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1 de fevereiro de 2021

Jan Tschichold, a forma e o livro

Retrato de Jan Tschichold extraído do Deutsches Buch- und Schriftmuseum

Ingressei na Escola Superior de Desenho Industrial, a famigerada Esdi, em 2009. Depois de um ano inteiro estudando planos e volumes, cores e composições, lixando exaustivamente peças de madeira, metal e resina, chegava a hora, por fim, de colocar tudo em prática na primeira disciplina de Projeto de Comunicação Visual. Na época, meu conhecimento da história do design se limitava, quase exclusivamente, à Bauhaus e sua linhagem de sucessoras, que incluía a Escola de Ulm, iniciada por Otl Aicher, Inge Scholl e Max Bill na Alemanha pós-Segunda Guerra, e a própria Esdi, fundada no Rio de Janeiro em dezembro de 1962.

Em pânico diante do computador, me dediquei a produzir o que até ali entendia como a coisa certa a se fazer: um só tipo geométrico sem serifa para título e texto, criando hierarquias através da variação de escala; texto à esquerda, milimetricamente alinhado a uma ilustração ortogonal. Para finalizar e garantir o meu sucesso, rotacionei a composição inteira alguns graus em sentido anti-horário. Apesar de não estar muito satisfeita, me convenci de que tinha feito tudo que estava ao meu alcance para emular o cartaz criado por Herbert Bayer para uma exposição de Wassily Kandinsky, seu colega no corpo docente da Bauhaus, em 1926.

Cartaz da exposição comemorativa do sexagésimo aniversário de Wassily Kandinsky. Herbert Bayer, 1926

A lista de o que fazer e o que não fazer, no entanto, nem sequer havia sido escrita por um aluno, ex-aluno ou professor da Bauhaus. Ela vinha do livro A nova tipografia, publicado pelo jovem Jan Tschichold em 1928. Nele, Tschichold compilava as diretrizes tipográficas da última década de forma clara, objetiva e bastante imediatista – para não dizer autoritária. Sua influência e determinação foram fundamentais para que os ideais tipográficos de racionalidade, movimento e simplicidade transbordassem o mundo acadêmico e inundassem as oficinas de composição.  

Os textos de Tschichold servem para nós como ponto de ancoragem ou de partida porque associam criatividade a método, e não a genialidade.

Tschichold nasceu em 1902 em Leipzig, cidade alemã que no início do século passado era referência no mercado editorial europeu. Interessado pelas artes gráficas desde a adolescência, aos 20 anos já dava aulas na academia de artes da cidade e trabalhava como calígrafo profissional. Aos 21, visitou a primeira exposição da Bauhaus Weimar e, diz a lenda, ficou encantado. Nos anos seguintes, se dedicou a aperfeiçoar sua prática na direção que o havia maravilhado e a promover e divulgar o trabalho de outros designers que, como ele, acreditavam que a industrialização exigia que a tipografia se comportasse de maneira mecânica. Para isso, os tipos sem serifa deveriam substituir definitivamente a gestualidade das letras serifadas e góticas. O alinhamento à esquerda, por sua vez, injetaria movimento, dinamismo e velocidade às composições simétricas, estáticas e sem vida do passado.

“Daí o predomínio da assimetria na Nova Tipografia. Além disso, a vivacidade da assimetria é expressiva do nosso próprio movimento e do movimento da vida moderna; quando o movimento assimétrico na tipografia toma a lugar do repouso simétrico, isso também é um símbolo das formas mutáveis da vida em geral.” [A nova tipografia, 1928]

Cartazes de filmes para o cinema Phoebus Palast de Munique, criados por Tschichold por volta de 1927

No dia da entrega do meu projeto, vendo os cartazes dos meus colegas de turma enfileirados, percebi que vários outros haviam seguido a mesma receita – uns mais bem-sucedidos, outros menos. Voltei para casa com uma nota oito, que significava “bem executado, mas pouco inspirado”, e a certeza de que algo estava faltando.

Anos depois, não me lembro bem em que ocasião, me deparei com uma capa da coleção The Penguin Shakespeare, publicada pela Penguin Books no início dos anos de 1950. Para minha surpresa, a legenda dizia que o projeto da capa, na qual um retrato em gravura do dramaturgo inglês era combinado a uma moldura ornamentada e a uma tipografia em estilo antigo maravilhosamente bem composta, havia sido concebido por Jan Tschichold mais de 20 anos depois da publicação de A nova tipografia. Minha primeira reação foi pensar que somente algo muito grave poderia motivar uma mudança tão drástica.

Capa de “Rei Lear” na coleção The Penguin Shakespeare, projetada por Tschichold no período em que passou na Inglaterra

Tschichold admite que seu discurso impaciente compartilhava o autoritarismo da retórica nazista e a mesma mania de ordem que justificava o retrocesso político do Terceiro Reich.

