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23 de agosto de 2021

Terrenos baldios são terras de ninguém

Ermos, bordas, selvas, ruínas, lugares abandonados ou nunca sequer planejados permeiam o nosso entorno, escondidos a plena vista no meio da cidade ou remanescendo nas suas margens. Destituídos de suas funções no sistema produtivo da malha urbana e do seu caráter utilitário previsto e previsível, esses espaços passam a ser vistos por nós, habitantes das metrópoles e membros honorários da contemporaneidade, como um transtorno, uma anormalidade a ser evitada ou meramente como um espaço vazio, um local que é em si a ausência de um lugar.

Nós valorizamos e habitamos os espaços projetados. Ambientes concebidos para possibilitar que produzamos e consumamos da forma mais ágil, confortável e indiferente possível, gastando o mínimo da nossa preciosa atenção e escasso tempo com imprevistos e desvios. Nossos espaços habituais, com suas funções sólidas e aparentes repetições, nos levam por caminhos que parecem sempre retos, por mais labirínticas que sejam suas configurações de fato. São espaços que conhecemos, que conformamos, que acreditamos dominar e por isso mesmo nos parecem convenientes e seguros. Neles, esperamos que nada surja para nos surpreender, que não nos seja solicitado nada além da nossa “banal mundanidade da desatenção cotidiana” (BEY, 2014). 

Quando adentramos porém um espaço sem função, destes não conformados ou domesticados, a sensação pungente é de que qualquer coisa pode nos acontecer. Não dominamos estes territórios, não podemos tomar suas regras como garantidas. Mesmo nos mais restritos desses locais, um galpão em ruína entre quatro arranha-céus, uma margem de canal abandonada ao acaso, ainda somos confrontados com uma ausência de pressupostos e predefinições que nos demandam uma certa atenção mais holística, aberta a qualquer descoberta que nos permita um vislumbre de entendimento e consonância com esse entorno que nos é estranho. Estes são espaços do possível, com suas configurações mutáveis e alheias às nossas vontades. Espaços onde se perder se torna imperativo e, por mais que reneguemos tais situações, é na percepção de estarmos perdidos que realmente criamos oportunidade para que algo nos aconteça, a experiência.

Estes são espaços do possível, com suas configurações mutáveis e alheias às nossas vontades.

“A palavra experiência vem do latim experiri, provar (experimentar). A experiência é em primeiro lugar um encontro ou uma relação com algo que se experimenta, que se prova. O radical é periri, que se encontra também em periculum, perigo. A raiz indo-europeia é per, com a qual se relaciona antes de tudo a ideia de travessia. (…) A experiência tem sempre uma dimensão de incerteza que não pode ser reduzida. Além disso, posto que não se pode antecipar o resultado, a experiência não é o caminho até um objetivo previsto, até uma meta que se conhece de antemão, mas é uma abertura para o desconhecido, para o que não se pode antecipar nem “préver” nem “pré-dizer”.” (LARROSA, 2002)

Esses espaços nos remetem a uma realidade anterior, onde a humanidade, ainda errante, tinha menos controle sobre o seu entorno e sobre o que nos acontecia; onde o saber, menos permanente, menos pautado na informação codificada, precisava ser construído e reconstruído ao longo da travessia, em um movimento constante de se perder, encontrar e se perder de novo.

 “Perder-se significa que entre nós e o espaço não existe somente uma relação de domínio, de controle por parte do sujeito, mas também a possibilidade de o espaço nos dominar. São momentos da vida em que aprendemos a aprender do espaço que nos circunda (…) já não somos capazes de atribuir um valor, um significado à possibilidade de perder-nos. Modificar lugares, confrontar-se com mundos diversos, ser forçados a recriar continuamente os pontos de referência é regenerante em nível psíquico, Se hoje ninguém aconselha uma tal experiência, nas culturas primitivas, pelo contrário, se alguém não se perdia, não se tornava grande. E esse percurso era brandido no deserto, na floresta; os lugares eram uma espécie de máquina através da qual se adquiriam outros estados de consciência. (LA CECLA apud CARRERI, 2013)

Mas se os espaços externos são capazes de influenciar nossos estados de consciência, é igualmente possível que nossa própria forma de apreensão e de cognição também reconfigure a maneira como percebemos e vivenciamos o mundo externo. O nosso universo interno, de onde partem nossas percepções, pode determinar por exemplo se uma beira de estrada é um descampado inútil ou um pedaço de selva fértil em possibilidades, ou se o mercado da rua ao lado é o modelo definitivo da trivialidade ou um vasto labirinto de emblemas policromáticos a serem desvendados. Na verdade, poderíamos mesmo dizer que na própria função do nosso pensar, no mundo interno da nossa imaginação/percepção/criação, espaços conformados, engessados competem com espaços indômitos, de errância.

