origem da teoria queer é frequentemente associada aos acontecimentos do fim da Revolução Sexual, como a ação dos movimentos liberacionistas e gays da década de 1970. Ainda em Tendencies, Sedgwick atesta que queer não está exclusivamente condicionado aos estudos de gênero e de sexualidade identitária, por ser “multiplamente transitório”. É “excêntrico, raro, extraordinário e talvez ridículo, […] um insulto que tem a força de uma invocação sempre repetida, conferindo um lugar discriminado e abjeto àqueles a quem é dirigido”8. Queer desdobra-se conceitualmente em perverso, indefinível e esquisito; é um causador de instabilidade e desarranjo; um sorriso de deboche como forma de protesto e contestação; uma excentricidade cujo desejo oblitera a integração e a tolerância; “um corpo estranho, que incomoda, perturba, provoca e fascina”9. Uma profanação milagrosa, um milagre profano.
Queer perturba a lógica ocidental que percebe o mundo de forma binária, polarizada e os regimes de significação simbólica (família, Estado, Igreja) que classificam tudo o que existe entre um termo superior, fixo, central e determinado e outro inferior, plural, oposto e subordinado. Queer provoca a transformação, o contínuo devir, o abalo da lógica por meio da pulverização, perturbação e desconstrução de discursos hegemônicos e dominantes. Um ideal, ou mesmo uma necessária utopia de abolição da representação fixa e imutável das subjetividades, queer faz-se um verbo e deve ser entendido em seu sentido pós-/não-/anti-humano, pois desconsidera as taxonomias do especismo que tornam o humano “especial”. Queer renuncia ao excepcionalismo humano no êxtase coletivo da criatividade e da inventividade para minar o privilégio antropocêntrico.
Perversão não(normativa/definível/identitária)
São três os eixos de desestabilização aqui identificados para explicar brevemente a noção de queer: sua não-(ou anti-)normatividade, sua incapacidade de ser definido e sua não-identidade. Queer desdenha de tudo o que é legítimo e dominador para a produção de outras e novas trajetórias sem definir um escopo a priori. O ativismo queer incita o colapso de qualquer normalização, porque se direciona ao desvio e à falência do “eu” com a intenção de aniquilar a construção da subjetividade fixa e imutável sustentada pela delimitação e pela redundância do desejo. Tal processo relaciona-se diretamente à subjetivação (o processo simbólico de tornar-se sujeito) e tem ocorrido historicamente por meio da constituição falocêntrica da heterossexualidade dominante/obrigatória e da produção estruturante de sua alteridade por categorias de sexualidade e de identidade subjugadas.
Extraído do capítulo “How Queer Can You Go? Theory, Normality and Normativity”, escrito por Claire Colebrook, que faz parte do livro Queering the Non/Human, editado por Noreen Giffney e Myra J. Hird (Routledge, 2008).
Trecho do ensaio “Queer Psychoanalysis / Psychoanalysing Queer”, de Eve Watson, publicado no volume 7 do periódico ARCP, intitulado “Lacan and Critical Psychology” (2009).
Põe-se em causa os modelos psicanalíticos de identidade como projetos de subjetividade antropocêntrica por induzirem “um viés originalmente normalizador, seja postulando o complexo de édipo como a estrutura transcendental para a constituição da subjetividade, seja o falo como o significante da presença”10. De acordo com esses modelos, em geral, os impulsos motivados pelo desejo seriam moldados pela falta primordial que o falo imaginário materializa simbolicamente na forma de um cilindro de carne – um signo de uma heterossexualidade moralmente considerada “correta” e, por muito tempo, obrigatória. Em reação, a teoria queer interroga tal estrutura a partir do ímpeto de criar outras formas em que o desejo se manifesta. Essa contradição à normatização ou a qualquer dominação subjetiva faz parte do “projeto queer de uma desestabilização radical da (hetero)normatividade”11, através de uma abordagem sobre o desejo que seja indeterminável, indefinível, muitas vezes absurda e até impossível, impensável e irrepresentável.
