Vocês sabiam que existe um trabalho em que a pessoa (uma mulher, especificamente) chora no velório alheio? Pois eu também não sabia, até que me convidaram para fazer o projeto gráfico de um livro sobre a morte.
O livro, que se chama Tanatopedia É uma enciclopédia impressa com verbetes fúnebres (desde moléculas que surgem com a decomposição do corpo até tipos de sepulturas) e chegou até mim pela editora Luanna Luchesi. É uma publicação independente, viabilizada por financiamento coletivo. Dei pulinhos quando fui me inteirando sobre os detalhes do projeto, em especial sobre o financiamento coletivo por meio da plataforma Catarse, pois acredito muito no modelo “faça você mesmo” – principalmente no mercado de livros. Além de viabilizar a realização de sonhos (afinal, botar seu projeto no mundo é exatamente isso), o financiamento coletivo permite que obras e publicações diversas cheguem às nossas prateleiras, o que talvez não acontecesse se dependesse de uma casa editorial maior. O projeto também já tinha uma ilustradora, a Caroline Murta. Seu trabalho é bastante detalhado, com cenas oníricas do universo da morte: pessoas de bochechas afundadas, mãos ossudas, coroas de flores… Fiquei embasbacada: não conhecia o trabalho dela antes, mas já considerava pacas.
O convite para o projeto chegou também com duas reflexões importantes. A primeira delas era sobre a minha relação com a morte, que fui entendendo ser um tanto rasa. De livros eu já entendia, mas a morte nunca tinha sido uma temática dos meus trabalhos. Nunca tive clientes desse ramo ou amigos interessados. A morte também não costuma aparecer na minha timeline ou na minha caixa de e-mails. Sou tão limitada no assunto que me faltam mais exemplos para mencionar tudo o que não consumo. A única coisa desse universo que eu conhecia era o canal do YouTube Ask a mortician, da agente mortuária Caitlin Doughty. Com vídeos que misturam diversos assuntos da cultura pop e do imaginário coletivo (em grande parte, norte-americanos), Doughty costura detalhes técnicos com curiosidades em um storytelling fácil, agradável e sem mistificar nadinha. Considero bastante educativo e elucidador – prato cheio para uma amante de não ficção como eu. Nem parece um canal de uma agente mortuária. O vídeo sobre os mortos da história real que inspirou o livro Moby Dick é um favorito (alerta de spoiler: pouca baleia assassina, muito barquinho à deriva, um toque de canibalismo). Muita gente poderia ser avessa a esse universo, mas eu enxerguei ali uma oportunidade de sair completamente da minha zona de conforto como designer. Sentia muito potencial dentro das ideias da equipe para trazer ao mundo um livro bem legal. Tinha algo de muito inusitado e muito interessante ali nesse projeto. Tateando as expectativas da autora e da editora com muita conversa e também buscando por referências históricas, pude ir construindo repertório. Não somente gráfico, mas também sobre o universo teórico e ético em que a publicação se insere.
A segunda reflexão veio de forma mais ampla: qual é o papel do design e dos/das designers ao falar da morte? Como toda temática à qual emprestamos nossas habilidades, é possível lançar luz a questões que a sociedade não endereça, não discute, mas que mesmo assim têm muitas camadas de relevância social e cultural. Com a Tanatopedia, entendi que o design é parte de um convite ao diálogo. Nesse caso, um convite para introduzir a morte no cotidiano, como cita o prefácio de Ana Júlia Kovács. A morte é fato inexorável de nossa existência, e o design pode contribuir, pode ser um meio para a compreensão e elaboração dessa ideia tão complexa. Entendê-la é um processo – pode ser que sejamos curiosos sobre o assunto ou talvez tenhamos sofrido uma perda que nos fez encarar a finitude. Dentro disso, a Tanatopedia se propõe a fornecer algumas peças desse complexo quebra-cabeça chamado “finitude da vida”, indo na contramão da lógica da indústria mortuária e de práticas culturais e sociais muito assimiladas na nossa sociedade. Ao falar de morte, ao ilustrar conceitos desse universo, o assunto vai sendo digerido, transforma-se em referência dentro de nós, vira algo sobre o qual podemos falar com quem amamos e pauta de introspecção. Um livro sobre a morte também é uma forma de acolher sentimentos, pensamentos, dúvidas.
