Por coincidência, li Enquanto você lê do designer holandês Gerard Unger enquanto lia A mulher calada da escritora de origem tcheca radicada nos Estados Unidos Janet Malcolm. Em comum, os livros têm a fonte Swift, desenhada por Unger no início dos anos 1980 e usada pela designer Flávia Castanheira no projeto gráfico da coleção de jornalismo literário da Companhia das Letras, que abriga alguns dos trabalhos investigativos de Janet. Inspirada pela agilidade do voo do andorinhão, que tem asas em forma de bumerangue, atinge 150 km/h e captura insetos no ar, a Swift reúne os atributos mais desejados em uma fonte destinada à comunicação em massa: é robusta, resistente a impressões de baixa qualidade, econômica, angulosa e assertiva. A dupla Unger-Malcolm funcionou em perfeita sintonia. A qualidade do texto somada à qualidade da leitura elevaram a experiência literária tornando-a não apenas envolvente, mas também segura e confortável. Se Malcolm fosse substituída nessa equação por um jornalista medíocre, o trabalho tipográfico de Unger não seria suficiente para manter o leitor imerso. Se, por outro lado, a fonte de Unger fosse trocada por outra de proporções equivocadas e ritmo claudicante, a genialidade do texto de Malcolm ficaria à prova da resistência do leitor.
Em A mulher calada, uma frase brilhante de Janet Malcolm se ilumina na mancha de texto: “Como o assassino, o escritor precisa de um motivo”. No contexto em que aparece, a frase refere-se aos limites da neutralidade na escrita de biografias, mas se presta a qualquer obra de não ficção, especialmente àquelas que abordam assuntos polêmicos. O motivo implícito de Unger para escrever Enquanto você lê é sua paixão pelas letras, espaços, sequências e repetições inerentes à tipografia, que estiveram no centro de sua vida por décadas. O explícito, no entanto, é a ausência de um livro, manifesto ou tratado tipográfico que descreva os mecanismos físicos e neurológicos envolvidos no ato da leitura. O que havia até então, segundo ele, eram relatos emocionados e altamente arbitrários de designers e teóricos infames, como Jan Tschichold e Stanley Morison, e outros menos parciais, mas igualmente inconclusos, como as produções dos suíços Karl Gerstner e Emil Ruder. Unger entra na guerra com sua posição declarada: está do lado da ciência.
A fisiologia do olho, os impulsos neurológicos e as reações do cérebro assumem, assim, a dianteira. Somos apresentados aos bastonetes e cones, receptores fotossensíveis que constituem nossas retinas e permitem que nossa visão se ajuste a diferentes intensidades de luz e seja capaz de distinguir cores. Também aprendemos sobre a fóvea, ponto no meio do globo ocular onde há grande concentração de cones, que nos fazem enxergar com maior nitidez, enquanto a região parafoveal produz imagens borradas, periféricas. Descobrimos que, quando lemos, nossos olhos deslizam pelas linhas dando pequenos saltos, chamados de movimentos sacádicos, através dos quais fixamos algumas letras com a fóvea e enxergamos outras de relance. O leitor experiente é capaz de dar saltos maiores, porque está acostumado à imagem das palavras e consegue distingui-las apesar da baixa definição das bordas. A leitura, enquanto ação executada pelo corpo, é tão complexa que acreditar na existência desses mecanismos microscópicos torna-se quase um exercício de fé.
Ler é permitir-se afundar na narrativa, como quem afunda em uma poltrona. A atividade, como nenhuma outra, é capaz de invocar memórias: o livro preferido da infância, um canto da casa dos avós, os títulos preferidos de pessoas que já se foram. A concentração que ela demanda nos tira dos caos das notificações e nos leva para um lugar silencioso, íntimo. Às vezes, é importante que a tipografia contribua para a sensação de conforto. Por outro lado, a leitura também pode informar ou alimentar utopias; pode instigar revoltas, fazer rir ou despertar raiva, desprezo, aversão. E tipografia, por sua vez, pode sim adicionar camadas de significado ao discurso. Esses dois cenários não são opostos, muito pelo contrário, precisam coexistir.