Queer reage aos regimes que eclipsam a pluralidade emergencial das subjetividades, reduzindo o sujeito a uma forma fixa de existência. Ou seja, queer não reconhece nenhuma categoria normativa e, por isso, faz-se indefinido enquanto forma de reivindicação. Se queer “define-se” pela sua indefinibilidade ou incapacidade de ser definido e definível, a emancipação que canaliza provém de constituir-se como um conceito que significa tudo e nada ao mesmo tempo. Assim, queer frustra toda e qualquer categoria de subjetividade que poderia ser empregada em processos de submissão, ao minar o seu locus simbólico, a identidade. Por isso, dizer “eu sou queer” é um paradoxo, pois queer corrói justamente a ideia de identidade e suas categorias ao manifestar-se desdenhosamente em contradição a qualquer forma de categorização subjetiva, em especial àquelas que servem à manutenção do lugar de poder antropocêntrico.
O termo pink money começou a ser usado nos Estados Unidos na década de 1990 e descreve o poder aquisitivo da comunidade LGBT+. Culturalmente, ele associa o pertencimento à comunidade ao consumo de produtos, muitas vezes estampados com as cores do arco-íris. [N.E.]
The Ahuman Manifesto: Activism for the End of the Anthropocene, de Patricia MacCormack (Bloomsbury, 2020).
O termo “queer” aqui empregado não se refere exclusivamente ao uso terminológico empreendido desde a década de 1990 por ativismos e políticas de identidade LGBT+ estadunidenses e hoje mundializados. O uso dessa palavra foi cooptado pelo capital e frequentemente representa a comoditização globalizada que leva ao mascaramento do pink money12, dada a hipermidiatização, a hiperidentificação (narcisismo) e a consequente corrosão do termo em prol de um nicho de mercado que, ironicamente, não beneficia necessariamente as identidades LGBT+, muito menos as que estão sujeitas a maiores riscos e vulnerabilidade. Queer, neste texto, é empregado no sentido de sua genealogia filosófica e de sua crítica teórica incomensurável a qualquer política de identidade. Aqui, o sentido de queer nada tem a ver com a identidade nem com a humanidade, mas com uma “forma de (anti-)identidade filosófica”13.
Seduction, de Jean Baudrillard (Palgrave Macmillan, 1991).
Philosophical Posthumanism, de Francesca Ferrando (Bloomsbury, 2020).
Queer é uma outra forma de compreender, viver e manifestar o desejo. Um desejo não-faltante, não-falocêntrico, antipatriarcal e não-antropocêntrico: um desejo parricida, que aniquila a ordem e a economia do pai, do simbólico. Esse desejo queer é um desejo perverso porque desdenha do padrão, norma e identidade do que se considera “desejo”. Se “o perverso é aquilo que perverte a ordem dos termos”14, o desejo queer é intrinsecamente perverso. Se queer é uma forma descentralizada e desreferenciada de ser e de imaginar para além das regulações da sociedade, inevitavelmente também incorpora um “paradigma recorrente de abjeção humana”15. Ou seja, na transitoriedade e na instabilidade periférica da significação e da existência, a indiferenciação do desejo opera de forma tão perversa que performa um processo de abjeção cujo objetivo é dilacerar e extinguir o sujeito (opressor) ou qualquer representação simbólica que lhe impeça de existir e tornar-se autônomo.
Abjeção e materialidade na perversão dos objetos de desejo
O artigo “Traversing Liminality: Gay Leisure Spaces and Identity Formation in Contemporary Chinese Society”, de Chu Xu, foi publicado online em 2023, no periódico Leisure Sciences.
Mil platôs – vol. 1: Capitalismo e esquizofrenia, de Gilles Deleuze e Félix Guattari (Editora 34, 2011).
O termo aparece no livro Homo Sacer: Sovereign Power and Bare Life, de Giorgio Agamben, que foi traduzido para o inglês por Daniel Heller-Roazen (Stanford University Press, 1998). O autor parte do Direito da Roma Antiga para conceitualizar o homo sacer atualmente. Dada a presença da biopolítica e das formas soberanas de poder, pertencem a essa classificação indivíduos que passam a ser considerados juridicamente excluíveis e tornam-se, portanto, facilmente passíveis à vulnerabilidade e ao abandono social.
