Eu, quando moleque, tive o privilégio muito grande de ter um computador morando na periferia da cidade de São Paulo. Devia ter uns 10 anos, quando meu pai, professor de escola pública, comprou nosso primeiro computador. Lembro de ficar assistindo fascinado à montagem daquele complicado equipamento. Não via a hora de o técnico ir embora para que eu pudesse descobrir o que podia ser feito ali. Aquele computador era uma grande caverna, cheia de bifurcações para serem exploradas, e meu lazer era descobri-las. Não tínhamos internet na época e ninguém na minha família trabalhava com computadores. Restava, então, a mim e a meus irmãos, passar horas fuçando aquela máquina. Abria um programa e saía clicando ícone por ícone tentando entender o que acontecia. Mais ou menos uma vez por ano, meu pai fazia um novo investimento no computador: comprava um kit de caixas de som e placa de áudio (sim, não era padrão que computadores emitissem sons), depois uma impressora, um escâner, um gravador de CD/DVD etc. Cada vez que um item chegava, era uma passagem que se abria naquela caverna aumentando suas possibilidades. Esses eram momentos divertidos e com um único propósito: entender o que aquela nova ferramenta era capaz de fazer.
A vontade de manipular ferramentas sempre esteve presente em mim, tanto como parte de um ofício, como também do meu lazer. Enquanto designer, sinto que a compreensão dos instrumentos e processos que utilizo diariamente é essencial na transformação de projetos em criações que habitam no mundo. Enquanto indivíduo, a vejo como um convite para a experimentação, em que a própria criação e utilização das ferramentas é o elemento motriz e direcionador de uma prática exploratória e prazerosa.
Em diversos momentos históricos da nossa profissão, existiu uma grande proximidade entre a prática do design em si e suas ferramentas. As pessoas que faziam tipos móveis produziam suas próprias punções para gravar as formas das letras nos moldes, que seriam posteriormente usados para criar os blocos de metal. Na época do “paste-up”, a composição de uma página era feita direto no papel utilizando tesouras, estiletes e cola para fazer montagens com letras e imagens e compor leiautes. Antes das impressoras de prova de cor digitais, era utilizado o prelo – uma máquina que mimetiza em escala menor o processo original de impressão. Esses exemplos demonstram que, em geral, não era possível dissociar os resultados de um trabalho das ferramentas e processos usados para executá-lo.
Com o aumento da pressão por produtividade e a presença cada vez mais comum dos computadores em nossas rotinas, essa distância entre a prática e os processos e ferramentas aumentou. No caso dos computadores, ficamos cada vez mais acomodados à utilização crua e direta dos programas, sem compreender os bastidores de seu funcionamento. Ao mesmo tempo, nem sempre podemos ou conseguimos nos aprofundar nesses pormenores. Softwares, assim como hardwares, se tornam uma caixa fechada, que opera sob uma lógica misteriosa. De certa maneira, toda vez que uma ferramenta nova simplifica um processo, uma camada de complexidade é adicionada sobre aquele conhecimento. O que nos resta é um ícone: um vestígio do processo que deu origem àquela novidade.
Não acho que precisamos ser nostálgicos e contra qualquer evolução em relação ao nosso trabalho. Porém, é preciso estar atento e crítico, pois esse caminho pode nos distanciar de nossa prática e trazer algumas ciladas perigosas.
Se você conhece o princípio de funcionamento de uma ferramenta ou processo que faz parte do seu trabalho, você possui não apenas uma instrução, mas a capacidade de reprodução, criação e intervenção sobre ele. Por exemplo, se você entende a lógica por trás das opções de mesclagem de um software de edição de imagem, você consegue transpor a mesma lógica para outro software, pois compreendeu como elas funcionam e não apenas as utilizou. Ou seja, ao dominar uma lógica de funcionamento, você fica livre para transitar entre ferramentas e processos e pode buscar a que de fato se adequa melhor ao seu fluxo de trabalho.
