O verso “o que em mim sente está pensando” faz parte do poema “Inconsciência”, de Fernando Pessoa (1888-1935). [N.E.]
Irreverente, inquieto, polivalente, o talento de Ziraldo saía pelos poros. Ou melhor, pela ponta do lápis – na obra de Ziraldo, parece haver uma linha direta entre o cérebro e o lápis. Talvez ele tenha proclamado algum dia, parafraseando o poeta português: “O que em mim sente está desenhando”1.
Ziraldo foi escritor também e, claro, prolífico. No entanto, é como se nele a própria escritura fosse gestada como imagem. Trata-se de um caso raro de escriba que redigiu como desenhava; ou, dizendo de outro modo: um pensador não verbal que por vezes usou o verbo para se expressar.
Ele era capaz de absorver cada estímulo que aparecia à sua volta, mas soube ir muito além disso: Ziraldo reprocessava imediatamente o que seus radares captavam, introduzindo em tudo que fazia uma indelével dicção pessoal – esse parece ter sido seu segredo como criador.
Desde o início da carreira, Ziraldo mostrou ser um criador polivalente, sua inventividade gráfica indo além do traço marcante que depois se tornou sua marca registrada. Nos três cartazes aqui reproduzidos temos um breve painel de sua versatilidade criativa: em O assalto ao trem pagador, de 1962, ele faz uma citação à linguagem gráfica dos jornais populares, aqueles dos quais se dizia que “se torcer, sai sangue”; ao jornal ele acrescenta justamente uma mancha de sangue realizada com especial maestria; digo maestria no sentido literal do termo: coisa feita por quem é mestre no seu ofício. Em Os fuzis, do ano seguinte, a ilustração gestual está presente – o olhar do personagem nos atinge em cheio –, mas trata-se de um desenho que não remete de imediato ao Ziraldo que depois se tornaria tão conhecido. Já em Visite o Amazonas, de 1970, ele se divertiu incorporando a sintaxe do abstracionismo geométrico, mas usando-a para sugerir uma paisagem amazônica figurativa e calorosa.
O desenho da capa de O velho capitão, de 1961, tem um paralelo com o comentário feito ao cartaz Os fuzis: nele também não se reconhece de imediato a mão de Ziraldo, ainda que seja possível reconhecer o Ziraldo que viria a ser; o traço que desenha a silhueta do personagem é o mesmo que desenha o título: nítido, seco, anguloso. Já na capa do catálogo do Festival Internacional do Filme surge um Ziraldo antecipatório dos recursos digitais que seriam oferecidos pelos programas gráficos trinta anos depois; ele explora a superposição de formas coloridas que fazem surgir novos tons de cor, um recurso característico do efeito multiply.
A frente de sua atuação no campo editorial inclui uma passagem pela revista semanal Visão, onde ocupa o cargo de diretor de arte de 1965 a 1967, aproximadamente; na capa aqui reproduzida, Ziraldo adota a colagem como recurso gráfico, outro procedimento pouco frequente em sua obra. Ainda no campo editorial, ele também experimenta o modernismo do tipo “menos é mais”: a capa da série de antologias poéticas de grandes autores funcionou tão bem que ficou anos e anos em catálogo; do ponto de vista da linguagem gráfica, a capa aposta no vazio como recurso expressivo, algo bem pouco “ziraldiano”; ao mesmo tempo, ela é um sucesso – isso, sim, bem “ziraldiano”…
No fim da década, Ziraldo iniciaria a aventura do Pasquim, na companhia de uma turma da pesada. A experiência como diretor de arte de Visão deu-lhe um lastro importante para enfrentar o ritmo de uma publicação semanal. O sucesso do jornal acabou sendo tão retumbante que mudou a carreira de todos os envolvidos. O Pasquim foi um divisor de águas em muitos sentidos e para muita gente – criadores e leitores aí incluídos.
De certo modo, os anos 1960 foram para Ziraldo um período de experimentação de diversos recursos, o roteiro de um “romance de formação”, se quisermos. A partir daí e a meu ver, esse “Ziraldo que não se reconhece de imediato como Ziraldo” foi sendo colocado de lado à medida que ele se afirmava como cartunista de gênio, dono de um traço imediatamente reconhecível, ou ainda como “pai” de personagens como o Menino Maluquinho. Essa faceta vitoriosa e bem-sucedida, que merece todo o reconhecimento que teve, acabou ensombrecendo outros talentos desse criador fabuloso.
Daí eu lembrei de Flicts, um de seus sucessos, e que também explora uma linguagem gráfica pouco “ziraldiana” – o livro vai numa linha parecida com a do cartaz Visite o Amazonas, tendo ambos nascido quase juntos, em 1969 e 1970. Digo isso porque uma possibilidade me ocorreu: a Lua cumpre papel chave em Flicts; talvez esses talentos de Ziraldo que se expressam por meio de outras dicções gráficas tenham ficado descansando justamente na face escura da Lua. Seria bom se conseguíssemos trazê-los de volta à luz.
Ziraldo Alves Pinto nasceu em Caratinga, Minas Gerais, em 1932 e nos deixou, aos 91 anos, em abril de 2024. Este texto é uma homenagem ao designer-autor, cujo trabalho iluminou a infância de seus leitores.