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24 de janeiro de 2025

Inteligência artificial, autoria e propriedade privada

O que senti na primeira vez em que experimentei uma ferramenta de geração de imagens com inteligência artificial (IA), em 2022, foi um misto de espanto, empolgação e curiosidade. Como uma artista-designer nascida na década de 1980, que assistiu de camarote à aterrissagem dos PCs e smartphones sobre blocos de papel almaço e telefones de disco, desde cedo fui fascinada por processos que misturassem técnicas manuais e digitais. Também presenciei uma atmosfera de euforia libertária nos primeiros anos da internet (a utopia da cultura livre despontava em sites Geocities e chats no mIRC), que plantou em mim a admiração por métodos de criação coletiva. Por essas razões fiquei muito assombrada com o fato de que aquela interface de IA respondesse ao meu comando de poucas palavras com uma combinação de pixels reconhecível gerada a partir de uma base de dados compartilhada.

Em meio ao meu deslumbramento com essa tecnologia nova, comecei a me deparar com críticas contundentes de artistas e designers muito preocupados com seus desdobramentos. A primeira crítica que me chamou atenção foi em relação à precarização das condições de trabalho: quando o mercado assimilar essa tecnologia, os prazos e exigências ficarão cada vez mais duros e não teremos tempo nem condições de cuidar das saúdes mental e física, de descansar; não seremos capazes de cobrar um preço justo pelo trabalho ou o próprio trabalho desaparecerá. Ou seja: a IA desencadeou um medo generalizado da perda dos meios de subsistência.

Será que esse medo da precarização é mesmo um medo do futuro? Ou ele simplesmente reflete o receio de seguirmos vivendo nas condições de fragilização dos direitos trabalhistas a que já estávamos submetidos antes mesmo do boom da IA?

No entanto, observando de perto, mais do que uma simples reação à chegada de uma nova tecnologia, esse temor pode estar mascarando questões mais profundas e estruturais que já afetam os trabalhadores criativos há muito tempo. Será que esse medo da precarização é mesmo um medo do futuro? Ou ele simplesmente reflete o receio de seguirmos vivendo nas condições de fragilização dos direitos trabalhistas a que já estávamos submetidos antes mesmo do boom da IA?

Imagens produzidas por Larissa Ribeiro, Revista Comando e Midjourney.
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Apesar de ter citado apenas um trecho do livro Realismo capitalista: é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo? (Autonomia Literária, 2020), todo esse parágrafo tem a ver com a ideia central da obra de Mark Fisher. Em linhas gerais, o autor nos alerta – de forma brilhante, diga-se de passagem – para o fato de que o capitalismo, em última análise, se beneficia de ataques despolitizados aos seus subprodutos mais nocivos, à medida que eles desviam a atenção da questão principal: uma incapacidade generalizada de imaginarmos outras formas de organização econômica e social.

Precisamos ter o cuidado de analisar se essa ansiedade em torno da IA não estará cumprindo o papel de fornecer um inimigo perfeito contra o qual podemos lutar “sem precisar de nenhum tipo de solução política ou de reorganização sistêmica”1, ou seja, será que estamos deixando a política de lado para atender a uma emergência ética? É fundamental examinar o verdadeiro cerne da precarização para entender se a maneira como vamos pautar a muito necessária regulação está enraizada em um desejo real de liberdade ou se estamos presos em uma crise de imaginação capitalista, na qual até mesmo os protestos e exigências que fazemos acabam reforçando a ideologia que deveriam combater.

Isso leva à segunda crítica que me chamou a atenção, sobre a legalidade da obtenção da base de dados que treina as IA. Uma das maiores preocupações que vi surgir, principalmente entre ilustradores, é: se a IA for capaz de copiar o meu trabalho, eu não serei mais necessário ao mercado. Essa angústia bastante compreensível e aparentemente elementar envolve um emaranhado de afetos e crenças relacionadas ao funcionamento de um sistema de arte profundamente regido por uma racionalidade neoliberal.

Mais do que uma mera disputa sobre tecnologia, essa discussão toca em conceitos fundamentais sobre o valor do trabalho, a função da arte e o papel das instituições, tanto as que dominam o desenvolvimento tecnológico quanto as que supostamente deveriam regulá-lo.

A utilização de informações disponíveis na internet pelas empresas desenvolvedoras sem a devida autorização dos autores tem sido um dos principais argumentos para justificar a grande hostilidade dos artistas contra os softwares de IA generativa. Como pode uma corporação usurpar o fruto do meu trabalho para produzir derivações que, em última instância, levarão à perda do meu ganha-pão? É bem neste nó que moram algumas questões intrincadas que tensionam ideias de individualidade, originalidade e direitos coletivos, que, por fazerem parte da lógica fundacional do neoliberalismo, podem ser difíceis de encarar em sua complexidade. Mais do que uma mera disputa sobre tecnologia, essa discussão toca em conceitos fundamentais sobre o valor do trabalho, a função da arte e o papel das instituições, tanto as que dominam o desenvolvimento tecnológico quanto as que supostamente deveriam regulá-lo.