No capítulo do Livro Mil Platôs intitulado “Tratado de Nomadologia: a máquina de guerra”, Deleuze nos apresenta dois paradigmas que coexistem dentro de nós: o da “dinâmica nômade”, criadora da “máquina de guerra” e o da ação centralizada e centralizadora de uma “forma Estado”. Deleuze usa o termo nômade para representar o paradigma daquilo que está sempre se transformando, que não pode ser conformado, e o Estado para definir o que segue uma hierarquia bem definida e tende a se imobilizar e enrijecer; a “máquina de guerra” nômade, por sua vez, representa o movimento constante (por isso máquina) que busca desfazer aquilo que se torna sólido e inflexível (por isso está sempre em guerra).

Podemos conceber nossa consciência da mesma forma que as nossas cidades, povoada por espaços delimitados que encerram os saberes que coletamos, dominamos e que se solidificaram, enquanto se espalham, em contraponto, vastas áreas indômitas onde o pensamento não tem antecedentes para se apoiar, regiões impermanentes que se formam e reformam a partir da exposição ao caos e acaso que nos cercam.

Criamos, essencialmente, como um modo de nos relacionarmos com o que nos acontece e com o nosso meio, confrontando um mundo interno com a realidade que existe para além de nós.
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Pseudônimo do escritor e poeta anarquista Peter Lamborn Wilson.

É difícil dizer quanto esse universo interno influencia nossa percepção dos ambientes externos ou quanto a vivência desse mundo externo reforma nossos ‘espaços’ internos. Hakim Bey1 conta que os dervixes, ordem mística do islã, formada por andarilhos, poetas e criadores, que perambulavam de forma nômade pelo mundo islâmico, viajavam “tanto no mundo material como no ‘Mundo da Imaginação’, simultaneamente. Mas para o olho do coração esses mundos se interpenetram em alguns pontos. Pode-se dizer que eles se revelam ou desvelam mutuamente. No fim, eles são ‘um’ – e só nosso estado de desatenção hipnotizada, nossa consciência mundana, nos impede de experimentar essa identidade profunda a todo momento”. Provavelmente Bey concordaria com Bachelard quando ele diz que “toda nova cosmicidade renova nosso ser interior e todo novo cosmos está aberto quando nos libertamos de ligações de uma sensibilidade anterior”.

Criamos, essencialmente, como um modo de nos relacionarmos com o que nos acontece e com o nosso meio, confrontando um mundo interno com a realidade que existe para além de nós. Quando evitamos os terrenos baldios no nosso processo de criação, quando evitamos o erro e a errância, corremos o risco de acabar alienados da experiência, da descoberta e dessa parte do fazer que lida com o que é maior que nós e nossas vontades. É sim indispensável para o nosso processo criativo fundamentar saberes e métodos, construir portos seguros onde podemos ancorar nossas vivências, mas para além de todo porto existe um oceano que nos incita a levantar âncora. Para podermos ir ao encontro daquilo que não sabemos, para podermos ir além do que já somos, precisamos deixar o abrigo daquilo que já alcançamos. 

No horizonte se delineiam incontáveis jornadas, busquemos errar por elas.

As fotografias, risografias, monotipias e colagens que ilustram este texto são de Daniel Bicho, e foram produzidas ao decorrer de seu projeto de mestrado pela escola de Belas Artes do Rio de Janeiro.

Referências:
– Bachelard, G. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1988.
– Bey, Hakim. Superando o turismo, 2014. Disponível no link.
– Careri, F. Walkscapes, o caminhar como prática estética. São Paulo: G. Gili, 2013.
– Deleuze, G.; Guattari, F. Mil Platôs. São Paulo: Editora 34, 1997.
– Larrosa, J. Notas sobre a experiência e o saber de experiência, Campinas: Leituras SME, 2001.

é ilustrador, designer gráfico e impressor com mestrado na área de comunicação visual pela escola de Belas Artes do Rio de Janeiro. Busca entender como o ato de criar pode relacionar os universos interiores e coletivos. É co-fundador do estúdio Risotrip onde, desde 2015, produz através da risografia e da autopublicação.
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