Um projeto em design que incorpore a teoria queer tem o potencial de perverter a continuidade unidirecional dos processos de materialização e de objetificação, ambos inscritos à dominação e à normalização dos desejos como bens de mercado ou commodities. Essa perversão ocorre porque queer produz a liminaridade, “um estado de ambiguidade transitória em que a estrutura e a agência se cruzam, ou em que elas existem entre diferentes estruturas”16. A liminaridade despreza e infringe os regimes de normalização através da alteração de sentidos, porque é ambígua e transitória entre o “eu” e o “outro”, entre o sujeito e o objeto. Ela convoca, assim, à experiência abjeta em sua qualidade a-semiótica17, em que o prefixo “a-” propõe uma forma de pensamento rescindida das estruturas de significação baseadas em binarismos acerca do conhecimento. O “a-bjeto” existe em algum lugar entre o conceito de objeto e o conceito de sujeito; no espaço liminar. A abjeção pode ser vista como um processo de emancipação tanto da subjetividade quanto da objetividade, manifestando-se nos (marcadores dos) corpos em desvio e em exclusão social, na materialidade do homo sacer18. Distinta de quaisquer polarizações ou nuances morais, deste processo pode emergir a subjetividade autônoma à humanização, seja “negativamente” pelo repúdio (por exemplo, os indivíduos subjugados por marcas de classe, origem etc.), seja “positivamente” pela autonomia em tornar-se a si próprio de forma incondicionável às “leis” do humano.
Central na abjeção é a perversão do regime de poder e a busca por autonomia. A abjeção localiza-se num estágio pré-linguístico e, portanto, anterior à formação do sujeito e à constituição do desejo. Dentro de regimes de significação estabelecidos no campo simbólico, ambos os desenvolvimentos levam à normalização. Ao compreender o mecanismo da experiência abjeta e ao relacioná-lo metodologicamente a uma abordagem queer no design, é possível conceber outras/novas formas não reprodutivas, insubmissas ao desejo condicionado e fixo, não padronizadas, não normatizadas e normatizadoras e, obviamente, anticapitalistas de (se) criar e de (se) projetar.
Nem sujeito, nem objeto
Do ensaio “Abjection, Art and Bare Life”, de John Lechte, que faz parte da coletânea Abject Visions: Powers of Horror in Art and Visual Culture, editada por Rina Arya e Nicholas Chare (Manchester University Press, 2016).
O abjeto não nega a estrutura do processo de humanização, mas a perverte para criar um sujeito autônomo, singular. Constrói a si próprio pelo uso e apropriação de estruturas de aceitação e rejeição na constituição da subjetividade que “apontam para a possibilidade de uma identificação – positiva ou negativa – em relação à qual o ego está no controle. O abjeto é radicalmente outro em comparação. É o inimaginável, o indizível – aquilo que me agarra pela garganta e me derruba e em relação ao qual não posso fazer nada”19. Para Julia Kristeva, autora de Powers of Horror: An Essay on Abjection (Columbia University Press, 1982), o abjeto é aquele
[…] que perturba a identidade, o sistema, a ordem. O que não respeita fronteiras, posições, regras. O entretanto, o ambíguo, o composto. […] A abjeção é imoral, sinistra, ardilosa e suspeita: um terror que desmembra, um ódio que sorri, uma paixão que usa o corpo para a permuta em vez de inflamá-lo, um devedor que te vende, um amigo que te apunhala…
“Introduction: Not I, or, The Abject Objection”, de Maggie Hennefeld and Nicholas Sammond, que abre o volume Abjection Incorporated: Mediating the Politics of Pleasure & Violence (Duke University Press, 2020).
Na revolta contra o sujeito, o ser da linguagem, o abjeto faz da rejeição um sintoma para a (re)construção da linguagem na produção da (própria) cultura. O abjeto não se submete a nenhuma subjetividade para não ser controlado nem manipulado, e é isso o que o difere do objeto, que, por sua vez, existe por meio da hierarquia simbólica submissa em relação ao sujeito. Por outro lado, o objeto e o abjeto convergem à medida que ambos se opõem ao “eu”. O abjeto, porém, não pode ser posicionado nessa oposição linear, porque não é nem sujeito nem objeto – é um não-objeto definitivamente indefinível e transitório. Um “não-objeto queer”. Irrepresentável, indecodificável e sem qualquer forma – amorfo –, o horror semiótico “para aqueles que sentem sua própria subjetividade soberana subitamente ameaçada pelo mero reconhecimento do Outro”20. Em sua estranheza que atormenta, o abjeto é queer por excelência. Em seu ápice, dilui-se com o impossível e com o inimaginável; em sua voracidade, fúria e impiedade, pulveriza o sujeito desde suas entranhas.
