fbpx
Para continuar independente, a Recorte conta com o apoio de Conheça Entrelinha
Assine Menu
8 de outubro de 2024

O papel do design na construção e manutenção do estilo de vida moderno: a desconexão como fundamento

A ilustração que acompanha esse ensaio foi criada por La Minna (@la_minna) especialmente para a Recorte.

Com a disseminação das tecnologias digitais nas últimas décadas, o ser humano tem se desconectado não só da T/terra, mas de si mesmo. Esse processo, porém, não é recente. A civilização ocidental há séculos estabelece e reforça um modelo de pensamento e relação com o mundo que sustenta a desconexão, separando o ser humano do que o senso comum chama de “natureza”. O design tem sua participação nisso, por ser responsável pela concepção de grande parte dos artefatos e interfaces que medeiam nossas interações de diversas maneiras, seja com o ambiente, entre humanos, seja com os demais seres. No contexto atual, marcado por problemas relacionados à saúde física e mental, instabilidade climática, política e social, há um movimento pela busca de formas diferentes de estar no mundo. A reconexão parece ser essencial para essa mudança de orientação.

“Humano versus natureza”, uma ideia que se tornou sólida

Em 2020, ano que marca o início da pandemia de covid-19, que fez milhões de vítimas ao redor do globo e afetou de forma drástica a rotina de grande parte dos cidadãos, outro evento inédito ocorreu: a massa de objetos construídos pela humanidade superou a biomassa terrestre. O estudo “Global human-made mass exceeds all living biomass”, publicado no número 588 da revista Nature naquele mesmo ano, constatou que a massa antropogênica tem dobrado a cada 20 anos ao longo do século XX. A cada semana, produz-se o equivalente ao peso de todos os humanos vivos; a massa de plásticos equivale ao dobro de todos os animais terrestres, enquanto a dos prédios e infraestrutura superou a das árvores e arbustos.

Todas as fotografias foram clicadas por Tanise.

Para alguns estudiosos, o impacto humano no planeta alcançou intensidade suficiente para  definir o início de uma nova era geológica: o Antropoceno. Apesar de não haver consenso quanto à determinação cronológica desse período, ele é marcado pela alteração do clima, da composição atmosférica, do solo, das águas e da biosfera. Além da denominação Antropoceno, outros termos concorrentes são aceitos, como Capitaloceno (que considera o sistema capitalista como o responsável pela crise ambiental) e Plantationceno (que destaca a colonização e a colonialidade como processos centrais na degradação do meio ambiente). Independentemente de nomenclatura e datação, é impossível negar que o “domínio humano sobre a natureza” afetou de forma implacável o ecossistema terrestre. Além disso, submeteu as pessoas a uma forma cruel e desencantada de estar no mundo.

Tamanha destruição só pode ser justificada por uma alta dose de insensibilidade – que é intrínseca a sistemas políticos e econômicos que praticam o extrativismo, a monocultura e a colonização. Esse estado de torpor, por sua vez, está atrelado a uma desconexão profunda. Em um mundo orgulhoso em classificar-se como conectado, é importante se questionar: a que essa suposta conexão se refere? Enquanto o termo é usado de forma ampla – para não dizer excessiva – pelos departamentos de marketing das grandes corporações, as camadas que separam o ser humano da T/terra tornam-se ainda mais numerosas e cada vez mais extensas, grossas, rígidas, tanto em sua forma material quanto imaterial.

A ideia europeia de superioridade do homem foi imposta à força em todos os continentes, através da colonização, caracterizada pelo domínio, conquista, exploração, extração, extermínio e aculturação de outros povos.

Em algum momento de sua história, o ser humano parece ter se descolado da T/terra. O mais provável é que esse tenha sido um longo processo, que se iniciou a passos lentos e foi ganhando velocidade exponencial até decolar na velocidade dos mais ágeis foguetes, caças e mísseis. Historicamente, a divisão entre humano e natureza ganhou evidência na Idade Moderna, com o Renascimento e o Iluminismo que colocaram o ser humano no centro de tudo, com seu racionalismo, cientificismo e individualismo. Esses movimentos têm lugar e data: Europa, metade do século XIV e início do século XVII, respectivamente. Porém, não se limitaram a esse espaço e tempo. A ideia europeia de superioridade do homem foi imposta à força em todos os continentes, através da colonização, caracterizada pelo domínio, conquista, exploração, extração, extermínio e aculturação de outros povos. Essa força destruidora seria mais tarde intensificada pela industrialização, pelo liberalismo e pela globalização. Philippe Descola, antropólogo francês, afirma no livro Outras naturezas, outras culturas (Editora 34, 2016):

Para que se possa falar de natureza, é preciso que o homem tome distância do meio ambiente no qual está mergulhado, é preciso que se sinta exterior e superior ao mundo que o cerca. Ao se extrair do mundo por meio de um movimento de recuo, ele poderá perceber este mundo como um todo.

