Para muitos foi uma “tragédia anunciada”. Outros foram pegos de surpresa. Poucos, contudo, foram aqueles que não se assustaram com as violentas imagens dos ataques aos principais símbolos da República brasileira, que se deram na Praça dos Três Poderes, em Brasília, em 8 de janeiro de 2023 – exatamente uma semana após a posse de Luiz Inácio Lula da Silva como Presidente da República. Estupefatos, assistimos àquela turba ensandecida quebrando vidros e paredes dos edifícios-sede dos poderes da República, destruindo peças de mobília e obras de arte e promovendo um espetáculo desafiador à ordem democrática nacional.
Duas praças — ambas com formato triangular, separadas por cerca de oito quilômetros — serviram de início e fim para a marcha fascista verde-amarela. Será que o desenho dessas praças, e da cidade que as abriga, colaborou com o ataque à democracia? Será, por outro lado, que os ideais que levaram à construção de Brasília foram violados pelos atos golpistas? Ou tudo convergiu para um grande projeto autoritário, presente desde a concepção da capital?
Curioso lembrar, aliás, que o mesmo Burle Marx que desenhou a praça que serviu de refúgio para os fascistas provavelmente reunia em sua própria pessoa tudo o que eles sempre odiaram: o arquiteto era, afinal, artista, homossexual, ambientalista e, sobretudo, uma pessoa que sempre celebrou o prazer de viver. Já a marcha do dia 8 foi desde o início marcada pelo desprezo à vida, à alegria, à democracia e, sobretudo, pelo desprezo ao povo.
A primeira praça, inaugurada em 1970, é conhecida como Praça dos Cristais e foi projetada pelo arquiteto paisagista Roberto Burle Marx1 em frente à sede do Quartel-General do Exército brasileiro. Repleta de grafismos geométricos, espelhos d’água, jardineiras e volumes prismáticos alusivos a cristais, trata-se de um grande espaço público dedicado à apreciação da paisagem. A outra, dos Três Poderes, inaugurada junto de Brasília em 1960, resultado da colaboração entre Lúcio Costa e Oscar Niemeyer, se constitui de um gigantesco terrapleno igualmente triangular sobre o qual pousam as sedes dos poderes. Se a praça de Burle Marx é antes de tudo um espaço dedicado à fruição de suas qualidades paisagísticas, a Praça dos Três Poderes tem outro propósito: materializar (talvez de forma um tanto literal) a isonomia de poderes própria do regime republicano e a democracia liberal encarnada em seu caráter monumental.
É razoavelmente consensual entre pesquisadores que Brasília foi constituída não só pela região coberta pelo Plano Piloto, mas também por todas as aglomerações urbanas que existem no Distrito Federal. Trata-se de uma realidade metropolitana onde vivem cerca de 3 milhões de habitantes — contudo, apenas cerca de 10% dessa população tem condições de acessar os caríssimos imóveis da região do Plano Piloto, onde se concentra a maior renda per capita.
Brasília é reconhecidamente terra de contradições: uma vez concluída, viu a maior parte de sua população obrigada a morar nas distantes “cidades-satélites”2, seja em função de ações explícitas de desalojamento por parte do poder público, seja pelo aumento meteórico do preço dos imóveis na região coberta pelo Plano Piloto — documento urbanístico gestado a partir da proposta de Lúcio Costa que venceu o concurso de ideias para a nova capital promovido pelo governo federal em 1957. O recorte racial da cidade também é assustador: a região do Plano Piloto é quase exclusivamente branca, enquanto nas demais aparecem com maior frequência pretos e pardos. Brasília talvez seja, desde sempre, a síntese perfeita para um país que nunca atacou com firmeza a herança da escravidão, a herança dos regimes autoritários, das quarteladas e do patrimonialismo.
Em seus edifícios, monumentos e urbanismo, Brasília tenta ser a mais perfeita encarnação dos ideais abstratos de uma democracia liberal meio amorfa, genérica, sem povo e sem conflitos. Muitos achavam que, um dia, a tensão acumulada por todas essas contradições reprimidas explodiria. Quem diria, no entanto, que essa explosão ocorreria não numa perspectiva de transformação popular, mas num arroubo reacionário e fascistoide? Talvez voltar a olhar para a materialidade da cidade, seu desenho e suas representações nos ajude a entender um pouco do que se passou.
“Eu organizo o movimento”
O monumento
É de papel crepom e prata
Os olhos verdes da mulata
A cabeleira esconde
Atrás da verde mata
O luar do sertão
Caetano Veloso, “Tropicália”, 1969
Comecemos por alguns personagens aparentemente desconexos: um candango esquecido, um rato desconhecido, um cientista europeu. Envolvidos em episódios distintos, os fragmentos dessas vidas e dessas trajetórias têm muito a dizer sobre o que viria a ser a nova capital do Brasil.
1.
Em 1959, foi publicado pela editora Falcon Press o livro Doorway to Brasilia, de Eugene Feldman e Aloísio Magalhães. Experimento gráfico-editorial, o livro apresenta fotografias, colagens, textos e imagens produzidas pela dupla a partir de sua visita ao gigantesco, frenético e um tanto quanto onírico canteiro de obras daquela que seria, após sua inauguração no ano seguinte, a nova capital do Brasil.