Ignorar esses princípios de funcionamento é, de certa forma, delegar nossas possibilidades de criação para outras pessoas ou empresas. Abdicamos, assim, do controle de nosso próprio modus operandi. O designer Erik Van Blokland, em uma palestra para o DiaTipo SP 2013, comentou sobre as implicações disso. Para ele, trabalhamos dentro de dois espaços: um grande e sem limites chamado “espaço das ideias”, no qual todas as ideias habitam; e o segundo, menor, chamado “espaço das ferramentas”, que está contido no espaço das ideias, mas tem seus limites bem definidos pelos conhecimentos a respeito das ferramentas e processos que dominamos em nossa prática. As ideias que surgem dentro do espaço das ferramentas podem ser executadas tranquilamente, já que temos o que é necessário para concretizá-las. Mas e quando uma ideia surge fora desse espaço? Nesse caso, temos três possibilidades: 1. abandonar a ideia, pois não conseguimos executá-la; 2. forçar a ideia a se adaptar às ferramentas que dominamos; e 3. modificar, buscar ou criar novas ferramentas e processos que expandam as fronteiras do nosso espaço das ferramentas até que a ideia seja alcançada. Com a crescente padronização imposta pelo mercado sobre que ferramenta usar em cada momento, muitas vezes limitamos nosso horizonte às possibilidades 1 e 2. A terceira possibilidade é descartada por falta de tempo e conhecimento, o que, por sua vez, limita nossa capacidade de abraçar e explorar novos modos de fazer. Em longo prazo, os limites que cercam nossa criatividade vão se tornando cada vez mais estreitos.
Outro impacto desse distanciamento é que criamos, sem perceber, uma relação de dependência muito forte com os fornecedores dessas ferramentas – relação essa que também é alimentada por esses mesmos fornecedores. Isso nos torna mais vulneráveis em nosso fluxo de trabalho, pois raramente os interesses de corporações estarão ao nosso favor. Um caso que demonstra o risco dessa dependência aconteceu no dia 7 de outubro de 2019, quando a Adobe enviou um comunicado a toda sua base de usuários venezuelanos dizendo que, devido a uma sanção imposta pelo então presidente dos Estados Unidos Donald Trump, estava impedida de ter relações comerciais em território venezuelano e, portanto, todos os assinantes do país teriam acesso aos seus serviços apenas até o dia 28 daquele mês. Após essa data, o acesso seria bloqueado e todos os arquivos armazenados em seus servidores deletados sem qualquer tipo de reembolso. De repente, todas as agências, estúdios, gráficas e profissionais autônomos teriam menos de um mês para repensar seu fluxo de trabalho, arcar sozinhos com os custos de adquirir novas licenças e equipamentos, negociar novos prazos com clientes, fazer backups de portfólio, entre outros vários problemas. Exatamente no dia em que todos os acessos seriam bloqueados e arquivos deletados, a Adobe conseguiu uma exceção para continuar operando no país. Se isso não tivesse acontecido, toda comunidade de profissionais e fornecedores sofreria os impactos dessa relação de dependência.
Por esses motivos, considero ferramentas e processos essenciais para nossa prática e acredito que podemos diminuir, mesmo que um pouco, nossa dependência de ferramentas específicas, sempre mantendo um olhar atento ao nosso fluxo de trabalho, buscando compreendê-lo e experimentando novas maneiras de fazer. Não acredito que precisamos voltar ao passado e criar todas as nossas ferramentas do zero ou nos tornarmos grandes especialistas em nossos processos – até porque a ignorância também é amiga de novas ideias –, mas é frutífero mantermos viva a curiosidade sobre esse assunto e não encará-lo como um ponto trivial do nosso trabalho. Nenhuma ferramenta ou processo necessariamente fará de você um profissional melhor, mas seu trabalho sempre será impactado e definido pelas possibilidades que essas ferramentas ou processos lhe dão. Por fim, entender que toda ferramenta expande seu campo de possibilidades e que o melhor não é necessariamente aquilo que o mercado indica, mas talvez aquilo que se conecta com suas formas de construir coisas e colocá-las no mundo.
As animações que ilustram este ensaio fazem parte do projeto colaborativo 100 formas de contar de 1 a 100 utilizando programação, que convida artistas, programadores, designers e o público em geral para transformar códigos em espaços de experimentação.