[…] a partir do momento em que nos habituamos a representar a natureza como um todo, ela se torna, por assim dizer, um grande relógio, do qual podemos desmontar o mecanismo e cujas peças e engrenagens podemos aperfeiçoar. 

Assim, a percepção de que existe uma humanidade e uma natureza, e que aquela é superior a esta, foi usada como um argumento fundamental para a contínua destruição da natureza em favor do progresso humano. Em seu livro Estar vivo: ensaios sobre movimento, conhecimento e descrição (Vozes, 2015), o antropólogo Tim Ingold discorre sobre a importância da postura bípede para os humanos, estabelecendo um vínculo entre a biologia e a separação homem-natureza:

Enquanto os pés, impelidos pela necessidade biomecânica, embasam e impulsionam o corpo para dentro do mundo natural, as mãos estão livres para entregar os projetos inteligentes ou concepções da mente sobre ele: para os primeiros, a natureza é o meio através do qual o corpo se move; para o último, apresenta-se como uma superfície a ser transformada. 

Claramente, há diferenças importantes entre os humanos e os demais seres, porém elas não deveriam legitimar uma ruptura. Da mesma forma, as diferentes formas de vida – animais, vegetais, fungos e bactérias – possuem maneiras muito distintas e singulares de inteligência e agência. São as relações entre eles, e deles com o ambiente, que estabelecem o equilíbrio na biosfera terrestre. O ser humano não escapa dessa realidade. O processo de criação e evolução colaborativa entre seres vivos e ambiente é estudado pela filósofa estadunidense Donna Haraway, que cunhou o termo “simpoiesis”, que significa fazer-com [making-with]. Em Quando as espécies se encontram (Ubu, 2022), ela diz:

Adoro o fato de que genomas humanos sejam encontrados em apenas cerca de 10% de todas as células que ocupam o espaço mundano que chamo de meu corpo; os outros 90% das células são preenchidos pelos genomas de bactérias, fungos, protistas, e tais, alguns dos quais tocam uma sinfonia necessária para que eu esteja viva e outros que estão de carona e não causam a mim, a nós, nenhum dano. Sou em vasta medida excedida numericamente por meus diminutos companheiros; melhor dizendo, devenho um ser humano adulto em companhia desses diminutos comensais. Ser um é sempre devir com muitos.

O fato é que além da divisão entre humanos e não humanos, foram criadas também divisões entre nós mesmos. Essas inúmeras divisões dicotômicas, binárias – bom versus mau, civilizado versus selvagem, eu versus outro –, além de determinarem uma perspectiva reducionista e limitada, possuem a característica de sempre colocar um como superior ao outro. 

Enfim, a divisão “humano versus natureza” é uma invenção solidificada e exportada por humanos modernos. Certamente, o grupo “humanidade” é um clube exclusivo, como aponta Ailton Krenak. Em Ideias para adiar o fim do mundo (Companhia das Letras, 2019), o filósofo e ambientalista questiona: “por que insistimos tanto e durante tanto tempo em participar desse clube, que na maioria das vezes só limita a nossa capacidade de invenção, criação, existência e liberdade?”.

O design e a modernidade

O design como profissão surge em um contexto industrial e tem como alicerce a separação entre as fases de projeto e produção. Com origens operárias, a figura do designer passou a exercer exclusivamente o trabalho de planejamento e concepção. Isso ocorreu devido à constatação pelas indústrias do valor do design: o segredo e a exclusividade eram instrumentos de vantagem comercial.

Transformações na organização industrial e, consequentemente, no trabalho, como a produção seriada através de moldes, a mecanização de processos e a extrema divisão de tarefas foram essenciais para o surgimento do design como conhecemos hoje.

