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31 de maio de 2021

O objetivo e o social em debate

The Debate: The Legendary Contest of Two Giants of Graphic Design New York: The Monacelli Press, 2015.

O debate entre os designers gráficos Wim Crouwel e Jan van Toorn em 1972 no museu Fodor em Amsterdã tornou-se lendário para além do seu contexto original. Basicamente, ele provocou o choque entre duas posições profissionais, a saber, entre uma abordagem objetiva e uma abordagem subjetiva dos trabalhos comissionados. No entanto, passadas algumas décadas, tornou-se claro que essa dicotomia reduziu a devida compreensão do conteúdo e a relevância do debate.

Este texto trata brevemente dessa querela, partindo da tradução para o inglês de 2015 da publicação holandesa de 2008, com ensaios de Frederike Huygen e Dingenus van de Vrie, acrescida de um prefácio de Rick Poynor.

Antes, porém, uma palavra sobre o evento: o museu Fodor expunha então trabalhos de Van Toorn, mas Crouwel era responsável pela comunicação visual da exposição como designer in-house do museu Stedelijk, ao qual o Fodor era ligado. O resultado é uma discrepância entre a identidade institucional e o trabalho exposto, visível no catálogo, cuja capa é idêntica às edições anteriores.

Catálogo da exposição Jan van Toorn, museu Fodor, 1972. Design de Wim Crouwel. Cartaz da obra de Jan van Toorn (Calendário Mart.Spruijt 1972/73).

1

The Debate: The Legendary Contest of Two Giants of Graphic Design. New York: The Monacelli Press, 2015, p. 21-22.

2

Ibid., p. 22.

3

Ibid., p. 21.

4

MIDDENDORP, Jan. Dutch Type. Rotterdam: 010 Publishers, 2004, p. 119-121.

5

Ibid., p. 80-81.

Wim Crouwel abre a discussão em termos binários: haveria duas abordagens possíveis, uma “analítica” e uma “espontânea”, a qual corresponderiam dois tipos de designer, A e B. O designer do tipo A seria o único verdadeiramente profissional, por “fazer uso apenas de meios testados rigorosamente” e por “nunca se colocar entre a mensagem e seu destinatário”1. O designer do tipo B faria uso de “meios da moda” e “tenderia a ser tão absorvido pelo problema apresentado”, invadindo “especialidades que não são suas”, dado “seu grande senso de responsabilidade para com a sociedade”2. Crouwel fala assim de si mesmo e de Van Toorn, respectivamente.

Mas aqui é preciso parar por um instante. Em primeiro lugar, com o que se parece o produto da tal abordagem analítica, ou o que Crouwel chama de “mensagem ao máximo objetiva”3? A propósito, ele menciona logo em seguida sua proposta tipográfica de 1967 para um novo sistema de telas de vídeo chamada New Alphabet4. Mas lembremos que sua repercussão na imprensa holandesa se deu justamente pela dificuldade de leitura. Levado a sério, de onde provém então o senso de objetividade de Crouwel?

Ele tem um lastro histórico e passagem pela Holanda. O New Alphabet apoia-se nos trabalhos de vanguarda a partir dos anos 1910, principalmente do grupo De Stijl liderado por Piet Mondrian e Theo van Doesburg. Basta retornar ao desenho tipográfico de Van Doesburg de 1919 para reconhecer a lógica geométrica e modular e o papel secundário relegado às questões de legibilidade5.

Theo van Doesburg, Alphabet (1919) / Wim Crouwel, New Alphabet (1967)
6

Ibid., p. 82.

7

Ibid.

8

The Debate, p. 28.

9

Dutch Type, p. 114.

10

The Debate, p. 23.

Tal ideia de objetividade emergiu em oposição à ornamentação, até então central ao Movimento Moderno, dando origem ao que ficou conhecido como construtivismo ou funcionalismo holandês6. A palavra-chave é zakelijk: “objetivo” ou “pragmático”, mas também “comercial” e “sem maluquice”7. E os princípios da Nieuwe Zakelijkheid8 retornam ao primeiro plano na Holanda nos anos 1960 sobretudo por esforço dos designers Wim Crouwel e Benno Wissing9.

Em segundo lugar, Crouwel faz uma defesa da especialização, reafirmando a superioridade técnica e estética do designer em relação aos clientes e outros profissionais. Esse é o ponto que Jan van Toorn decide responder: “As pessoas no design gráfico […] tendem não só a exagerar seu próprio valor, como também a começar a ver suas atividades e seus meios como um objetivo em si, perdendo assim de vista o objetivo real”10.

11

Ibid., p. 25-26.

12

POYNOR, Rick. Jan van Toorn: Critical Practice. Rotterdam: 010 Publishers, 2008, p. 85.

13

Ibid., p. 85-86.

14

Ibid., p. 82-83.

