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3 de março de 2022

Porque me demiti do dream job numa startup revolucionária

“Fantasma III” obra cedida por Marcela Novaes (@mercalanavoes, no Instagram) para ilustrar este artigo.

No meio das startups, as referências de produtos e empresas disruptivas e inovadoras são sempre as mesmas: Spotify, Google, Facebook. Trabalhar nelas é o sonho de muita gente que atua na área da tecnologia, sobretudo de designers, que acreditam que sua atividade, lá, é levada a sério. Mas, convenhamos, são distantes demais: ingressar numa delas exige domínio do inglês, bom currículo, certo perfil demográfico, entre outras coisas. A competição é com pessoas do mundo todo. Para quem não poderia realizar o sonho, havia a alternativa das que nasciam no Brasil, que tornam não tão distante assim a possibilidade de trabalhar numa empresa super cool: escritório com piscina de bolinhas e pingue-pongue, num ambiente descontraído, onde a autonomia é garantida e o design, valorizado. Será que é?

Eu nunca havia pensado direito no que eu queria pro meu futuro; sinto que não deu tempo. Saí do ensino médio como designer num e-commerce. Entrei na faculdade não porque achava que ia aprender alguma coisa – como o jovem acha que sabe tudo, né?! – mas porque, no meu contexto, ter um diploma não era uma mera conquista individual, e sim para toda a família. Era o mínimo que eu poderia fazer para retribuir. Mas, àquela altura, em que já era uma designer com carteira assinada, trabalhando 8 horas por dia, a faculdade era mais um empecilho na minha vida. Além de conciliar emprego e ensino superior, mergulhei de cabeça no “mercado de UX design”: passei por várias startups (foram 6 em 3 anos), ia a palestras, fazia cursos rápidos, participava de comunidades.

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Empresas de tecnologia que oferecem produtos financeiros de forma digital.

Nesses espaços, assimilei certas ideias sobre o mercado de trabalho e a carreira como UX designer. Uma delas foi almejar um trabalho em uma fintech1 brasileira que se tornou a maior representante da empresa dos sonhos, se autoproclamando uma grande startup, inovadora, diferentona, jovem, descolada, revolucionária. Essa empresa era o terror dos “bancos tradicionais”, que ainda não tinham adotado essa estratégia. Ah, que sonho para designers era trabalhar lá, uma empresa que dizia fazer tanto pelos brasileiros, facilitando o uso do seu dinheiro. Foi justamente isso que me atraiu para o processo seletivo de Product Designer lá. 

Duvidei, até a última ligação, que poderia ser aprovada, porque todos da área diziam que era superdifícil de entrar. Um mês depois, me mudei para São Paulo pra viver o grande sonho. Eu lembro de me sentir muito animada pra fazer parte de algo tão grande; algumas pessoas até me diziam “essa startup vai ser melhor que a faculdade” ou “depois dessa é só empresa internacional, ein!”. Mesmo trancando a faculdade e deixando minha rede de apoio e afeto em Curitiba, contava pros meus amigos com entusiasmo, porque eu queria mesmo usar meu trabalho para mudar a vida das pessoas: “tanto banco por aí enganando e roubando dinheiro das pessoas, finalmente surgiu algo diferente e agora eu sou parte disso”, pensava. 

Logo nos primeiros dias, senti o impacto do branding: meus colegas amavam estar ali. Em suas redes sociais, compartilhavam com orgulho cada lançamento da empresa ou investimento recebido por ela. Assim como eu, muitos viviam o dream job; alguns comentavam sobre as incansáveis tentativas até conseguirem estar ali. Ouvi de um colega que, se eu saísse de lá, não encontraria lugar melhor no Brasil porque eu “já estava no melhor time de design do país”. Quando eu mencionava esse emprego em uma conversa qualquer, impressionava as pessoas. Elas tinham muitas dúvidas sobre como era trabalhar lá e elogiavam a proposta da empresa. Ouvia: “Eu só uso esse aplicativo. Antes eu pagava taxa de cartão de crédito, agora não pago mais. Eles vieram pra facilitar nossas vidas.”

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Onboarding é um termo em inglês comumente utilizado na área de tecnologia para se referir a uma série de etapas para introduzir um determinado assunto. Aqui, onboarding se refere aos primeiros contatos com a cultura da empresa, regras de negócio, etc.