Assim, transformações na organização industrial e, consequentemente, no trabalho, como a produção seriada através de moldes, a mecanização de processos e a extrema divisão de tarefas foram essenciais para o surgimento do design como conhecemos hoje. Em uma escala mais ampla, Rafael Cardoso aponta em Uma introdução à história do design (Blucher, 2008):

O design é fruto de três grandes processos históricos que ocorreram de modo interligado e concomitante, em escala mundial, entre os séculos XIX e XX. O primeiro destes é a industrialização: a reorganização da fabricação e distribuição de bens para abranger um leque cada vez maior e mais diversificado de produtos e consumidores. O segundo é a urbanização moderna: a ampliação e adequação das concentrações de população em grandes metrópoles, acima de um milhão de habitantes. O terceiro pode ser chamado de globalização: a integração de redes de comércio, transportes e comunicação, assim como dos sistemas financeiro e jurídico que regulam o funcionamento das mesmas. Todos os três processos passam pelo desafio de organizar um grande número de elementos díspares – pessoas, veículos, máquinas, moradias, lojas, fábricas, malhas viárias, estados, legislações, códigos e tratados – em relações harmoniosas e dinâmicas. Conjuntamente, esse processo pode ser entendido como um movimento para integrar tudo com tudo. Na concepção mais ampla do termo “design”, as várias ramificações do campo surgiram para preencher os intervalos e separações entre as partes, suprindo lacunas com projeto e interstícios com interfaces.

De fato, desde o seu surgimento, o design se expandiu, abrangendo vários “pontos de contato” do ser humano com o mundo. Ele acompanhou e contribuiu para viabilizar as mudanças que ocorreram desde então, como o desenvolvimento das metrópoles, das grandes corporações, de novas tecnologias e materiais e, mais recentemente, do boom digital. Através de processos e ferramentas cada vez mais precisas e com finalidades objetivas, designers desenvolvem projetos que atendem a problemas ou oportunidades comerciais que não são necessariamente reais ou genuínas, muito pelo contrário.

Em 1971, o designer, educador e ativista social Victor Papanek, no livro Design for the Real World: Human Ecology for Social Change (Thames & Hudson, 1985), enfatizou a necessidade de designers assumirem a responsabilidade pelos impactos sociais e ambientais de seu trabalho.

1

A menos que a referência tenha sido descrita em português, os trechos citados neste ensaio foram traduzidos livremente pelo autor. [N.E.]

Nunca antes na história homens adultos se sentaram e projetaram seriamente escovas de cabelo elétricas, calçadeiras cobertas de strass e carpetes de vison para banheiros, e depois fizeram planos elaborados para fabricar e vender esses aparelhos para milhões de pessoas1.

Nesse trecho do prefácio do livro, Papanek aponta para o absurdo representado pela utilização de esforço humano e recursos naturais para a criação e venda de objetos que não deveriam sequer existir. Porém, apesar de suas críticas e sugestões, a prática do design permanece a mesma até os tempos atuais. Quase 50 anos depois, o antropólogo e ativista ambiental colombiano Arturo Escobar escreveu o seguinte em Designs for the Pluriverse (Duke University Press, 2018):

[…] muito do que acontece sob o pretexto de design atualmente envolve uso intensivo de recursos e vasta destruição material; o design é central para as estruturas de insustentabilidade que baseiam o mundo contemporâneo, o chamado mundo moderno. 

Além de ter uma participação direta na destruição ambiental do planeta, o design participa ativamente na manutenção de um modelo de pensamento e relação com o mundo que propicia o consumo crescente. O design é urbano, mas não só isso, ele compõe um sistema de signos que está além da realidade material e é capaz de moldar o comportamento humano. Jean Baudrillard tinha muito a dizer sobre isso quando escreveu o livro Simulacros e simulação na década de 1980 (Relógio d’Água, 1991).

Cada um de nossos objetos práticos se associa a um ou vários elementos estruturais, mas por outro lado escapam continuamente da estruturalidade técnica para as significações segundas, do sistema tecnológico dentro de um sistema cultural. O meio ambiente cotidiano permanece, em larga medida, um sistema “abstrato”: nele os múltiplos objetos acham-se em geral isolados de sua função, é o homem que lhes assegura, na medida de suas necessidades, sua coexistência em um contexto funcional […]. 

Sobre a funcionalidade, Baudrillard afirma:

[…] o termo funcional não qualifica de modo algum aquilo que se adapta a um fim, mas aquilo que se adapta a uma ordem ou a um sistema: funcionalidade é a faculdade de se integrar em um conjunto. Para o objeto, é a possibilidade de ultrapassar precisamente sua “função” para uma função segunda, de se tornar elemento de jogo, de combinação, de cálculo, em um sistema universal de signos.Esses signos, refinados e reforçados continuamente e coletivamente, adquirem coerência e um caráter de naturalidade, de realidade ou, para usar o termo de Baudrillard, de hiper-realidade: “geração pelos modelos de um real sem origem nem realidade”. Essa é a ordem do consumo, que se desenvolve às custas de todas as formas de vida, mesmo as humanas. Em Antropofagia zumbi (N-1 Edições, 2021), Suely Rolnik afirma que, na sociedade atual, a autoestima dos indivíduos depende de uma hierarquia imaginada na qual eles são julgados e medidos uns contra os outros, constituindo um sistema de comparação que se torna cada vez mais poderoso, como se fosse inevitável.

