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19 de abril de 2023

Habilidades de habitar

A obra “Kaê e Kandu” foi cedida por Kadu Tapuya (@kadutapuya no Instagram e @kaduxukuru no Twitter).

No furor de construir um mundo único e cada vez mais novo, nos esquecemos – ou talvez tenhamos desistido – de habitar o planeta. Projetar, produzir, fabricar, planificar, terraplanar, edificar, lotear, sanear, urbanizar – nada disso é necessariamente o mesmo que habitar. E não é muito difícil perceber que o design, método hegemônico de produção deste mundo autointitulado moderno, fracassou e fracassa fragorosamente na mediação das relações entre nós, humanos-urbanos, e os demais seres e entidades não humanas, incluindo a t(T)erra.

Tanto plástico, tanto metal, tanto vidro, tanto concreto – não nos deixemos enganar pela polidez ostensiva das nossas coisas e pela lisura betuminosa das cidades. Afinal, para que tudo isso exista, é preciso que muitas montanhas sejam carcomidas, muitos rios dragados ou soterrados, muitas florestas arruinadas, muitas vidas tratoradas (humanas e não humanas), quantidades colossais de entulho, volumes estratosféricos de dióxido de carbono e muito mais. Nas cidades, muito mais é mais.

Ao longo da história da modernidade, esse espaço-tempo fascinante e terrível nos foi legado maquinalmente. Se há algo a que nós humanos-urbanos nos habituamos, de maneira  “sustentável”, foi desprezar a terra e desacoplar progressivamente da Terra, impulsionados pela sanha de colonizar e ocupar o outro – povo, continente ou planeta, tanto faz.

É contra o amplo espectro de hibridismos, organicidades e vitalidades que escapam ao dogmático grid normativo moderno e coabitam o mundo como indesejadas “ervas daninhas” que avança a modernização – contra indígenas, quilombolas, ribeirinhos, ambulantes, populações em situação de rua, famílias sem terra, favelas inteiras e terreiros, mas também contra animais, plantas, entidades sobrenaturais e toda a intrincada rede simbiótica de humanos e não humanos que pulsa à margem do plano civilizatório.

Chegamos, pois, ao ponto de não retorno, real e metafórico: a constatação do fracasso do design, que só faria sentido se a mediação das relações entre humanos e demais seres e entidades não humanas, incluindo a t(T)erra, fosse efetivamente um projeto.
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São muitas as contribuições de Bruno Latour, autor muito original e prolífico, de interesse direto para os campos do design e da arquitetura se reposicionarem no Antropoceno. Diante de Gaia: oito conferências sobre a natureza no Antropoceno (Ubu, 2020) e Onde aterrar: como se orientar politicamente no Antropoceno (Bazar do Tempo, 2020) são alguns de seus últimos livros já publicados no Brasil.

Certa concepção de natureza permitiria que os Modernos – como Bruno Latour1 nomearia todos os agentes, de corporações a países e indivíduos, comprometidos com o avanço implacável da modernização, termo que cai como uma luva para arquitetos, urbanistas e designers – se apoderassem da Terra de tal forma que todos os demais se veriam na condição de proibidos de ocupar os seus próprios territórios.

A conversão da cosmologia moderna em um modo de ocupação dos mundos relacionais e locais, através de uma macroeconomia de monoculturas, fez das plantations e das cidades expressões incontestes do humanismo exclusivista e do naturalismo tipicamente ocidental e moderno, além de poderosos produtos t(T)erricidas. Cidades e plantations se enredam num processo amplo e extensivo de urbanização que se faz planetário, compondo a inescapável matriz espacial do Antropoceno.

Chegamos, pois, ao ponto de não retorno, real e metafórico: a constatação do fracasso do design, que só faria sentido se a mediação das relações entre humanos e demais seres e entidades não humanas, incluindo a t(T)erra, fosse efetivamente um projeto.

O design, contudo, não fracassou, pelo contrário, é um case de sucesso inconteste. Habitar nunca foi de fato o objetivo da modernidade. E para que possamos genuinamente acreditar na contribuição do design para habitação neste planeta, teremos que desinventá-lo drasticamente.

