Primeiras palavras: Freire foi o primeiro design thinker?
Paulo Freire é uma figura incontornável para pensar a realidade brasileira. Poderíamos supor, então, que também o é para os designers brasileiros que pensam a realidade brasileira. Mas por que a associação entre Freire e Design ainda soa como uma “novidade”? Talvez, até hoje, suas ideias tenham sido pouco lidas por designers porque Freire ficou conhecido no mundo inteiro como um educador, em vez de ser tomado como quem é: um pensador da nossa relação com a existência. Por exemplo, tomemos sua ideia de que a leitura do mundo informa a leitura da palavra. Dito assim, rápido, parece apenas um enunciado simples. Mas vale a pena aproveitar a oportunidade do seu 100º aniversário, em 19 de setembro de 2021, para dissecar isso com mais paciência.
Vamos entrar com tudo: de tanto que Freire tem a ver com design, vamos especular que ele foi o primeiro design thinker. Se fizéssemos um rebranding do pensamento freireano – o Freire Thinking? – concordaríamos que as subjetividades e a vida concreta se fazem nas relações sociais, em determinado contexto histórico e em um tempo específico. Seu processo se iniciaria, então, com os Círculos de Cultura. Rodas de conversa permitiriam a participação das pessoas, aquelas que constroem a cultura – ou seja, a realidade. A escuta é fundamental nos Círculos – seria uma espécie de focus group? – e, para desencadear essa dinâmica, imagens e palavras integradas às realidades locais seriam empregadas. A partir de questões materialmente significativas para aquelas pessoas, surgiriam conversas que seriam base para diversos processos educativos – tal como um briefing, vivo e dinâmico?
Durante seu trabalho no Brasil, antes do Golpe empresarial-militar de 1964, Freire encomendou trabalhos a artistas brasileiros como Francisco Brennand, Vicente de Abreu e Abelardo da Hora, entre outros, para diálogos nos Círculos.
Para Freire, “todos ensinamos e aprendemos mediatizados pelo mundo”. Nesse sentido, o conhecimento crítico da realidade se constrói pelo diálogo, atentos uns aos outros – seria essa a etapa de empatia de um possível double diamond freiriano? Com a provocação de imagens1 que representam situações existenciais específicas de cada contexto pedagógico, a realidade local é relacionada a questões globais. Assim, é possível articular as percepções e leituras de cada um ao passo que expande as leituras de mundo daquele grupo, naquelas relações culturais. Sua proposta de alfabetização – seria este um toolkit, já que foi eficiente a ponto de alfabetizar centenas de pessoas em 40 horas? – era poderosa porque a palavra escrita passa a ser uma mediação entre mundo e conhecimento.
Isso nos permite entender por que – na visão daqueles que se opunham à democracia popular – seu programa precisava ser interrompido, tal como foi. O “perigo” que Freire apresentava era a alfabetização de adultos de maioria camponesa da população – que João Goulart, o presidente da época, pretendia escalonar para o Brasil inteiro. De pronto, isso significava que teriam direito a votar. Alfabetizar dizia respeito tanto à interpretação das coisas, pela leitura, como da realidade, pela consciência crítica. Aqui, a palavra brota como uma expressão da experiência de mundo das pessoas. Entretanto, quando identificamos o trabalho de Freire com essas palavras estranhas, sua potência parece diminuir.
Acontece que essa coisa de palavra está muito desacreditada. Por mais contraditório que pareça, quanto mais importância ela adquire, mais é esvaziada. Justo agora quando interfaces cheias de palavras mediam a construção da nossa subjetividade e a dos outros. Sobretudo para nós, designers, que tanto gostamos de usar palavras “novas” – tomando-as emprestadas dos gringos –, justo agora elas andam perdendo seu brilho cada vez mais rápido, o que nos leva a buscar outras “novas”, que perdem o sentido ainda mais rápido… Nessas repetidas disputas de significados, um olhar crítico inspirado por Freire nos guia de volta às raízes de palavras “gastas” de maneira tola – como liberdade, consciência crítica, participação, solução.