Existe uma relação de codependência entre o design e o modo de vida capitalista. O isolamento, nesse contexto econômico e social, não é uma consequência, e sim um aspecto fundamental: separado da “natureza” e entre sua própria espécie, o ser humano se depara com um vazio irremediável.

Projetando um mundo desejável

“Em que mundo você gostaria de viver? Como ele seria?” Essas perguntas não são feitas com a frequência que deveriam. Nascemos em um modelo social, político e econômico predeterminado, indiferente aos nossos instintos, sensações, pensamentos e desejos; hegemônico, inimigo da autonomia; e assolador de encanto, imaginação e esperança. Mas assim como todos os modelos, ele não é eterno. Nos resta tentar definir o que virá em seguida.

É urgente questionarmos a atual configuração e nos permitirmos conceber uma nova realidade, para que possamos projetar a partir de nossas verdadeiras necessidades e aspirações – como pessoas que fazem parte de um ecossistema, e não como usuários e consumidores.

Num tempo em que visões apocalípticas dominam o imaginário individual e coletivo sobre o futuro, mundos desejáveis tornam-se cada vez mais distantes e improváveis. Justamente por isso a pergunta “em que mundo você quer viver?” é tão importante. É urgente questionarmos a atual configuração e nos permitirmos conceber uma nova realidade, para que possamos projetar a partir de nossas verdadeiras necessidades e aspirações – como pessoas que fazem parte de um ecossistema, e não como usuários e consumidores.

2

O ensaio da Recorte Ano 3 “Cansado de viver o fim do mundo: dicas para romper com o realismo capitalista”, de Eduardo Souza, foi inspirado pelo livro Realismo capitalista, de Mark Fisher (Autonomia Literária, 2020) e é uma leitura fundamental para aqueles que se sentem presos à lógica do capital, mas têm dificuldade de imaginar outras realidades. [N.E.]

No campo do design, uma abordagem pouco conhecida, que se volta contra a lógica capitalista de produção e mercado parece despontar. O design especulativo, descrito por Anthony Dunne e Fiona Raby no livro Speculative Everything: Design, Fiction, and Social Dreaming (MIT Press, 2013), abre caminho para o uso do design enquanto ferramenta para a investigação de futuros possíveis. A área possui grande potencial para iniciar debates e proporciona alento ao expandir horizontes. Porém, as criações que derivam desse novo campo, até agora, tiveram alcance restrito e, na maioria das vezes, não conseguem escapar do pessimismo. De certa forma, ainda estamos presos aos modos de fazer motivados pelo consumo, o que dificulta a elaboração de propostas que consigam ser mais que críticas ressentidas ao capitalismo. Ou seja, nossos projetos, por mais que tentem apontar para o futuro, ainda estão ancorados à hegemonia do agora2. Mas outras perspectivas precisam ser consideradas.

Os povos originários, que há séculos resistem à colonialidade, nos mostram que existem outras formas de nos relacionarmos com a T/terra. Por exemplo, sem a noção de posse (para eles, a T/terra não é nossa, nós é que somos da T/terra) e sem exclusividade humana (para eles seres não humanos e entidades naturais também têm agência). Confluir com esses povos pode ser um ponto de partida para mudarmos de orientação, rumo a maneiras sustentáveis de habitar o planeta. 

A virada de chave está em recuperarmos a consciência vital de que somos parte de uma dança cósmica. Enquanto prevalecer o pensamento dual exclusivista inventado pelo humano moderno, ele estará fadado a consumir a T/terra, em uma tentativa desesperada de preencher o vazio deixado por ter-se separado dela. O tempo em que vivemos implora por uma mudança radical: a dualidade precisa ruir, criando espaço para a pluralidade. Quanto aos meus desejos para o novo mundo, eles têm a ver com simplicidade, afeto, cuidado, comunidade e arte. E os seus?

é uma pessoa que perde muito tempo contemplando a vida e que ainda não descartou a ideia de se isolar da sociedade em um recanto natural. Formou-se em Design pela Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), onde enveredou-se pelo design especulativo e pela antropologia. Atuou profissionalmente na área de design editorial e pratica fotografia de forma independente.
Apoie a Recorte
A Recorte pode ajudar o seu negócio a crescer. Conheça nossos modelos de apoio e junte-se às empresas, empreendedores individuais e iniciativas que acreditam que a informação e o debate também são pilares do design.