O grande projeto moderno segue sendo, antes de tudo, a “ocupação ontológica”, nos termos de Arturo Escobar, que é realizada por um mundo – capitalista, secular, liberal, patriarcal – que se dá o direito de ser o “Mundo” que recusa a relação com todos os outros mundos e que impõe sobre eles protocolos, instituições, espacialidades, artefatos etc. Nesse Mundo, o projeto do design, em todas as suas formas e produtos, inclusive espaciais, como a arquitetura e o urbanismo, é estar na linha de frente da modernização, traduzindo as políticas (neo)liberais em termos estéticos e ecológicos (ainda que os profissionais desse campo, autonomeados “liberais”, se vangloriem publicamente da sua neutralidade enquanto prestadores de serviços “autônomos”).

Não é que tenhamos nos esquecido ou desistido de habitar o planeta – nunca cogitamos habitá-lo nem tampouco nos demos ao trabalho de pensar que cada pedaço de chão é parente de outro continente, que cada minhoca compõe a multiespecífica multidão terrestre, que cada matinho que irrompe do asfalto fumegante é um sopro de atmosfera, que toda terra é um planeta.

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Sobre esse “gigantesco acidente” e possibilidades para além dele, Eduardo Viveiros de Castro e Déborah Danowski escreveram no imprescindível livro Há mundos por vir? Ensaios sobre os medos e os fins (Cultura e Barbárie, 2014) que é chegada a hora de “um projeto coletivo de re-civilização”. Como uma exortação para que “nos preparemos para uma intensificação não-material de nosso modo de vida”.

E assim, nós, humanos-urbanos, não fomos capazes de perceber os pluriversos que fissuram a modernidade ocidental e emergem com força como sensibilidades antropocênicas, nos revelando, ainda, que o Ocidente não passa de um acidente, como disse certa vez o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro2. “Um gigantesco acidente antropológico que poderá encerrar a carreira da espécie na Terra.”

Se todos, menos os necropolíticos-negacionistas, parecem concordar com a gravidade e a extensão desse Acidente sobre o regime termodinâmico do planeta, que nos trouxe a outro patamar geológico, menos consensual, entretanto, é o debate sobre o início de tal era e a qual antropos, a quais humanos, exatamente, estamos nos referindo quando falamos em Antropoceno.

O Antropoceno não é só uma era que colapsa a história do planeta e a história humana, é também um modo de enunciação ecossistêmico e cronológico, que estabelece relações próprias com lugares, seres e tempos. Falar de Antropoceno implica, portanto, revelar o lugar de fala e quais as temporalidades ali vigentes. Nada mais coerente então que o debate dessa nova geo-lógica, travado no campo da arquitetura, do urbanismo e do design, especialmente no hemisfério norte, venha recheado de propostas para as cidades do futuro, nas quais a cidade é sempre o único futuro viável (e até mesmo, num otimismo comovente, para cidades pós-Antropoceno!).

Dessas falhas emerge o desafio colossal e urgente de multiplicar as formas de habitar e se relacionar com a t(T)erra, pois as sociedades não modernas jamais pensaram os limites da humanidade restritos à própria espécie humana.
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“Quando falávamos da Terra ou da natureza, nós é que éramos os sujeitos”, era a “nossa história que era o problema – pelo menos no imaginário europeu do século XIX, e sobretudo do século XX”. Com a intrusão de Gaia, “não somos mais os únicos sujeitos da nossa história”, como nos alerta Isabelle Stengers no ensaio Gaia, traduzido e adaptado por Déborah Danowski.

No seu conhecido livro O direito à cidade, Henri Lefebvre escreveu que “durante longos séculos, a terra foi o grande laboratório do homem; só há pouco tempo é que a cidade assumiria esse papel”. A t(T)erra, no entanto, reassumiu o protagonismo, em uma intrusão3 interseccional contra as violações e destruições que o Homem de laboratório produz em escala planetária. Mas também como expansão de  mundo em curso, quando a natureza  se torna um significante vazio (ou uma entidade extinta) e as cidades uma falácia etnocêntrica, quando Pachamama, Gaia, urihi-a, tekoa porã e tantos outros entrelaçamentos entre humanos e não humanos vêm finalmente reclamar seu espaço, recorporificar a norma, reanimar as coisas, reviver o chão, retomar a terra.