Mesmas palavras, outros significados: fazer design com Freire
Para Freire, nem toda mediação é mediação igual. Ele é um pensador que produz uma teoria aliada à prática, ou seja, a práxis. Isso porque é na transformação da realidade material que se concretizam suas ideias: “não haveria ação humana se não houvesse uma realidade objetiva, um mundo como “não eu” do humano, capaz de desafiá-lo”. Desse modo, os conhecimentos mediados pela palavra são necessariamente situados; o que implica rejeitar toda ideia abstrata de “método”, que se propõe válido em qualquer ocasião. Ou seja, para nos relacionar com Freire, de início já rejeitaríamos completamente a possibilidade de um toolkit: a palavra no design toolkit é uma entidade efêmera e estanque, imprópria para captar uma realidade dinâmica e situada.
Não é possível dar continuidade ao trabalho de Freire sem reconhecer sua profunda raiz politizada e politizante – a não ser que as próprias ideias sejam esquartejadas. Se nos aproximamos de um determinado “público-alvo” para “coletar dados” em uma abordagem de human-centered design, nós estamos furtando a humanidade e a autonomia dessas pessoas. Seria a solução, então, um design participativo? Se entendermos “participação” como o design thinking propõe, filtrando as “necessidades” pela lente dos interesses do mercado, não. Isso não é emancipação. Esse processo cria um ambiente falso de participação cujo objetivo é gerar soluções voltadas prioritariamente para o lucro empresarial a partir da criatividade coletiva (normalmente não remunerada).
Nessas abordagens, as pessoas se tornam apenas informantes nativos para os projetos em que trabalhamos. Ao “solucionar seus problemas”, podemos estar, na verdade, intensificando as relações de dependência e subestimando a capacidade de atuação dessas pessoas nas suas vidas. Para Freire, educar não é apenas ensinar a ler e escrever palavras, mas aprender a ler o mundo e escrever a própria história. Buscar semelhança à práxis de Freire significa engajar em um projeto que não necessariamente termina em uma mercadoria, mas que busca desenvolver a capacidade do grupo de continuar fazendo a história porque a emancipação é conquistada no fazer com as pessoas em busca da superação das opressões.
Por isso, é impossível pensar com Freire e chegar à conclusão de que se pode “solucionar problemas” de outras pessoas. Seria, antes de tudo, trabalhar a formação de espaços abertos e horizontais nos quais as pessoas possam participar do projeto de sua própria realidade, de acordo com as próprias necessidades, interesses e sonhos. Isso é o oposto da “solução de problemas” a que estamos acostumados. Essa é uma evidência da despolitização a que as práticas de design estão submetidas. Freire rejeita a despolitização porque isso retira nossa potência de agir e nos torna simplesmente objetos de forças alienígenas – nos torna toolkits. Assim, se levarmos suas premissas a sério, chegaremos à mesma conclusão que Freire: ao invés de “solucionar”, precisamos problematizar.
Nesse sentido, uma problematização fundamental é reconhecer que ninguém nasce pronto, somos seres inacabados: todas as relações com outras pessoas partem de ser e estar nesse mundo, construindo a história. É exatamente por essa abertura do futuro que a ação humana pode ser significativa: “não haveria ação humana se o ser humano não fosse um “projeto”, um mais além de si, capaz de captar a sua realidade, de conhecê-la para transformá-la”. Devemos, portanto, decidir qual dos futuros deve ser desenhado e trabalhar para realizá-lo. Em vez de sermos objetos da história, tornamo-nos sujeitos ao percebermos que “é impossível existir humanamente sem assumir o direito e o dever (…) de ser político”. É aí que está a nossa liberdade.
Um lugar na luta: mediações das práticas sociais
Recentemente, o termo tem sido discutido e vem sendo substituído por “humano” – como em design centrado no ser humano. Entretanto, a mera mudança de nome não muda as relações de opressão caracterizadas pela prática.
Se sermos politicamente “neutros” é impossível, designers precisam pensar a si mesmos politicamente. A questão que se coloca é: por qual “projeto” de mundo atuaremos? Vamos pensar: a quem e a quais interesses serve a experiência que proporcionamos? Será mesmo que a finalidade é “melhorar a vida” do usuário2 que imaginamos? Ou ainda, podemos pensar: quais são os significados articulados nos nossos projetos? São valores do tipo importação – que vêm enlatados e só precisamos embalar com um jeitinho brasileiro? As formas que projetamos podem reproduzir valores e modos de vida que pouco ou nada ajudam na livre criação de existência das pessoas que interagem com nossos projetos.