O projeto gráfico é o pano de fundo que dá sustentação às ideias da Tanatopedia, ao seu conteúdo. Era imprescindível que o livro fosse sério, solene, e, para isso, estruturei o texto do miolo em colunas perceptíveis (o que também faz referência ao formato clássico das enciclopédias). A delicadeza também precisava transparecer no projeto, então optei por uma tipografia com terminais bruxuleantes. As ilustrações em página cheia são como pinturas a serem admiradas; estímulos visuais que colocam o cérebro em atividade, podendo assim dissolver medos ou preocupações sobre a hora fatal. A organização dos verbetes em ordem alfabética reforça o aspecto técnico do livro. A paleta de cor é muito sóbria: preto e, em raras aparições, um tom de bege quase areia, que faz alusão ao luxo acobreado de alguns cemitérios, mas também à areia que representa a passagem do tempo na ampulheta. Olhar para a morte e ver algo bonito foi importante para a Tanatopedia.
Ao pensar na minha prática ao longo do projeto, lembrei do Tibor Kalman, diretor de arte e um dos fundadores da revista Colors, financiada pela Benetton nos longínquos anos 1990. Ele fala que “designers são manipuladores”. O poder está em usar essas ferramentas de manipulação para um fim que não só consumo ou desinformação (para citar alguns exemplos contemporâneos). Gosto de pensar que meu movimento em trabalhar na Tanatopedia foi uma “manipulação para o bem”. Pois vejam só: a morte também é política. Aprendi que o movimento “death positive” é um pilar do livro. Esse movimento acredita que uma sociedade saudável se pauta nas conversas honestas sobre a morte e questiona práticas funerárias: a quem servem cerimoniais caríssimos? A quem serve uma morte a portas fechadas, longe da família, em uma “instituição”? O que sofre o meio ambiente com essas práticas e rituais? Existe uma indústria privada que, só no Brasil, movimenta R$ 7 bilhões por ano (dados de 2018, pré-pandemia e inflação) – mas quem ela beneficia, sobre quais preceitos de morte ela funciona para continuar existindo?
Nos Estados Unidos, junto ao clima de agitação social dos anos 1970, o festejo de Dia de los muertos, celebração típica do México, ganhou as vias públicas como forma de revolta contra o imperativo de que a comunidade latina se adaptasse aos costumes estadunidenses. Foram às ruas dizer que seu jeito de vivenciar a morte, assim como sua cultura, tem valor e é válido. No Brasil, nas comunidades de samba (de fortes raízes africanas), há a celebração do Gurufim. A prática começou como uma brincadeira para descontrair sepultamentos e hoje é sinônimo de festa em velório, com batucadas, cerveja, comida farta e animação. Isso faz ponte com as crenças de culturas antigas, em que o golfinho (gurufim) era aquele que conduzia ao reino dos mortos. Eu jamais saberia disso, teria esse repertório, se não tivesse topado fazer esse trabalho. E concluo que foi uma alegria ter manipulado letras, cores e a atenção do leitor para falar de tudo isso e expandir a discussão em torno da morte, cristalizando essa imersão no assunto em um material físico e, agora, em um texto sobre o projeto.
Um dos pontos que mais gosto ao trabalhar como designer é a flexibilidade para me adaptar aos clientes, às suas necessidades, demandas, tom de voz e estética. Quero terminar esse texto questionando você, designer-criative que me lê: o quanto de disposição você tem para atuar em projetos não convencionais? Te interessa alçar novos vôos, mesmo que para lugares estranhos? Gostei muito de me aventurar nesse livro, conversando diretamente com a equipe que fazia o projeto vir ao mundo e, lentamente, no meu ritmo, ir me alimentando de referências e ideias. Nem sempre temos o privilégio do processo. Em empresas, ou mesmo como freelas, os prazos apertadíssimos e a correria são prerrogativas da nossa profissão. Pensando assim, dedicar-se a um projeto alternativo talvez seja um ato de resistência. Fazer a Tanatopedia foi incrível: pelo processo, pelas pessoas, pelo resultado e pelo quanto escolhi crescer ao longo das semanas, junto com o projeto. Como também disse Tibor, “é pela estranheza que me interesso”.