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Ailton Krenak tem se dedicado a pensar com sua originalidade e lucidez habituais o design, a arquitetura e as cidades modernas no Antropoceno. Futuro ancestral e A vida não é útil (Companhia das Letras, 2023 e 2020, respectivamente) são livros do pensador indígena fundamentais para designers e arquiteto(a)s. Já o ensaio “Saiam desse pesadelo de concreto!”, publicado no livro Habitar o Antropoceno (Cosmópolis/BDMG Cultural, 2022, disponível online em PDF) é um diagnóstico preciso e contundente do mundo construído por essa pretensa “uma humanidade”.

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Em seu precioso livro Más allá de naturaleza y cultura (Amorrurtu, 2012), não publicado no Brasil, escrito a partir de pesquisas de campo na Amazônia, o antropólogo propõe um outro enfoque sobre as relações entre os humanos, os não humanos e o ambiente.

No entanto, a sensibilidade material desse tempo marcado pela colisão entre a mecânica urbano-industrial e a entropia cósmica segue interditada pelo próprio materialismo capital que gere a vida urbana desacoplada dos mundos ao redor que ainda “rexistem” a vir-a-ser cidade e que reivindicam O direito à não cidade . No continuum da urbanização planetária, do urbanismo como modo de vida, do citadismo, o Antropoceno não só é um evento “inanimista ” – sem sujeito –, mas também um acontecimento que naturaliza “uma humanidade”, como denuncia o pensador indígena Ailton Krenak4.

Todavia, se continuamos aprisionados dentro do “sólido edifício dualista” construído para durar e que segue sendo conservado sem descanso, como aponta Philippe Descola5, as falhas estruturais são “cada vez mais notórias para quem o ocupa de maneira não maquinal” e “para quem deseja encontrar nele alojamento para abrigar os povos acostumados a outras formas de habitar”. Dessas falhas emerge o desafio colossal e urgente de multiplicar as formas de habitar e se relacionar com a t(T)erra, pois as sociedades não modernas jamais pensaram os limites da humanidade restritos à própria espécie humana.

Esse desafio encara ainda “a divisão colonial”, de que nos alerta Mario Blaser. Ela é fundamental para as políticas de desenvolvimento e de modernização no sul global e é sustentada pelos critérios da diferença colonizadores-colonizado(a)s com o objetivo de aplainar o pluriverso de mundos e saberes outros. Afinal, não há modernidade imune ao eurocentrismo ou ao humanismo antropocêntrico pervasivo e saturado de colonialidade. Com o que Ailton Krenak não só concordaria, como completaria de forma precisa: “A modernização jogou essa gente do campo e da floresta para viver em favelas e em periferias, para virar mão de obra nos centros urbanos”, coletividades “jogadas nesse liquidificador chamado humanidade”.

Tanto a arquitetura quanto o urbanismo e o design modernos vêm colaborando histórica e decisivamente com a tarefa ideológica de materializar e espacializar o processo colonial ao longo de todo o século XX e ainda hoje.

Nesse vórtice, o design, apesar dos transbordamentos cada vez mais caudalosos, ainda se reafirma como prática humanista cujos produtos são resultados fundamentalmente do trabalho humano. E não só segue desconsiderando toda a sorte de agenciamentos e relações que escapam à lógica do trabalho e à razão humana, mas também dando forma aos critérios coloniais e renderizando vistosamente o antropocinismo moderno. Se é evidente que o excepcionalismo humano não está em xeque no campo do design, as suas implicações para com a colonialidade continuam veladas ou dissimuladas em prol de uma suposta positividade utópica imanente à noção de projeto – e de futuro – que lhe é constitutiva.

Tanto a arquitetura quanto o urbanismo e o design modernos vêm colaborando histórica e decisivamente com a tarefa ideológica de materializar e espacializar o processo colonial ao longo de todo o século XX e ainda hoje. Graças à capacidade de antecipar o futuro, mas também ao poder de tornar crível um futuro que é projetado para ser o único provável e possível, visualizado no presente como o “melhor”. Não à toa, a própria noção de projeto – e também de obra – segue sendo vendida politicamente e é popularmente aceita como “melhoria”, “melhoramento”, “benfeitoria”. Enquanto, de fato, deveríamos, sem titubeio, falar de “malfeitorias”.

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Sobre a perspectiva contracolonial e sobre a urgência de repensar nosso mundo “monoteista, cristão, colonial”, suas cidades e artefatos, e sobre o que podemos apreender com os modos quilombolas, vale a leitura do seu livro Colonização, quilombos: modos e significações (INCTI/UnB, 2015, disponível online em PDF).