Powers of Horror: An Essay on Abjection, de Julia Kristeva (Columbia University Press, 1982).
Ao manipular as noções fronteiriças das dicotomias, o abjeto manifesta tanto a morte quanto a vida: rompe os significados e faz das linguagens (poesia, arte, literatura, cinema, design) a ressurreição semiótica do próprio significado por meio de “uma alquimia que transforma o impulso da morte no começo da vida, de uma nova significância”21.
A potência da materialidade abjeta na arte e no design
Trecho extraído da monografia de bacharelado The Biomorphic Grotesque in Modernist and Contemporary Painting’, de Audrey Howell, apresentada à Claremont Graduate University, da Califórnia, em 2014. O texto na íntegra está disponível online.
A abjeção tem um componente físico em sua teoria, porque a perda de distinção entre o sujeito e o objeto provoca no humano a reação de horror, asco, repúdio: a fratura exposta, o vômito, o esgoto, o cadáver, a merda como signo do êxtase. A materialidade abjeta circunda aquilo que caracteriza um corpo, sujeito ou objeto, enquanto conglomerado material em estado liminar à significação, ou seja, àquilo que já foi constituinte de si, mas não é mais. Uma forma de materialidade (queer), outrora velada por uma fronteira e então revelada por sua ruptura, incita a questionar e imaginar o potencial pós-humano do corpo e de sua agência criativa: “se não soubéssemos como éramos, que formas possíveis um corpo poderia assumir?”.
Powers of Horror: An Essay on Abjection, de Julia Kristeva (Columbia University Press, 1982).
O horror à materialidade abjeta demonstra a ameaça psíquica (e a potência extática) que esses materiais evocam, justamente por remontarem a memórias do período de formação da identidade em que o semiótico e o simbólico ainda não haviam sido distinguidos pela linguagem, mas encontravam-se no mesmo universo plural, múltiplo e indiferenciado. A reação de horror é o momento em que, concomitantemente, as fronteiras corporal e psíquica são brutalmente reconhecidas na fragilidade de suas constituições. Materiais que provocam tal reação, como “[…] urina, sangue, esperma, excremento, portanto, aparecem de forma a garantir um sujeito que carece de sua identidade. A abjeção desses fluidos internos torna-se, de repente, o único ‘objeto’ de desejo sexual”23.
Abject Visions: Powers of Horror in Art and Visual Culture, editado por Rina Arya e Nicholas Chare (Manchester University Press, 2016).
Idem.
Entre a repulsa e o desejo, a materialidade abjeta é utilizada na criação de obras de arte porque cabe a ela “ocupar o espaço entre a matéria e o significado”24 e, portanto, criar um potencial radical para novas materialidades autônomas ao desejo simbólico. Apesar de irrepresentável dada a sua essência de não-sujeito e não-objeto, o abjeto é evocado, conjurado pela criação, como em um ritual profano de purificação, de forma a romper qualquer significação que possa ser apreendida pelo interlocutor. Com isso, pode-se intencionalmente “explorar materiais básicos para promover uma política sexual radical […] como manifestação de um ‘materialismo insurgente’ que atua ‘contra a repressão social’”25. Considerando-se a importância da noção de historicidade também na arte, a evocação do abjeto está presente desde o famoso urinol de Duchamp (Fountain, 1917), ao Jesus Cristo crucificado imerso em urina de Andres Serrano (Immersion (Piss Christ), 1987) passando pela suposta merda enlatada de Piero Manzoni (Merda d’Artista, 1961), para citar alguns exemplos.
Parte da descrição da performance Felt is the past tense of Feel, publicada no site da Australian Catholic University (ACU) em 2006. Traduzida livremente pelo autor.