Para van Toorn, o objetivo real é de natureza social, e o designer é inevitavelmente um “link subjetivo” (e não um “intermediário neutro”) entre o cliente e o público. Em outras palavras, o designer compartilha com todos os demais profissionais a condição de agente ao mesmo tempo individual e social, e, logo, como “mensageiro”, tem o “duplo dever” de “transmitir o conteúdo sem interferir nele”, mas não pode escapar do seu “input” e da sua “subjetividade”11.

Van Toorn fala após as transformações sociais e políticas dos anos 1960 na Europa e no mundo. Em Amsterdã, a partir de 1965, as manifestações estudantis e as represálias policiais se intensificaram e, em 1966, os estudantes ganharam assento no conselho da cidade12. Na ocasião, mesmo sem exercer nenhuma forma explícita de ativismo, Van Toorn assumiu uma posição: no catálogo municipal referente a esse ano, incluiu uma sequência de dez páginas sobre os conflitos, resistindo à pressão das autoridades para que removesse as fotos que pudessem levar à identificação dos policiais13. Após sua primeira experiência profissional na edição de revistas14, Van Toorn continuou a fazer uso de fotografias documentais nos seus projetos gráficos, mantendo um interesse ativo pelo fotojornalismo ao longo da sua carreira.

15

The Debate, p. 22.

16

POYNOR, Rick. “Jan van Toorn: The World in a Calendar”. Design Observer, 2012-05-23.

17

TOORN, Jan van. Design’s Delight. Rotterdam: 010 Publishers, 2006, p. 33.

18

Jan van Toorn, p. 109.

Além disso, Van Toorn estudou teóricos da mídia e artistas como Bertolt Brecht e Jean-Luc Godard – artistas, segundo ele, de uma linhagem reflexiva, que articularam o próprio métier de forma a despertar no público a consciência dos modos de produção e circulação dos bens culturais. É nesse sentido que Van Toorn convida os designers a “questionar seus objetivos e responsabilidade”15. Nada menos “espontâneo”.

Seu projeto de calendário Mart.Spruijt 1972/73 exemplifica bem essa atitude. Imagens de fontes diversas compõem as páginas semanais, a princípio sem muita coerência, mas de acordo com algumas categorias: homens e mulheres comuns; casais e filhos; mulheres glamorosas na mídia; Jeanne Moreau; pin-ups; modelos de cabelo; modelos de roupa íntima; celebridades; políticos; clérigos; multidões; manifestantes e soldados; atrocidades; e Angela Davis16. A organização é arbitrária e não há texto explicativo. O resultado é desconcertante e talvez incômodo demais para um ambiente doméstico. Van Toorn quer levar a pensar e, para tanto, aposta em “uma tensão perceptível entre a representação habitual da realidade e a intervenção subjetiva”17. Ou seja: expõe a manufatura da comunicação e expõe a si mesmo como manipulador dos meios de comunicação. Contudo, a despeito da importância histórica do projeto, o sucesso dessa estratégia continua a ser uma incógnita. Como afirma Poynor: “O conceito de design reflexivo de Van Toorn deposita muita fé na vontade e na capacidade das pessoas de interpretar sinais gráficos complexos que, na prática, podem confundi-las ou ser ignorados”18.

Jan van Toorn, Calendário Mart.Spruijt 1972/73 (1972).
19

The Debate, p. 26-27.

20

Ibid., p. 29.

Crouwel continua seu argumento em prol da objetividade, dessa vez nos termos da abrangência dos serviços prestados. Segundo ele, o designer não deveria manter compromissos políticos que restringissem sua atuação como profissional19.

Ouvindo nessas palavras mais do que um silogismo, Jan van Toorn aproveita então para desferir sua crítica mais aguda: “Você impõe o seu design aos outros e nivela tudo. Você estava na vanguarda, e agora nosso país está inundado por ondas de marcas e house styles e tudo parece igual. […]. O que sua abordagem faz é basicamente confirmar os padrões existentes”20.

21

CROUWEL, Wim; BROOK, Tony; SHAUGHNESSY, Adrian. Wim Crouwel: A Graphic Odissey: Catalogue. London: Unit Editions, 2011, p. 71.

22

HUYGEN, Frederike; BOEKRAAD, Hugues. Wim Crouwel: Mode en module. Rotterdam: Uitgeverij 010, 1997, p. 159.

Van Toorn refere-se indiretamente ao Total Design: o primeiro grande estúdio holandês de design, fundado em 1963 por Crouwel, Wissing, Friso Kramer e pelos irmãos Paul e Dick Schwarz. O Total Design se espelhou nas firmas estrangeiras criadas para atender grandes clientes21 e logo adotou processos sistêmicos e modulares tendo em vista não só os princípios modernistas, mas também o aumento da sua eficiência como negócio. Isso se traduzia no uso intensivo de grades construtivas, fotografias produzidas e tipos grotescos. Pelo menos até o fim da década, o Total Design dominou o mercado nacional de comunicação visual, estabelecendo um estilo corporativo sem concorrentes22.

23

The Debate, p. 30-31.

24

Jan van Toorn, p. 79.