Quando entrei, passei por uma espécie de treinamento, o onboarding2 – que, na verdade,  começou já no processo seletivo. Os novos contratados aprendem os valores da empresa para começar seus trabalhos ainda mais imersos e engajados naquele modo de pensar. E essa missão era bem-sucedida a cada dia e a cada sessão de onboarding. Eu me sentia mais pertencente à empresa porque me identificava com a proposta à qual fui apresentada: tornar a vida financeira das pessoas mais simplificada e menos burocrática. Nós éramos inconformados buscando fazer a diferença. E eu acreditei nisso por bastante tempo. 

Dentre as diversas equipes na estrutura da empresa, fui parar na de empréstimos. De forma geral, éramos divididos por produtos e, dentro dessa categoria mais ampla, éramos subdivididos em equipes menores, os squads – uma organização conhecida por “formato Spotify”. Meu squad, uma equipe de mais ou menos 20 pessoas, era composto por dois product designers, uma UX researcher, gerentes de produto, pessoas desenvolvedoras e analistas de negócios. Eu era responsável pela experiência que o cliente teria ao acessar o produto de empréstimos no aplicativo. Por exemplo, para que alguém contratasse crédito pessoal, seria necessário passar pelo fluxo que eu desenharia. Ou seja, designer tomando decisões que facilitariam a experiência do cliente; na teoria, cabia a mim tomar decisões de interações novas ou alterações em fluxos já existentes. Bacana, não é?!

Mas só “na teoria”. Numa empresa, tempo é dinheiro, e isso tem um peso particularmente expressivo num banco. Tudo que a gente fazia tinha que estar conectado com os objetivos macro da empresa, que, no final das contas, era gerar mais capital e, com isso, crescer e mostrar que merecia a atenção de grandes investidores – mesmo que isso significasse fechar o ano no negativo. Na realidade, nenhuma funcionalidade começava a ser desenvolvida do nada para “facilitar a vida do usuário”. Era a partir de intermináveis dados e estudos de números e mais números, principalmente dos indicadores de receita, que uma iniciativa surgia e era priorizada para ir pra fila de produção e entrega. 

No dia a dia, fui conhecendo melhor o produto de empréstimo. Sentia uma pressão intensa em torno de resultados – é que, geralmente, ele traz muito dinheiro para uma companhia financeira, devido às altas taxas de juros. Então, não é de se estranhar que as pessoas coloquem carga negativa sobre ele (e os bancos fujam desse nome com seus rebrandings). Fazer um empréstimo, para muitos, significa um fracasso, a última opção. Por outro lado, também era uma oportunidade de alcançar um grande objetivo – mesmo que isso significasse pagar ao banco cerca de 50% a mais do que ele te emprestou. Ou seja, mesmo trabalhando apenas com crédito pessoal, tornou-se impossível não enxergar as diversas contradições desse contexto bancário, principalmente numa fintech que se afirma como diferente de todas as outras – e tem até fãs espalhados por aí.

Priorizar o que faria o banco crescer era um pressuposto aceito e muito bem difundido por muitos que trabalham lá – mesmo que isso significasse repentinamente recusar o empréstimo de alguém. Quando eu questionava, ouvia de diversas pessoas que a empresa não era uma instituição de caridade. Essa frase me incomodava muito, porque a empresa sempre se vendeu como quem estava do nosso lado: dos clientes, do trabalhador, do lado dos inconformados. 

Mas não estava; é estruturalmente impossível que um banco esteja. Mesmo num banco onde tudo parece ser diferente, o que determina o acesso da população ao crédito é um número, um score. É o mesmo número e a mesma estrutura que determinam os rumos de um banco, seja ele qual for. Uma pontuação definida por um algoritmo em que dados de classe social, raça, gênero, entre outros, significam apenas risco. Um algoritmo que foi desenvolvido por pessoas para quem esses fatores atrapalhariam o escalonamento do processo – e, consequentemente, o tornariam menos lucrativo. Ou seja, uma lógica opressora, pois desumaniza os dados analisados, tornando o contexto da pessoa usuária algo totalmente invisível e irrelevante. Nada é diferente, mesmo que um banco tenha um investimento pesado no que chamam de marketing humanizado.

Pois é, os bancos e contas digitais que se vendem como revolucionários fazem mais do mesmo. Por quê? Porque continuam sendo bancos. Continuam sendo instituições que, essencialmente, existem às custas da exploração capitalista dos mais pobres, às custas das altas taxas de juros que somos obrigados a pagar por falta de escolha ou informação. Parece óbvio, mas levei alguns meses para absorver isso e entender a realidade em que eu estava inserida. Eu estava iniciando um processo que reconheço como “formação política”: por meio de reflexões, conversas e estudos sobre como surgiu e porque funciona (para poucos) até hoje a estrutura capitalista, fui me dando conta das contradições existentes neste sistema tão predatório e violento. 