Independente da área específica do design em que atuamos, trabalhamos com mediações. O que é a prática de design senão mediar? Mediamos interesses e valores; às vezes, tangibilizados em layouts, ou apps, ou focus groups, ou card sortings, ou produtos físicos, ou digitais… O fato é que esses interesses e valores se cristalizam em palavras, imagens, objetos e práticas sociais que informam nossa matéria-prima: a existência em sociedade. Ao passo que Freire viu a palavra surgir da ação cotidiana, nós importamos conceitos, ferramentas, metodologias, toolkits, softwares e queremos fazer com que a nossa realidade capciosa seja acomodada por palavras de outrem.
Nesse sentido, o fato de Freire ser reconhecido por sua pedagogia não é um problema para nos apropriarmos de seu legado. Talvez Design e Pedagogia se encontrem na articulação de modos, técnicas e materiais para o fazer da própria existência. Mais que isso, talvez o encontro seja a condição política de materializar formas no mundo à medida que o realizamos com os outros. Para levarmos o legado de Freire adiante, não podemos simplesmente emular seu “método” – principalmente se levarmos em conta que, apesar do nome, Freire não o propôs como método. Devemos buscar a intervenção que desejamos fazer no design e que podemos fazer no mundo desde suas raízes – de maneira radical.
Isso se inicia com o processo de auscultação da historicidade que Freire sintetizou ao questionar o uso da frase “Eva viu a uva”. Para ele, a recorrência dos fonemas desta frase poderia ensinar sobre aliteração, mas não era suficiente para aprender a ler o mundo porque mediava um modo de alfabetizar desvinculado da vivência concreta das pessoas com quem trabalhava. Ou seja, para que essas palavras ganhem significado, “é preciso compreender qual a posição que Eva ocupa no seu contexto social, quem trabalha para produzir a uva e quem lucra com esse trabalho”. Quantas vezes será que nós, designers, paramos para nos fazer essas perguntas? Como é possível, então, que nossa atuação articule significados próprios da nossa própria realidade?
Esse é o fundamento para pensar a politização do design: o reconhecimento de que, queiramos ou não, estamos sempre desenhando a história – ou em favor do opressor ou em favor do oprimido. Com isso, encaramos que nossos projetos inevitavelmente fazem com que as pessoas tendam a determinados jeitos de ser, de comunicar e de se relacionar. Por isso, não basta considerar os stakeholders; é preciso estar com os outros. Estar com é prática e investigação, encontrar modos de se relacionar com o entorno e com o outro, e nos transformar coletivamente com os sentidos ao integrar realidades plurais. Assim, é possível nos reconhecer como um dos múltiplos agentes do conhecimento e incorporar intersubjetividades no fazer concreto das mediações.
Para Freire, educar é auxiliar na tomada de consciência das relações de opressão que nos atravessam e lutar contra elas. Se não existe neutralidade em nenhuma ação, somos cidadãos que participam da coletividade. Nesse sentido, exercer a condição política de estar no mundo implica o processo criativo; ao projetarmos, dos dois, um: ou reforçamos as práticas sociais vigentes ou promovemos movimentos de mudança. Assumir isso é um grande risco, porque o reforço às condições vigentes pode se manifestar de formas diferentes e as mudanças podem não beneficiar os oprimidos.
Educação como compromisso histórico: design no Brasil é diferente
Além de aproximar Paulo Freire às nossas práticas, também podemos trazê-lo para as nossas salas de aula (na verdade, parece que nem tem tanta diferença…). Para isso, no entanto, precisamos responder quais são os saberes que educandos em design trazem de sua experiência e são negados, invisibilizados ou ignorados. Freire também aponta que nem toda educação liberta – pelo contrário. É, antes, muito mais comum que a educação seja utilizada como instrumento de opressão por aqueles que desejam que sejamos menos. Ele nomeia e caracteriza essa prática como a educação bancária, que domestica educandos e, em geral, molda educadores e educadoras no pensamento hegemônico. Quais são os saberes que apagamos na educação bancária de design?