A adaptabilidade do leitor, que consegue migrar do experimental ao conservador, dependendo do contexto, é um ponto-chave no livro de Unger. O designer, no entanto, desde sua formação, se sente impelido a abraçar um dos extremos, porque é assim que aprendemos história: ora a importância da tradição é defendida, ora é negada e virada de ponta-cabeça. Essas opiniões divergentes são representadas por designers que dividimos entre dois times: o dos rebeldes e o dos caretas. Temos certeza, por exemplo, que David Carson é #teamrebeldes por ter rejeitado todas as regras e teorias, mas nem sempre conseguimos nos lembrar exatamente qual foi a sua contribuição. Sua contemporânea Zuzana Licko, por sua vez, é muito menos citada, apesar de ter desenhado a superutilizada família de fontes Mrs. Eaves, inspirada na serifa transicional do século XVIII (#teamcaretas?) e cocriado a revista e type foundry Emigre em 1984 ao lado de seu marido Rudy VanderLans. A publicação foi uma das primeiras concebidas e executadas de cabo a rabo em computadores Macintosh e influenciou designers do mundo todo ao longo de quase 20 anos e 69 edições (#teamrebeldes!), para o horror de críticos e designers mais apegados ao binômio forma-função como Steven Heller e Massimo Vignelli. Por ser mulher e capaz de enxergar múltiplas possibilidades no espectro, Zuzana raramente entra na primeira página da lista dos rockstars do design.
Um caso semelhante é o do tipógrafo alemão Paul Renner, que desenhou a Futura em 1927, aos 49 anos. A fonte, fruto do seu trabalho, é usada por multinacionais como Nike e Louis Vuitton, cineastas como Wes Anderson e Stanley Kubrick, artistas como Ed Ruscha e Barbara Kruger, mas seu criador é, para muitos, desconhecido. Quando o assunto é tipografia geométrica dos anos 1920, nos lembramos imediatamente do alfabeto universal de Herbert Bayer, então professor da Bauhaus, que nunca foi sequer fundido em chumbo. O projeto de Bayer é conceitual porque representa um modelo teórico, uma proposta para a escrita no futuro, logo, não precisa necessariamente ser materializado. Já a obra de Renner é um produto de alta qualidade técnica destinado ao mercado. Seu sucesso comercial é, com razão, atribuído às suas proporções clássicas e formas conhecidas – as maiúsculas são muito semelhantes às capitulares romanas, mas sem as serifas e com contraste (diferenças de espessura entre as partes finas e grossas de cada letra) quase nulo. Na lógica de Platão, o alfabeto universal pertence ao mundo das ideias, enquanto a Futura é um sucesso no mundo dos sentidos. Não é possível, no entanto, fazermos distinção de valor entre ambos: um não é mais relevante que o outro.
Historicamente, alfabetos conceituais apresentados como alternativas à escrita clássica, como o alfabeto universal de Bayer e o New Alphabet de Wim Crouwel, fizeram mais sucesso com a crítica do que com o público. Eles são valiosos como trabalhos experimentais e tensionam nosso entendimento, mas para o leitor médio que busca formas conhecidas às quais possa ancorar sua percepção, podem se tornar um enigma.
Gerard Unger nasceu em Arnhem em 1942 e não fazia o tipo insurgente. Aprendeu a usar e a criar tipografia quando ela ainda era feita de metal, viveu o auge e o declínio da fotocomposição e adaptou-se ao computador quando foi necessário. Seus desenhos de letras, mencionados em Enquanto você lê de maneira encantadoramente humilde, não chocam, mas nem de longe passam despercebidos. Mais ou menos na metade do livro, Unger revela a inquietação que parece abarcar todas as suas criações. “Experimentação sempre me atraiu, mas pessoalmente, gosto de usar isso de maneira que leitores não percebam. O quanto é possível, dentro das convenções, continuar experimentando, e quão longe se pode ir nessas experimentações antes que leitores comecem a tropeçar?” É possível extrair alguns subtextos de sua busca. Implicações importantes que muitas vezes “passam batidas” na década de 20 do século 21. Primeiro, ela pressupõe tempo para observar, explorar, testar, desenvolver. Um tempo que nos é roubado, muitas vezes, pela nossa própria e tão justificada ansiedade. Segundo, sugere que algo pode ser original sem ser mirabolante. Em um mundo saturado de imagens que exige genialidade e ousadia 24/7, essa colher de chá é um alívio.
Enquanto você lê oferece uma visão científica da legibilidade, mas acaba evidenciando outro aspecto: a impossibilidade de dissociação entre ciência e cultura quando o assunto é a manifestação visual da linguagem. Como no famoso dilema de causalidade do ovo e da galinha, é impossível dizer qual dos dois exerce maior influência sobre a legibilidade e consequentemente qual deles deve ser priorizado no desenho de tipos e na composição de textos. Sendo assim, a conclusão mais sensata é: os dois.
Quando Gerard Unger se foi em 2018, perdemos um grande professor e tipógrafo, mas também um aficionado pelos mistérios da linguagem e pelo universo de possibilidades contido em cada letra. Seu livro apresenta algumas respostas, mas também abre espaço para muitas perguntas. Para a sorte dos leitores, não ameaça a beleza de simplesmente não saber.
Este texto foi publicado originalmente como leitura complementar do mês de março de 2021 do Clube do Livro do Design. O Clube, realizado por Tereza Bettinardi, promove debates mensais a partir da literatura do Design.