A visceralidade do material abjeto continua a ser evocada (talvez de forma mais literal em sua materialidade) na arte contemporânea, em obras realizadas ou não por artistas plásticos. A videoperformance Felt is the Past Tense of Feel (2006), de Catherine Bell, é um exemplo da ambiguidade que causa choque, prazer e surpresa – todos indicadores da arte abjeta. Nela, a artista “explora a ideia de emoção reprimida e o porquê de sermos condicionados a ‘engoli-la’ e não a gritá-la. A ação metódica e controlada de sugar a lula desmente a luta histérica traçada no palco, […] a tensão entre a mente que repete o cenário traumático e o ponto em que decidimos resistir ou expurgar a emoção”26.
“The Biomorphic Grotesque in Modernist and Contemporary Painting”, de Audrey Howell (Claremont Graduate, 2014).
Wasted Lives. Modernity and its Outcasts, de Zygmunt Bauman (Polity Press, 2004).
Idem.
Nesse sentido, “tanto a arte abjeta quanto a grotesca têm sido veículos poderosos para os artistas expressarem críticas, frustrações ou protestos contra normas sociais opressivas ao longo do século XX”27. Isso abre precedentes para sua continuidade no século XXI, ou até quando tais imposições normativas ainda estiverem instauradas, não apenas no campo da arte, mas também no campo do design, visto que o ato criativo, de concepção semântica e material em mútua fusão, é das diversas zonas em que tais campos se encontram em intersecção. Na arte e na literatura, o sujeito artista, para proteger-se e purificar-se do abjeto, encontra como única solução sua fusão com a abjeção. Essa experiência estética, semiótica e material de catarse e êxtase poético pode ocorrer também no design, em sua faceta ativista não-antropocêntrica. Vertente que contradiz a lógica de desperdício/descarte em que “[…] para que algo seja criado, outra coisa deve primeiro ser […] despedaçada, triturada e descartada para que não atrapalhe o chão e prejudique os movimentos” de quem cria28. Nessa contradição à lógica humanizadora, o design assume que “não pode haver oficina artística sem um monte de lixo”29. No entanto, esse mesmo “lixo” poderia ser incorporado em sua totalidade, à medida que ele interroga a morte e a vida do objeto na circularidade dos materiais que o compõem; que afronta o sujeito que se sustenta cinicamente sobre o descarte e que interroga a sua própria constituição. Nisso, o design, bem como a arte, pode fundir-se material e semioticamente com o abjeto na formulação emancipadora de um “eu” que me ab(ejeto) para constituir-me como próprio à custa da minha própria morte.
Um design não-antropocêntrico, uma práxis do não-objeto
“Queer Posthumanism: Cyborgs, Animals, Monsters, Perverts”, de Patricia MacCormack, que faz parte do livro The Ashgate Research Companion to Queer Theory, editado por Noreen Giffney e Michael O’Rourke (Routledge, 2009).
Um design não-antropocêntrico afiliado à filosofia queer estabelece-se pela agência de sua práxis material aliada a um ativismo coletivo orientado criticamente ao “humanismo e aos estudos tradicionais da sexualidade, da psicanálise à filosofia […] [propondo] desafios não- e pós-humanos ao fechamento dos estudos de identidade e sexualidade que se baseiam na estabilidade da base nível zero ‘humano’, um homem heterossexual branco”30, cisgênero, euro-americano e dono de propriedades.
Idem.
A formação teórica e prática de tal abordagem não-antropocêntrica do design se verifica em encontros, atravessamentos e agrupamentos do coletivo. A noção de coletividade, aliás, é imprescindível para a interseccionalidade, pois resiste à significação normativa enquanto cultiva a perda do “eu” fixo e identitário, que está fragmentado e fundido ao fluxo do desejo indiferenciado. Nesse ativismo que coloca em causa o humano e a humanização, categorias de identidade são temporariamente suspendidas da permuta transitória do desejo individual, que, por sua vez, está condicionado ao “livre-arbítrio” das castrações psicanalíticas e mercadológicas, ao criar “formações híbridas de desejo que resultam do que Deleuze e Guattari chamam de aliança ‘não natural’ do desejo”31.
“Introduction: Queering the Non/Human”, das editoras no livro Queering the Non/Human Noreen Giffney e Myra J. Hird (Routledge, 2008).
“Queer Posthumanism: Cyborgs, Animals, Monsters, Perverts”, de Patricia MacCormack.