E ainda do ensaio “Somos da Terra” publicado na PISEAGRAMA

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Em um de seus último textos, “Dissolving city, planetary metamorphosis”, um curto mas contundente ensaio para o jornal Le Monde, publicado em 1989, Henri Lefebvre escreveria que a esperança do “urbano”, como um veículo para novos valores e para uma civilização alternativa, se esvaiu junto das últimas ilusões da modernidade. (Publicado em inglês em Neil Brenner (org.), Implosions/explosions: towards a study of planetary Urbanization. Jovis, 2015.)

No entanto, no Antropoceno, os efeitos das malfeitorias são sentidos principalmente em outros lugares e outros tempos que não os modernos. E vêm sendo “reeditados”, pela perspectiva “contracolonial”, como nos ensina o pensador quilombola Antônio Bispo6. A sensibilidade antropocênica é a ciência daqueles que são as primeiras vítimas do desenvolvimento e da modernização colonial, todos aqueles coletivos e povos que vivem com a t(T)erra, já chamados de primitivos, selvagens, incivilizados, não modernos, extramodernos, holocênicos e que agora bem que poderiam ser deixados em paz, se não tivessem tudo a nos ensinar.

À medida que nos aproximamos da desilusão materialista de que “em breve, somente ilhas de produção agrícola e desertos de concreto vão restar na superfície da Terra”, como constatou Lefebvre7, finalmente nos damos conta de que ocupamos extensivamente o planeta com nossos artefatos materiais, semióticos, eletromagnéticos, radiativos e demasiado humanos, e em breve complexificaremos ainda mais essa cosmopolítica ocupando ostensivamente o Sistema Solar.

Esse avassalador projeto humanista e os impactos da Grande Aceleração sobre o Sistema Terra nos legaram já muitas coisas: o genocídio de milhares de povos e modos de existir, a extinção em massa de espécies não humanas, o desflorestamento planetário, a acidificação dos oceanos, o acréscimo exponencial de CO2 na atmosfera, o aumento vertiginoso da temperatura global e a lista infindável e cotidianamente atualizada de catástrofes.

Diante do precipício, entretanto, em estado de Emergência Climática decretado, continuamos não percebendo que habitar já não pode ser mais somente um acordo de vizinhança entre humanos ou um conjunto de relações exclusivistas e desanimadoramente antropocêntricas. Na verdade, habitar nunca foi somente uma questão habitacional e há muito não é sobre habitat, mesmo que um dos mais urgentes problemas humanos ainda seja – pasmem! – a falta de habitações em um planeta entulhado de arquitetura.

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Anna Tsing é uma importante pensadora do Antropoceno e aquilo que ela chama de “design não-intencional das infraestruturas humanas” é crucial para entendermos a materialidade projetada do nosso mundo. No livro Viver nas ruínas: paisagens multiespécies no Antropoceno (IEB/Mil Folhas, 2019), que compila e traduz para o português alguns de seus principais ensaios publicados em inglês, a antropóloga vai escrever ainda que “o Antropoceno marca, em vez disso, uma quebra nas coordenações, algo que é muito mais difícil de corrigir. Somos empurrados para novas ecologias de proliferação da morte”.

Se é preciso ter responsabilidade e habilidades para responder aos desafios, como nos instiga Donna Haraway, no Antropoceno, habitar é fundamentalmente uma questão de habitabilidades, ou seja, de habilidades cosmológicas e tecnopolíticas (e vice-versa) necessárias para coproduzir vida e partilhar diversidade em coexistência cuidadosa neste planeta irascível e profundamente perturbado pelas nossas ações. Não que a perturbação antrópica seja essencialmente ruim – a Amazônia está aí (ainda) para nos provar que habitação multiespecífica e coadaptação tecnológica entre humanos e não humanos pode produzir ecologias megadiversas e abundantes. O Antropoceno, como sugere Anna Tsing8, não é exatamente a “aurora da perturbação humana”, mas uma quebra sem precedentes nas coordenações das “assembleias de habitabilidade multiespécie”, que nos leva a “novas ecologias de proliferação da morte”. A crise de habitabilidade de nosso tempo, de que nos fala a antropóloga, exige habitabilidades que reatem essas assembleias e inventem outras.