Quando colocava minhas questões pros colegas mais próximos, era recebida com uma quantidade assustadora de conformismo.

De fato, eu era uma pessoa inconformada, não só com o sistema financeiro, mas com a totalidade das formas de explorações capitalistas que tiram a nossa dignidade. Daí, comecei a aprender sobre a urgência da radicalização das lutas anticapitalistas e, consequentemente, sentir como a luta do lado de cá é completamente diferente do que fazem do lado de lá. Tornava-se explícito para mim que o neoliberalismo tem papel fundamental e exitoso em criar uma cortina de fumaça no que separa a luta da classe trabalhadora do ideal violento, racista e egoísta da burguesia. Nesse processo, se apropriam do nosso vocabulário, da nossa estética, dos nossos sonhos e até das nossas dificuldades (que são sintomas do modo de vida deles) para confundir e embaralhar as fronteiras existentes entre mundos e interesses tão distintos. Muitas startups têm feito isso com excelência.

Ao mesmo tempo em que me dava conta dessa realidade, me identificava cada vez mais com a luta pelo fim do capitalismo e tudo que se sustenta nele – isso tornava meu cotidiano extremamente difícil. O trabalho era grande parte da minha vida e eu me percebia fazendo projetos e tomando decisões com que eu não concordava, pois sentia pressões de todos os lados: ser promovida, ter um salário melhor, não perder meu emprego e minha fonte de renda, continuar sendo respeitada no ambiente de trabalho. Foi a partir dessas contradições que minha desilusão com o trabalho começou a surgir. 

Eu me sentia totalmente perdida e sozinha. Quando colocava minhas questões pros colegas mais próximos, era recebida com uma quantidade assustadora de conformismo. Conformismo e ausência total de imaginação política, mais ou menos como eu pensava antes da minha formação política. “Mas é um banco, você quer o quê? O fim do capitalismo? Então conta aí pra gente como faz isso”. Por isso, comecei a buscar mais espaços para elaborar as questões que surgiam na minha cabeça. 

Eu não encontrava nenhuma brecha nas comunidades de design de que fazia parte no começo da minha carreira: lá, as discussões são sempre centralizadas no sucesso individual, no sucesso de grandes empresas ou, às vezes – e muito superficialmente –, em questões de falta de representatividade no design. No final das contas, é sempre um discurso esvaziado de crítica radical, porque seu objetivo é aumentar o brand awareness de alguém em algum blog famoso de design ou ganhar mais espaço no mercado de trabalho.

Então, busquei espaços completamente distanciados do emprego. Foi nos espaços mais “acadêmicos” que pude compartilhar minhas inquietações e elaborar possibilidades de reflexão e prática. Especificamente, foi no Design & Opressão (D&O) que comecei a conhecer novas possibilidades de atuar enquanto designer. Conheci pessoas, coletivos e organizações que fugiam da lógica capitalista na qual design é historicamente imbricado e para a qual serviu como braço direito. Nesses encontros, motivada pelos debates ricos em crítica, sem medo de transformar minha construção de realidade e crenças, nasceu a vontade de mudar a forma como me relacionava com trabalho e com design. 

Passei a entender toda a comunidade e o mercado de UX de maneira muito diferente. A “coincidência” de todas as referências de “empresas dos sonhos” serem do Norte global, eurocentradas, predominantemente brancas e estruturalmente muito semelhantes chama-se imperialismo. Só porque estamos num mundo digital, vocês não acharam que o imperialismo ia falhar, né?! A reprodução desses modelos aqui no Brasil é uma consequência direta das opressões estruturais, que são veladas pelo branding e pelo marketing, se valendo de um discurso que apaga o abismo entre um simples trabalhador e uma fintech.

Eu fui aprendendo, ao longo de muitos meses, que as contradições com que lidava eram insustentáveis para mim e, por outro lado, era preciso aceitar que elas sempre existiriam.
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Título da obra de Frantz Fanon que discute o processo de descolonização, especificamente da Argélia, luta da qual ele participou. O termo é utilizado por Paulo Freire na introdução ao “Educação como prática da liberdade”.

Aprendi, com companheiros e companheiras do D&O e com Frantz Fanon, que Os Condenados da Terra3 não lutam do mesmo lado da burguesia, porque seus interesses são antagônicos. Se a nossa luta é para que não exista burguesia, eles não podem estar ao nosso lado. Depois, foi bell hooks que me apresentou a noção de que não somos duas partes isoladas de uma pessoa; nós somos um único sujeito, seja no trabalho ou em casa. Não há como separar a minha visão de mundo e meu horizonte político do meu trabalho. A única parte que se beneficia da compartimentalização da vida em caixinhas é o próprio sistema capitalista, que nos quer alienados e produzindo, seja como e o quê for. E, no final, voltamos para a casa e não nos preocupamos com o impacto do que fizemos no emprego, pois “era só trabalho”.