O argumento em prol da objetividade, portanto, sustenta um interesse privado. O ponto de Van Toorn é que Crouwel não pode se esquivar da responsabilidade pelos efeitos da Total Design sobre a sociedade holandesa. Ele ataca especificamente a homogeneização visual como consequência nefasta da abordagem analítica, e não como resultado necessário das demandas corporativas. Nas suas palavras: “O pacote de demandas de um cliente é racional […]. Mas o modo como se determina uma identidade não é sempre o mesmo […]”23.

Consequentemente, Van Toorn coloca em jogo também a própria identidade profissional. Isso está implícito no seu uso do termo “social”. Não que Crouwel ignore o sentido mais amplo de responsabilidade ao qual Van Toorn alude; a questão é que a concepção de responsabilidade social começava a mudar mais uma vez justamente nesse momento. Como resume Poynor:

Nos anos 1920, os modernistas acreditavam que o design tinha uma tarefa fundamental a desempenhar como agente de transformação social e política. Nas décadas posteriores à Segunda Guerra Mundial […] era suficiente persuadir os clientes de que benefícios fluiriam de projetos que comunicavam com eficácia porque eram visualmente inventivos. Em um período de rápido crescimento da indústria, da economia e da mídia, pareceria plenamente positivo fornecer ao mundo dos negócios marcas, esquemas e textos que ajudavam a garantir uma visibilidade alta, uma presença competitiva e níveis crescentes de lucro. Percorremos um longo caminho desde então24.

25

The Debate, p. 36.

Van Toorn capta uma mudança que ocorre não só na Holanda, mas remete ao sucesso estrondoso do modernismo no meio corporativo global: o esvaziamento do conteúdo sociopolítico do design. É, nesse sentido, que enxerga um limite já em 1972 à atuação dos designers do tipo A: diante dos novos desafios surgidos nos anos 1960, “[as] pessoas na nossa profissão não têm respostas”25.

Ben Bos (Total Design), De Gruyter (marca e projeto de embalagem), 1971.
26

Ibid., p. 39-40.

Depois de um breve intervalo, uma voz irrompe na plateia:

Pelo amor de Deus, escolha o objetivo certo e reduza o consumo. Não trabalhe para nenhum outro negócio deplorável. […]. O que importa é o ataque eficaz às estruturas sociais que prevalecem hoje. […]. A noite toda, a discussão tem sido sobre lugares agradáveis, como museus, mas não sobre o trabalho em cantos menos atraentes, como a Shell Oil e similares26.

Essa voz anônima fala pela grande maioria dos designers que não expõe nem trabalha em instituições culturais; pela mão de obra que mantém em funcionamento as identidades e campanhas corporativas, tanto no setor privado quanto no público. Trata-se, enfim, do corolário da profissionalização mundial do design gráfico modernista.

27

GARLAND, Ken. First Things First: A Manifesto. London: Goodwin Press, 1964.

Mas ela expressa um incômodo: o consumismo e a busca inescrupulosa pelo lucro estariam em conflito com os ideais do Movimento Moderno. Ele reaparece em diversos momentos no pós-guerra, por exemplo, no manifesto First Things First de 1963: “estamos propondo uma inversão das prioridades em favor de formas de comunicação mais úteis e duradouras. […] e que o primeiro recurso às nossas habilidades seja em prol de causas que valem a pena”27.

28

The Debate, p. 73-74.

29

Design’s Delight, p. 198.

E hoje, apesar das novas formas de trabalho, o debate de 1972 continua a nos interessar porque essa questão não foi resolvida e o papel desse profissional continua a mudar. Além disso, como aponta Huygen, a noção de compromisso social já não se reduz a um comentário visual feito a partir de uma visão pessoal28. E, no fim, mesmo Van Toorn parece ter acompanhado essas mudanças quando afirma, em 2006:

Uma precondição para a realização dessas ambições democráticas e substanciais é que o design de comunicação estenda seu capital cultural sobre todo o ambiente sociocultural. Isso significa que, em vez de se ocupar constantemente da forma, os designers devem investir novamente em uma melhor compreensão das relações entre produção de sentido, mediação e público29.

Este texto foi publicado originalmente como leitura complementar do mês de fevereiro de 2021 do Clube do Livro do Design. O Clube, realizado por Tereza Bettinardi, promove debates mensais a partir da literatura do Design.

é designer e pesquisador. Graduado pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (2006), pós-graduado pelo Centro Universitário Maria Antonia da Universidade de São Paulo (2013) e doutor em design pela Escola Superior de Desenho Industrial da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (2019). Sua tese defendida em 2019 intitula-se "O drama do projeto: uma teoria acional do design". Entre 2005 e 2009, trabalhou em escritórios de design no Rio de Janeiro, entre eles Tecnopop e Jair de Souza. Em 2009, participou da criação do departamento de design e comunicação da Fundação Bienal de São Paulo, onde permaneceu até 2015. Em 2017, integrou a equipe de comunicação do Instituto Moreira Salles em São Paulo.
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