No entanto, isso não é algo que o design esteja preparado para fazer, pelo menos não sozinho, ou enquanto estiver atado à falácia ecomodernista da sustentabilidade. Pois se esta só se sustenta com a agência humana e pelo autoengano antropocêntrico, a habitabilidade, por outro lado, prescinde de nós. Uma t(T)erra habitável e um planeta humanista são projetos cada vez mais incompatíveis e caminhos distintos nessa encruzilhada cósmica que pode ou não nos levar a algum futuro. Se tivermos alguma pretensão de habitar este planeta por mais algum tempo, teremos que manter e regenerar as condições de habitabilidade através das habilidades que formos capazes de engendrar. O que demanda, definitivamente, outros modos de habitar e outras relações bastante distintas daquelas inerentes à modernidade – ocupar, colonizar, extrair, destruir, produzir, substituir, avançar. 

Nada escapa ao t(T)erricídio. E nas cidades, das cidades e a partir delas, a indústria, a construção compulsiva e a urbanização extensiva seguem ocupando cada cm2 cartografado como “vazio” – mas que, de fato, está cheio de vida e/ou prenhe de potencial germinativo de outros mundos.

Porém, enquanto nos perguntamos se é possível fazer algo, se é desejável mesmo agir, já que nossas ações parecem inevitavelmente destrutivas e predatórias, ou, ainda, como e por onde começar, enquanto somos abduzidos pelo Metaverso, as monoculturas avançam em ritmo frenético, colonizando e destruindo os pluriversos, substituindo emaranhados de vidas humanas e não humanas – comunidades florestais, arranjos multiespécies, territórios indígenas, quilombos, terras públicas, áreas de conservação, parques nacionais –  por hiperpaisagens monoespecíficas. Nada escapa ao t(T)erricídio. E nas cidades, das cidades e a partir delas, a indústria, a construção compulsiva e a urbanização extensiva seguem ocupando cada cm2 cartografado como “vazio” – mas que, de fato, está cheio de vida e/ou prenhe de potencial germinativo de outros mundos.

O design, como diria Charles Eames, é fundamentalmente um conjunto de habilidades e um método de ação. O que estamos fazendo com essas habilidades agora e o que poderemos fazer no futuro – especialmente se pensarmos a arquitetura, o urbanismo e o design menos como profissões específicas e mais como habilidades complementares de habitar – são questões fulcrais a serem enfrentadas urgentemente e com método. Também é crucial começarmos a nos indagar com quem, e não para quem, podemos fazer algo hoje e no futuro.

A claustrofobia do Antropoceno tem a virtude de demonstrar que não há “lá fora” – para o lixo ou para os escapismos – e revelar tudo aquilo e todos aqueles que até então foram tornados invisíveis. E se quisermos sobreviver a ele, viver com ele, teremos que perceber e nos aliar finalmente a esses outros modos de existir, imaginando e praticando conjuntamente as habilidades necessárias para habitar o planeta. Para a nossa sorte, esses aliados potenciais estão ao nosso lado, ainda que sob ataque, invisibilizados ou desconsiderados. E mais dispostos que nunca a evitar solidariamente a queda do céu.

Converter essas constatações em urgências é imperativo, diante do grande impasse do design: se tornar uma forma esgotada de humanismo ou se metamorfosear para repensar seu campo e suas ferramentas para incluir muitas outras formas de humanidade e também muito mais que humanos, para imaginar formas de coabitação com toda coletividade hoje relegada à função de entorno.

Aliado ao desejo de encontro com outros modos de fazer mundos, de se relacionar com a t(T)erra, de se movimentar politicamente, de transmitir saberes e compartilhar ancestralidades, urge costurar alianças entre os “atuantes do campo do desenho”, como dizia Lina Bo Bardi, e os “praticantes”, aqueles que detêm saberes múltiplos, de que nos fala Isabelle Stengers, em busca de saídas para os impasses do design.

No entanto, quaisquer que sejam as respostas para esses impasses, estas deverão necessariamente enfrentar o enorme desafio de formular uma outra economia do design que não essa extrativista, destrutiva, desigual, desanimadora e dada como inexorável, que rege a produção dos nossos artefatos, a maquinação das cidades e a fossilização extensiva do planeta.

Inventar uma outra economia política do design implica, entretanto, uma reorganização profunda da logística urbana e da lógica econômica em função da produção de vida e de diversidade, da manutenção e da partilha da abundância, da coexistência cuidadosa. Significa também pensar material e espacialmente esse rearranjo produtivo-criativo e ainda indagar como a prática projetual pode ser reformulada pela compreensão crítica das consequências das decisões e dos efeitos das ações projetadas.