Assim, a urgência de uma força popular e unificada contra todas as formas de opressão que se escoram na estrutura capitalista foi ficando mais evidente. Ainda tentei conciliar os interesses nos meses que seguiram: no emprego, tomava decisões embalada por uma vontade de acreditar que estava fazendo o bem. Ao mesmo tempo, me tornava consciente do imaginário colonizador a que essa ideia se conectava: “salvar” as pessoas da forma como elas lidavam com o próprio dinheiro, tornando-as dependentes daquele serviço. É como se nosso papel fosse transformar as pessoas naquilo que o banco queria, “ensinando” como deveriam se comportar financeiramente. Não porque elas teriam mais liberdade e dignidade, mas porque dessa forma elas se encaixariam no sistema de forma mais satisfatória pro “lado de lá” – uma espécie de conciliação de classes. O fato é que esse tipo de ideia, além de oprimir, não ajuda em nada no caminho pela autonomia dessas pessoas, uma vez que as torna cada vez mais dependentes e endividadas.

Cada um pode encarar sua realidade e analisar quais contradições queremos, conseguimos e podemos bancar.

Em paralelo, tentei ressignificar o meu emprego e fazer com que fosse algo bom. Lá dentro, sentia falta da pluralidade de pessoas. Com colegas designers, incentivei discussões sobre diversidade no time; era uma ação que surgia “de baixo para cima”, com apoios pontuais da liderança. Em um esforço coletivo e, inicialmente num formato reduzido, levantamos dados demográficos da equipe. Como era de se esperar, concluímos que a diversidade racial, por exemplo, era vergonhosamente baixa – um sintoma de uma estrutura que oprime e exclui pessoas com gênero, classe e raça muito específicos.

Após alguns meses de trabalho árduo, tivemos poucos avanços, porque tínhamos que nos desdobrar entre prioridades do squad e as ações de diversidade e inclusão. Algumas coisas começaram a mudar só depois de quase um ano. Com o tempo, aprendi que nas startups a mudança é mais fácil quando as iniciativas acontecem “de cima para baixo”; como quando uma sócia é implicada em um escândalo envolvendo um discurso racista. Ainda assim, toda aquela representatividade parecia esvaziada. O modo de produzir se manteve intacto, com as metodologias importadas do Norte global para contextos sociais completamente diferentes, além de conservar as metas de crescimento. Foi assim que percebi que nenhuma meta de diversidade era capaz de tornar um banco ou um empresa capitalista em algo que fizesse bem para a classe trabalhadora.

Como é de se imaginar, todas essas tentativas de apagamento dos paradoxos da minha realidade não duraram muito tempo até eu me sentir completamente esgotada, desiludida e sem energia para continuar fazendo esse papel. Era exaustivo tentar isolar minhas crenças pessoais do que eu fazia no emprego. Eu fui aprendendo, ao longo de muitos meses, que as contradições com que lidava eram insustentáveis para mim e, por outro lado, era preciso aceitar que elas sempre existiriam. Essa foi uma etapa fundamental. Mas igualmente importante foi entender que podemos agir para confrontá-las: cada um pode encarar sua realidade e analisar quais contradições queremos, conseguimos e podemos bancar. Eu já não queria fazer parte da construção de um império que não beneficiava os meus camaradas e a minha luta; eu precisava e pude encarar essas contradições e transformar toda essa angústia em ação.

Eu busquei algumas alternativas. Primeiro, pedi demissão e fui trabalhar numa outra empresa, que não era uma fintech, porque achei que, só de sair do mundo financeiro, minhas angústias se resolveriam. Claramente me enganei; só durei 3 meses lá. Aprendi mais uma vez que existem incoerências com que podemos lidar mais facilmente, mas que também há coisas de que não há como abrir mão, se são importantes para nós e nossos objetivos. No meu caso, eu aprendi que o ambiente de trabalho precisava ser leve e eu precisava me sentir conectada e engajada com as pessoas ao meu redor. Desempregada de novo, fiz uma pausa para refletir e elencar o que era importante para mim, o que eu era capaz de bancar enquanto contradição e quais eram de fato as possibilidades que eu tinha.