A estrutura curricular engessada e pouco flexível, sem diálogo com o corpo discente, serve para que a autoridade dos professores tenda à sua perversão, que Freire aponta como autoritarismo. Além disso, o fato de a maioria das referências projetuais e teóricas serem de matriz europeia e estadunidense não contribui para que educandos encontrem, em seu processo de ensino-aprendizagem, situações parecidas com aquelas fantasiadas pelos seus educadores. Isso circunscreve as possibilidades de prática profissional a modelos estranhos, como se o próprio design fosse um toolkit. Por essas e outras, há um abismo aterrador entre dentro e fora da sala de aula (assim como entre o mercado e o mundo). Em geral, isso leva as consciências mais ingênuas a fazer críticas superficiais, apontando para o ensino em si. O alvo deve ser um modo específico de ensinar: a educação bancária.
Nesse sentido, a valorização das culturas, memórias e dos saberes das classes populares praticada e teorizada por Freire enseja um profundo exercício de observação, envolvimento e inserção inteiramente diferente do design ensinado hoje. Isso não significa abraçar uma perspectiva romântica ou fetichizada em relação aos saberes-fazeres populares que sedimentam a mediação político-cultural do nosso país. Pelo contrário, significa propor sínteses culturais que deem sentido ao “ser designer” em um contexto de capitalismo dependente. Precisamos pensar a partir de onde os pés pisam e costurar acesso tecnológico-material, influências culturais e simbólicas, ainda que seja processo complexo e tortuoso.
Incorporar esse compromisso no ensino de design, sem dúvida, é um passo para uma pedagogia anticolonial porque rejeita modelos e conceitos transplantados. Consequentemente, isso também suscita a abertura de visão do estudante sobre suas questões materiais e a pluralidade de enquadramentos. Assim como a palavra, na alfabetização freireana, brota da realidade, essa prática no ensino de design possibilita a criação de um inédito viável que brota da realidade em que estamos situados.
Assumir os desafios para cultivar a liberdade
O que Freire pode nos ensinar é fazer design com humildade e em solidariedade, para reconhecer que não podemos tudo e que temos muito a aprender se estivermos abertos a ouvir. Abraçar a humildade não significa agir com omissão: é ouvir sim, e falar também, defendendo uma práxis emancipatória de design. Um design que tem lado, que não é o lado do lucro e do mercado, mas sim da luta e superação de tudo que nos limita, do que nos impede de ser mais.
Um design com os outros. Nossa atenção deve ser dedicada às pessoas e à sociedade que construímos: quem e para quê? Afinal, como ele diria, educação não transforma o mundo – nem design. Essas práticas podem apenas impulsionar as pessoas para que desenvolvam suas capacidades de ser mais. Somente as pessoas, em relação, podem transformar o mundo – e isso necessariamente foge a qualquer “solução de problema”. Esse tipo de prática nos direciona para a criação do inédito – aquilo para o qual ainda não há palavra.
Mas transformar o mundo não necessariamente corresponde a transformar para melhor. Então, como Freire nos ensinou a perguntar: melhor para quem? Sob o domínio do capitalismo, temos transformado o mundo para os ricos, enquanto caminhamos para nossa extinção. Se interferimos na mediação das relações entre pessoas, não podemos esquecer que as pessoas têm interesses. E estamos o tempo todo materializando esses interesses. Via de regra, não é o interesse das pessoas com quem estamos trabalhando, mas de nossos investidores.
Uma transformação para nós, designers, significaria abrir mão do privilégio de nossa posição na hierarquia em favor de uma relação de estar com os outros; tanto no exercício pedagógico como na prática projetual. É desafiador e inquietante. Ainda mais, se desafia quem se beneficia com reproduzir opressões por meio dos projetos. Mas, não é à toa que Freire iniciava pela formação de círculos: nessa configuração, olhamos-nos a todas e todos em correspondência e avançamos no processo de aprendizagem mútua. A dialogicidade freireana é a essência da educação: a prática da liberdade. Assim, podemos nos abrir para o inédito; para o que, talvez, não seja imediatamente solucionável.
Este texto foi escrito de maneira colaborativa pelos participantes da rede Design & Opressão. As imagens são das páginas do Livro de leitura para adultos, produzido pelo Movimento Cultura Popular e disponível para download.