Se o desenvolvimento econômico pressupõe o mercado da necessidade e aposta na escassez, na falta e na insaciabilidade humana diante de um planeta finito, e se este é o cerne da modernidade ocidental e da colonização do mundo pelo trabalho, ensaiar uma outra economia política do design requer afrontar não somente a obsessão com o domínio sobre uma suposta natureza passiva e inerte, mas também desafiar a cultura da transformação pelo trabalho e da inovação pela inovação. Requer (des)inventar essas práticas para que a manutenção, o cuidado, a reparação e a partilha passem a ser admitidos como o motor de nossas ações, ou seja, como o inadiável projeto no Antropoceno.

É preciso superar a noção de projeto baseada na “solução de problemas” que embota o design; reconfigurar o campo das possibilidades projetuais para além das limitações da (de)formação modernista; enfrentar as contradições de uma lógica profissional comercial e privatista; investir em outras relações econômicas; fomentar formas de ativismo (cosmo)político e imaginar de modo colaborativo ferramentas para multiplicar os mundos em confluência com outros modos de existir e agir que não o humano-urbano – essas são ações também urgentes. Investigando, enfim, como desmontar os paradigmas antropocêntricos e humanistas vigentes. E como impelir a transição para além desse modelo extrativista e utilitarista – redirecionando as habilidades, os recursos e a atenção do design para a reconstrução, o refazimento, a restauração, a ressurgência e a regeneração de tudo o que o projeto moderno e colonial segue solapando.

Afinal, “só quando cessar a fúria projetiva o mundo vai descansar!”, nos adverte o sempre alerta Ailton Krenak. “Para o design a terra é uma plataforma plástica e moldável pela vontade humana. Enquanto todos os outros seres vivos coexistem, viram matéria, se transformam, se diluem, nós humanos queremos nos perpetuar e para isso inventamos uma transcendência: nós somos um design incrível e incomparável criado por Deus. E cá estamos, desenhando mundos, inventando um monte de porcarias para jogar no mundo, produzindo o desastre. Design e desastre são inseparáveis!”.

O ciclo se fecha, a seta dourada do progresso acerta a si mesma. O desastre é nossa realidade, epistêmica e existencial, e nos afronta a urgência para que, enfim, designers possam usar de seu privilégio para multiplicar os direitos para além dos humanos e das cidades, de sua influência para desenhar confluências entre mundos, de suas habilidades e métodos para habitar o Antropoceno, se metamorfoseando, finalmente, em mantenedores, cuidadores e reparadores em potencial dos mundos que, pelo menos até aqui, ajudamos a ocupar e a destruir.

Este ensaio é uma versão editada e revista do capítulo “Habitabilidades” que fecha o livro Habitar o Antropoceno (Cosmópolis/BDMG Cultural, 2022), organizado por Gabriela Moulin, Renata Marquez, Roberto Andrés e Wellington Cançado. A publicação conta com colaborações de Jerá Guarani, Carolina Levis, Alyne Costa, Gabriela Leandro, Ana Luiza Nobre, Denilson Baniwa, Frederico Duarte, Ester Carro, Zoy Anastassakis, Paulo Tavares e Ailton Krenak e está disponível na íntegra para download aqui: https://bdmgcultural.mg.gov.br/biblioteca/habitar-o-antropoceno/.

é arquiteto, professor da Escola de Arquitetura e Design da UFMG, pesquisador do grupo Cosmópolis (CNPq) e integrante do coletivo Ruinorama. Coordenou o programa Urbe Urge: Respostas à Emergência Climática, foi co-curador de Seres-Rios: Festival Fluvial e dos seminários Os Fins do Mundo na Feira Plana e Antropoceno na 12ª Bienal Internacional de Arquitetura de São Paulo. Co-organizou os livros Escavar o Futuro, Urbe Urge, Seres-rios e Habitar o Antropoceno. Pesquisa as relações entre as metamorfoses urbanas, os impasses do design e as cosmopolíticas do Antropoceno. É editor de PISEAGRAMA, plataforma editorial dedicada a pensar outros mundos possíveis em aliança com coletivos urbanos, LGBTQIAP+, afro e indígenas.
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