Foi um período de introspecção intensa, porque não estava mais vinculada a nenhum emprego pela primeira vez em 5 anos. Foram 3 meses “parada”, com a cabeça funcionando a todo vapor. Percebi, finalmente, que meus ideais até então sempre foram muito vinculados à carreira e ao trabalho e que minha imaginação política havia sido roubada de mim muito cedo. Eu estava no meio de um processo difícil de retomá-la. Precisei me afastar até dos espaços políticos onde estava organizada e pausei os estudos aos quais vinha me dedicando. Eu sentia que tudo isso, somado ao que me deixava angustiada na minha carreira, era coisa demais pra lidar. 

O que havia me levado àquela startup foi uma idealização de como nós, designers, poderíamos mudar as coisas numa proporção muito maior do que, de fato, somos capazes. Justamente pelo que passei lá – e em tantos outros lugares –, aprendi que a mudança radical em que tanto acreditava não viria de dentro de uma empresa capitalista. A superação de um sistema violento só poderia vir do coletivo, da práxis por um ideal político radical e em espaços de luta. Entendi isso e, a essa altura, também sabia que precisava estar bem para conseguir voltar à minha militância. Hoje, com cuidado e já consciente das minhas limitações, voltei a participar e fazer parte desses espaços que tanto me acolheram e despertaram: o Coletivo Juntas, o Mutirão do Bem Viver e o Design & Opressão.

O emprego sempre me tomou uma grande parcela da minha vida e me deixava sem energia para nada além dele, mesmo quando eu não concordava com o que estava produzindo. Aliás, principalmente quando eu não concordava. Para lidar melhor com as contradições que eu sabia que iria sempre encontrar pela frente enquanto trabalhadora – a classe que depende de uma fonte de renda estável para sobreviver – fui retomando hábitos e paixões que há tanto havia deixado de lado. Voltei a fotografar, a escrever, a ler, comecei a fazer aulas de circo, que até hoje tento conciliar com a rotina (quando dou conta).

O emprego sempre me tomou uma grande parcela da minha vida e me deixava sem energia para nada além dele, mesmo quando eu não concordava com o que estava produzindo. Aliás, principalmente quando eu não concordava.

Alguns meses depois, encontrei um trabalho onde tenho conseguido lidar com as contradições de forma mais leve – sem tentar apagá-las, porque encontro satisfação em outras coisas que são inegociáveis para mim. No começo, até achei que iria achar o trabalho perfeito, mas logo retornei à conclusão de que mesmo que a proposta parecesse a mais coerente possível, ainda seria uma empresa capitalista – e toda empresa, para sobreviver nesta estrutura, precisa ser rentável. A questão era: eu conseguiria bancar emocionalmente e materialmente a forma como ela se mantém financeiramente? Ainda bem que eu pude escolher uma empresa em que a resposta era sim.

Pode ser que você tenha uma boa oportunidade de emprego, com um bom salário e com coisas que você valorize e esse emprego seja numa fintech, num banco. Se a luta contra a opressão é importante pra você e se você precisa desse emprego para atender suas necessidades emocionais e materiais, não é um problema permanecer nele para continuar em luta fora do trabalho. O importante é você estar consciente das contradições existentes, entender do que você dá conta e das limitações do trabalho de um designer. Não é porque você é um designer que conversa com os clientes que você vai conseguir atender todas as demandas dele. Afinal, pode ser que a melhor coisa para o cliente seja que a empresa em que você trabalha deixe de existir.

Retirar o emprego do lugar de prioridade da vida me ajuda a lidar com esses fluxos. Hoje entendo que toda a luta deve e pode acontecer por fora dele, o emprego é só uma parte do trabalho. Participar de redes, coletivos e organizações com direcionamento político alinhado ao meu faz renascer a vontade de lutar por um mundo em que as contradições do capitalismo e o próprio sistema sejam superados e se tornem obsoletos. Consegui me libertar de uma ideia conformista e paralisante de que não há saídas. Até agora, tenho conseguido sustentar. Pode ser que um dia eu não consiga mais, não dá pra prever.

Este texto faz parte da coluna Chão de Fábrica, co-editada por Eduardo Souza. Integram a coluna histórias em primeira pessoa sobre trabalho, que possam inspirar a estruturar demandas e imaginar novas formas de organização.

atua como designer há 6 anos e sou graduanda em Design Gráfico pela UTFPR. Dentro e fora do design, busca transformar a realidade à sua volta através da construção crítica e coletiva de horizontes livres de opressão. Integra o coletivo feminista anticapitalista Juntas, o Mutirão do Bem Viver e a Rede Design & Opressão. Trabalha em uma startup do setor de energia e também é designer na Virassol, empreendimento que se apoia nos valores da economia solidária.
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