Os eventos que alterariam não só a visão de Tschichold, mas também o curso da história, tiveram início em 1933, quando o Partido Nazista se consolidou no poder com o apoio de grande parte da população alemã. Na onda de perseguições que se seguiu, os professores e alunos da Bauhaus foram acusados de “bolchevismo cultural” e emigraram às pressas, principalmente para os Estados Unidos. A escola, influenciada pela geometria desafiadora e pelas ideias revolucionárias de artistas de seu tempo como El Lissitzky, Rodchenko e Malevich, foi desmantelada e em seguida fechada. Tschichold e sua família foram surpreendidos por soldados armados em Munique, onde moravam desde 1926, que revistaram sua casa em busca de pretextos e acabaram encontrando o que procuravam: cartazes soviéticos. Jan e Edith foram presos imediatamente. Ela por dois dias, e ele por seis semanas, acusado de divulgar e praticar uma “tipografia antialemã”. Em liberdade, emigraram para a Suíça, de onde jamais retornaram.

No exílio, Tschichold parou de promover A nova tipografia. No ensaio “Glaube und Wirklichkeit” [“Crença e realidade” ou “Fé e fato”] de 1946, ele admite que seu discurso impaciente compartilhava o autoritarismo da retórica nazista e estava enraizado na mesma mania de ordem que também justificava o retrocesso político representado pelo Terceiro Reich. O desprezo da tradição era, portanto, uma forma de arrogância. Dali em diante, na paz democrática da Suíça, o interesse de Tschichold se voltou, quase exclusivamente, ao objeto mais simples e complexo já produzido pelo homem e sua indústria: o livro.

“Se é complicado demais não pode ser moderno.” [Sobre Tipografia, 1975]

O conjunto de ensaios publicado originalmente em 1975, com o título “A forma do livro”, só seria traduzido para o inglês, por Robert Bringhurst (autor de Elementos do estilo tipográfico), em 1991, e publicado no Brasil em 2007. Em mais de vinte textos críticos sobre temas gerais da prática do design gráfico e especificidades tipográficas, Tschichold procura sistematizar a intuição, descrevendo vigorosamente os parâmetros de qualidade de uma boa composição. Para ele, somente um impresso que honra a tradição do livro europeu é capaz de emergir de prateleiras e mais prateleiras de modismos injustificados. Ou seja, o design de qualidade teria origem na pesquisa histórica e na análise científica de tudo que já foi feito. E a inovação pela inovação não passaria de um capricho.

O ritmo de leitura ideal e a harmonia perfeita dependeriam, portanto, de um mergulho nos elementos da página: a relação entre tamanho da página e mancha de texto, margens e alinhamento, corpo e entrelinha, espaço entre palavras e entre letras, forma e contraforma, branco e preto, papel e tinta. Como bom explorador, Tschichold dedicou grande parte de sua carreira a observar e descrever as relações de proporção que encontrou em sua jornada – como Darwin observando Galápagos, ou Galileu olhando para o céu. Os textos de Tschichold servem para nós, designers do século 21, como ponto de ancoragem ou de partida, porque associam criatividade a método, e não a genialidade. Segundo eles, o terror da página em branco, seria diluído se considerássemos combinações e estratégias preexistentes.

Como designer, entendo quem acha A forma do livro exaustivo e até angustiante. É possível chegar a esse nível de experiência e precisão? Ainda mais depois de 2020, o ano da abolição do planejamento? Para evitar a crise, sugiro que você pense nestes ensaios como fábulas de uma época distante, na qual era possível alcançar algum tipo de controle. 

Como leitora, me incomoda ser tratada por Tschichold como uma criatura solitária e indefesa. Ler não é um ato passivo, muito pelo contrário: exige muito dos olhos e da capacidade do cérebro de reconhecer e conectar. Ainda mais hoje, quando a leitura imersiva é uma atividade ameaçada pelo scroll infinito das redes sociais, projetado para sugar nossa atenção.

Naquela manhã em que entreguei meu primeiro projeto de comunicação visual, o que me faltava era a perspectiva do tempo. Enxergar a história [do design] de forma linear em vez de espiralada, limita a compreensão e atravanca a criatividade. A parte desse emaranhado que pertence a Jan Tschichold nos mostra que é possível voltar atrás, desfazer, recomeçar e avançar de novo. Sua mania de escrever e documentar é um convite para nos posicionarmos de maneira crítica não somente em relação à profissão de designer, mas também ao mundo ao nosso redor, que tem desafiado nossa sanidade, desprezado o poder da educação e minado a democracia com intolerância.

Retrato de Jan Tschichold para o Clube do livro por Maria Júlia Rêgo para o Clube do livro

Este texto foi publicado originalmente como leitura complementar do mês de novembro de 2020 do Clube do Livro do Design. O Clube, realizado por Tereza Bettinardi, promove debates mensais a partir da literatura do Design.

co-fundou o estúdio Passeio (2018-2022) e a TODA, onde cria projetos de design gráfico, tipografia e lettering. Além de coordenar a produção e edição dos ensaios da Recorte, é responsável por gerir as pessoas que fazem a revista acontecer, tanto em sua versão online, como impressa.
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