Essas formações coletivas, no emprego de um método queer, “dizem respeito a genealogias, objetivos, prioridades, interconexões com o ativismo e outras teorias e campos”32 e se dão de forma interseccional, por serem compostas por aqueles que outrora eram simbolicamente compreendidos como “desperdício”, “descarte” ou “abjeto” pela subjetividade hegemônica, responsável pela humanização que exclui corpos outros. É essa a potência emancipatória do não-objeto. Do ponto de vista do sujeito, “essas pessoas são consideradas aberrações ou deformidades da evolução humana – monstros, híbridos. Religiosamente, são legiões demoníacas – feminismo, ativistas dos direitos dos animais, outros terroristas políticos da alteridade, política como criação de ‘matilhas’ e outras entidades difamadas”33. Do ponto de vista do objeto, este em seu sentido material e físico, e portanto em direta relação com o design e a arte, trata-se daqueles que incorporam os meios e linguagens do desenho e do projeto de forma não necessariamente tecnológica, nem exclusivamente manual; nem à procura do belo ou do perfeito, nem à procura do choque ou da representação grotesca; nem com o lucro comercial como objetivo nem como hobby; mas sempre a instrumentalizar esse sistema aberto para o agenciamento subjetivo, material e semiótico de seus desejos e potências interconectados para a criação não-reprodutiva do “humano”.
Essa incorporação queer é coletiva, ativista, artística, produtiva, espaço-temporal e transformativa. Não por acaso, Jup do Bairro e Linn da Quebrada, em entrevista a Judith Butler (2021), referem-se à versão latinoamericana de queer, o cuir: o cu que não sou, mas que vou; que ejeto o que a cultura tanto suplica para não ver à custa de sua própria desintegração simbólica; que vou pavimentando o caminho com o excremento das minhas próprias entranhas, vindas do espaço visceral que, quando expostas, ferem a identidade do humano fundamentada na normativa reprodutiva do corpo e da subjetividade. O cu que vou carregando as terminações nervosas do prazer em ser um estraga prazer. O cu que vou produzindo a cultura do cu, que só por ser cu, sou um não-objeto, sem identidade, nem sujeito nem objeto, no limiar do sentido e do significado, uma benção e uma maldição que te aniquilo enquanto te fascino.
Posthuman Ethics: Embodiment and Cultural Theory, de Patricia MacCormack (Routledge, 2012).
Aspiro ao Grande Labirinto, de Hélio Oiticica (Rocco, 1986).
Se a noção de identidade está intrinsecamente vinculada à reprodução da primazia simbólica do “humano” pela linguagem e pelos discursos que fabricam a mitologia da subjetividade singular, fálica e unificada, a noção de codependência simbólica com a alteridade produzida isomorficamente pela falha de seus objetos (filosóficos, de desejo, materiais – em amplo sentido) é a catarse pós-humana que o queer traz. Uma catarse que demanda deixar de ser humano para abrir o mundo à vida da diversidade indiferenciada. Uma catarse artística do fim do antropoceno que o design queer pode manifestar, pois, segundo Patricia MacCormack, “os encontros com a arte precisam se tornar inumanos, na medida em que a arte é definida como aquilo que afeta ao longo de trajetórias deliberadamente organizadas para alterar a percepção”34. Hélio Oiticica parecia já falar sobre algo semelhante ao afirmar que “só derrubando furiosamente poderemos erguer algo válido e palpável: a nossa realidade”35. A realidade daqueles e para aqueles que, a princípio, nunca tiveram acesso pleno ao status de humano: mulheres, pessoas racializadas, sexualidades dissidentes, imigrantes do sul global, animais não-humanos, ecossistemas… ou seja, toda e qualquer forma de vida e existência ilegítima à “verdade” da forma irredutível do humano. Queerizar o objeto pela interrogação dessas “verdades” que sustentam a reprodução de suas identidades, categorizações, representações e diferenciações é criá-lo fora das epistemologias de significação. O não-objeto perverte, corrompe e expurga a vida e a morte em nome da autonomia sígnica pela pulsão psicótica e incessável do desígnio até a constituição própria de si, semioticamente não-antropocêntrico. À custa de si mesmo, à custa do humano.