Uma das saídas de regulação apontadas por movimentos de artistas tem sido a da proteção dos direitos autorais e da propriedade intelectual, através da exigência de autorização prévia para a utilização de obras artísticas e literárias e consequente remuneração sobre o uso. Embora este seja um caminho que, a princípio, solucionaria o problema da valorização e da compensação financeira, há que se olhar mais a fundo para o cerne do pensamento que rege a lógica da criação intelectual: as ideias de autoria e originalidade, os próprios conceitos de original e cópia, assim como as implicações políticas das normas de circulação da cultura.

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E também de penalização de discursos transgressores, como aponta Foucault na conferência “O que é um autor”, de 1969, mas não é esse o ponto desta análise.

Em seu livro A cultura é livre: uma história da resistência antipropriedade (Autonomia Literária, 2021), Leonardo Foletto traça um panorama detalhado da origem das noções de propriedade intelectual e de domínio público, numa análise histórica ricamente ilustrada por exemplos das culturas ocidentais e orientais, sem esquecer dos povos originários das Américas. Não deveria ser surpresa para qualquer estudante de arte e de design a constatação de que o conceito ocidental de propriedade intelectual emerge entranhada no desenvolvimento do capitalismo, com o surgimento dos primeiros monopólios cedidos a impressores. Da mesma forma, a ideia de autor como indivíduo nasce do antropocentrismo renascentista e se reafirma com a noção iluminista de santidade da criação individual. Desde o surgimento do copyright, a evocação da proteção do autor em defesas jurídicas era mais de uma artimanha para proteger monopólios de certos grupos industriais e para restringir o acesso aos meios de produção cultural do que de uma proteção real a quem criava. Analisando as condições de surgimento dessas primeiras regras que ditavam quem podia ou não copiar com base em uma necessidade de mercado, sob a bandeira da defesa da remuneração do autor2, cabe a pergunta, muito bem colocada por Foletto: “Até que ponto a introdução do direito à propriedade intelectual, em vez de promover, não restringe o progresso do conhecimento, da cultura e da tecnologia?”.

Imagens produzidas por Larissa Ribeiro, Revista Comando e Midjourney.

E se não quisermos voar tão alto com o nobre (e talvez delirante?) objetivo de defender a livre circulação da cultura, mas manter os pés no chão e pensar em como o direito de autor efetivamente atua na vida do artista-trabalhador, basta um olhar pragmático para o funcionamento desse dispositivo nas relações de mercado em 2024: Foletto cita estudos econômicos que demonstram que, das receitas obtidas com vendas de cópias, 10% do lucro vai para 90% dos artistas, enquanto que 90% vai para 10%. Isso sem considerar na equação os intermediários, como grandes gravadoras, distribuidoras e conglomerados editoriais, que, na prática, acumulam a maior parte dos recursos gerados pelo trabalho, jogando aos artistas uma migalha do valor monetário extraído do processo de transmutação da arte em mercadoria.

A propriedade intelectual, longe de ser um valor neutro, está profundamente inserida na dinâmica neoliberal da privatização de tudo, que separa os indivíduos e transforma a cultura em um mercado de produtos.

Quando enxergamos essa mínima porcentagem sobre a comercialização do trabalho como uma das únicas formas de subsistência para artistas, sem perceber, temos nossos imaginários e sonhos sequestrados pelo capitalismo – nos tornamos defensores, às vezes ferrenhos, de uma lógica que desde sua origem está fadada a nos subjugar. A regulação da IA é necessária, mas será que ela precisa seguir o modelo neoliberal, em que a propriedade intelectual é vista como um dado inquestionável e o lucro é o único critério de sucesso? Somos capazes de fazer um exercício radical de imaginação para além das fronteiras do mercado? Podemos imaginar outros mecanismos de sustentação que não dependam exclusivamente da mercantilização das obras? Algumas saídas se desenham timidamente quando pensamos em renda básica universal ou no fomento do Estado à arte, mas é urgente começarmos a arar o terreno da nossa imaginação para que possamos semear novas saídas. A propriedade intelectual, longe de ser um valor neutro, está profundamente inserida na dinâmica neoliberal da privatização de tudo, que separa os indivíduos e transforma a cultura em um mercado de produtos.

Voltando à questão específica do desrespeito à propriedade intelectual pela IA, salta aos olhos a existência de dois pesos e duas medidas quando o assunto é a exploração do conteúdo que pessoas, artistas ou não, disponibilizam na internet. Como pode ser perfeitamente aceitável, e até desejável, que uma imagem, tal qual foi postada por seu autor em uma rede social, seja utilizada por uma big tech para gerar lucro em suas plataformas sem que o autor seja minimamente recompensado, mas no momento em que essa mesma imagem se torna matéria-prima para um embaralhado de pixels gerados a partir de um gráfico de milhares de eixos, sua utilização por uma empresa passa a ser inaceitável? Se julgamos e nos revoltamos contra a segunda forma, o que nos faz aceitar a primeira com relativa tranquilidade?

Um primeiro palpite é que a forma com que as redes sociais têm capitalizado em cima do conteúdo de seus usuários é tão pulverizada e fragmentada que dificulta a materialização de um sentimento de revolta. Em outra esfera, a utilização pela IA de conteúdos dissociados do crédito de autoria mexe com afetos ligados à propriedade intelectual, à medida que a identidade do artista é construída com base na originalidade/autenticidade de sua obra.

Se as imagens que produzimos estão divorciadas de uma motivação crítica, não existe nem existirá Inteligência Artificial que por si só nos redima ou nos condene.

Embora as vanguardas artísticas e o pensamento filosófico do século 20 tenham por vezes se ocupado em decretar o fim da autoria e da originalidade na arte, não é certo que as consequências desse pensamento tenham sido amplamente absorvidas. A ideia de autor como gênio criativo solitário, cristalizada pelo Romantismo no século 19, segue infiltrada no imaginário dos mesmos artistas que, por um lado, admitem que toda obra é produto de trabalho árduo e dedicação ao processo, e, por outro, sonham com o dia em que terão uma ideia singular e brilhante, que será reconhecida e embalada como a mercadoria que lhe renderá fama e dinheiro. Mesmo que para sustentar essa fantasia seja necessário ignorar que muitos dos processos que hoje chamamos de “originais” envolvem a repetição, modificação e citação de obras anteriores. A arte sempre foi um jogo de recombinação de padrões, um processo que a IA agora potencializa de maneira explícita, ameaçando levar ao limite o império da estética do pastiche e da releitura. E se nos arriscássemos a abandonar a ideia de autor como proprietário e detentor de toda a criatividade? E se imaginássemos um mundo em que todos pudessem usar qualquer obra de qualquer maneira? Se as imagens que produzimos estão divorciadas de uma motivação crítica, não existe nem existirá Inteligência Artificial que por si só nos redima ou nos condene.

Imagens produzidas por Larissa Ribeiro, Revista Comando e Midjourney.

Criticar a existência dessa mecânica da propriedade intelectual não quer dizer de modo algum defender que se abra a porteira para que mais uma corporação se aproprie da produção artística que, de modo mais ou menos compulsório, fomos levados a disponibilizar na internet. Pelo contrário, a crítica almeja desobstruir uma trilha que antes parecia interditada pelo pensamento neoliberal. E se a solução para o problema da coleta não autorizada de dados fosse, em lugar de fechar o cerco da propriedade intelectual privada, romper de vez a represa e obrigar que as empresas que se beneficiam da inundação devolvessem à sociedade códigos abertos, transparentes e de livre acesso? Indo ainda mais longe, se essa solução de abertura viesse aliada a uma política educacional que possibilitasse a inclusão de grupos do sul global no desenvolvimento dos códigos e pudesse ajudar a prever desafios éticos fora do eixo do capital e a gerar benefícios locais? Podemos ousar imaginar cenários assim e seus possíveis ganhos e desafios? 

Participar do novo, explorar as potencialidades intrínsecas à IA, investigar e tentar desenvolver uma visão crítica e informada sobre a tecnologia não é obrigação de todo e qualquer artista. Mas arrisco dizer que hostilizar iniciativas que se aventuram por esse caminho pode acabar sendo um tiro no pé de toda a classe artística. Fomentar uma atmosfera de condenação que não permita transparência em relação ao uso da IA fará com que ela penetre nas práticas de trabalho de maneira sombria e sorrateira, sem que as discussões necessárias sejam feitas abertamente, deixando mais uma vez o domínio da técnica e da força para aqueles que não estão absolutamente preocupados com o bem-estar coletivo.

As imagens que ilustram este artigo fazem parte da série In Vitro Illustration, na qual Larissa Ribeiro utiliza o Midjourney para misturar suas obras com as de outros artistas, como, nesse caso, o projeto Revista Comando.

é artista, designer, mãe e entusiasta da cultura livre. É sócia do Estúdio Rebimboca, em São Paulo, e integrante da Sabichinho, produtora literária que disponibiliza todas as suas publicações em licença Creative Commons. Ajudou a fundar o Instituto AzMina e se dedica a investigar processos artísticos envolvendo IA e práticas colaborativas enquanto tenta não deixar a peteca cair como trabalhadora precarizada das artes.
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