Logo em seu prefácio, escrito pelo romancista estadunidense John dos Passos, somos apresentados ao primeiro de nossos personagens, um sujeito sem nome que, como essas figuras um tanto quanto míticas e misteriosas dos contos de fadas, surge aparentemente do nada, no meio do Planalto Central, e passa a participar de uma conversa entre Passos e um jovem engenheiro que trabalhava com entusiasmo na construção da cidade. O sujeito convida a dupla para conhecer sua casa, não muito longe dali: “Sorrindo, com modesto orgulho como se estivesse assinalando uma mansão, aponta, lá embaixo no vale, a cabana pequenina que é sua morada”. Espantado com o local apontado pelo sujeito, o engenheiro que acompanha Passos pergunta “Mas não é este o lugar planejado para o fundo do lago?”, ao que “o homem sorri e assente com a cabeça: é verdade, ele mora no fundo do lago. A ideia parece deliciá-lo”.
Nada mais sabemos desse sujeito — nem sequer sabemos se essa conversa é real ou fictícia. Sua casa virtual, no entanto, não muitos meses depois, seria coberta pelas águas do Lago Paranoá, evento que firmaria definitivamente a constituição da nova capital. Junto dela, inúmeras casas de outros candangos, que ali se instalaram por falta de política habitacional, também seriam destruídas pela inundação.
2.
É extremamente difícil pensar hoje no enorme e delirante esforço coletivo que foi erguer Brasília. Afinal, num período de cerca de três anos, construiu-se uma nova capital onde aparentemente nada havia, em pleno Planalto Central do país.
Apenas aparentemente, destaque-se. Aos olhos de quem vinha de fora, o Cerrado era puro nada — território a ser desbravado, reconhecido, colonizado, civilizado. Brasília, afinal, era empreendimento de bandeirantes do século XX — Juscelino Kubitschek, o célebre presidente bossa-nova, mecenas incansável dos nossos melhores arquitetos e artistas modernistas, era pródigo em evocar para si a herança bandeirante. Essa natureza virgem interiorana a ser deflorada e civilizada por tão nobres homens brancos de raízes europeias, contudo, estava longe de ser caracterizada exclusivamente como “nada”. Sabemos hoje que ali havia, por exemplo, remanescentes de quilombos que seriam, aos poucos, expulsos das proximidades do sítio de construção da nova capital.
A pesquisadora Juliana Fausto nos alerta para ainda mais um personagem aniquilado pelos rolos compressores que tornaram o canteiro de Brasília terra arrasada. Trata-se de um camundongo: o “rato candango”. Espécie descoberta durante as obras da capital, o rato-candango vivia em camadas inferiores do solo reveladas pela ação das retroescavadeiras. Identificado como Juscelinomys candango pelos zoólogos do Museu Nacional, essa nova espécie foi incrivelmente declarada extinta tão logo foi descoberta: nunca mais, desde a inauguração de Brasília, houve notícia de algum outro indivíduo da espécie. Juliana Fausto também nos lembra que, mais ou menos na mesma época, ocorreu entre candangos — mas agora entre candangos humanos — um massacre tão violento quanto aquele ao qual foram submetidos os camundongos. Trata-se do triste episódio de repressão de trabalhadores da construtora Pacheco Fernandes. Segundo relatos, a Guarda Especial de Brasília teria sido chamada para reprimir um protesto de trabalhadores contra a comida estragada servida nos refeitórios da companhia. Conta-se que caminhões com corpos de trabalhadores alvejados pelos policiais foram vistos saindo do acampamento.
3.
Aos interessados, recomendo a leitura do livro De Nova Lisboa a Brasília (Editora da UnB, 2010), de Laurent Vidal.
A primeira Constituição Republicana, de 1891, determinava logo em seu artigo 3º que a capital do país fosse transferida do Rio de Janeiro para o Planalto Central. Ideia antiga — que remonta aos tempos coloniais —, a interiorização da capital foi pauta recorrente entre intelectuais e políticos ao longo dos séculos XIX e XX3, ainda que com interesses variados. Nos primeiros anos de República, temas em particular constituíam pautas centrais na definição da nova capital: o racismo científico e a eugenia.
Nos primeiros anos após a promulgação da Constituição, formou-se uma comissão com o objetivo de demarcar o perímetro do futuro Distrito Federal e o sítio da nova capital. Essa comissão, liderada pelo engenheiro e astrônomo belga Luís Cruls, promoveu duas expedições à região do atual Distrito Federal. Buscava-se um local com elevação de pelo menos mil metros em relação ao nível do mar. Sob forte influência do determinismo geográfico, acreditava-se que climas mais “amenos” — mais próximos das temperaturas europeias e mais distantes do calor tropical que caracterizava o Rio de Janeiro — contribuiriam decisivamente, junto de políticas oficiais de embranquecimento da população, para a formação de uma sociedade “mais elevada”. O Rio de Janeiro era considerado uma cidade doente em todos os sentidos, foco de doenças ao mesmo tempo biológicas e sociais. A futura capital, por outro lado, seria uma cidade “limpa” e “saudável”.
Quem cravou a posição da futura capital foi, aliás, o francês Auguste Glaziou, célebre paisagista do imperador recém-deposto dom Pedro II. Glaziou definiu o encontro dos rios Torto, Gama e Paranoá como o local ideal para erigir não só uma nova cidade como também um lago artificial para lhe aclimatar. O paisagista, nessa época, promovia expedições ao Planalto Central: nelas ele identificava espécimes botânicas novas que eram encaminhadas a museus e herbários europeus. Não deixa de ser curioso que, mais uma vez, foram europeus que simbolicamente “colonizaram” o sertão brasileiro, seja pelo seu mapeamento, seja pela identificação de sua flora.
Esses europeus e suas equipes definiram múltiplos destinos: o do sujeito que perderia sua casa após a inundação da área que o Lago Paranoá, o dos candangos (humanos e não humanos) atropelados pelas retroescavadeiras e caminhões que construíram Brasília meio século depois. Não poderia haver origem mais colonial para uma cidade.
“Eu oriento o carnaval”
O monumento não tem porta
A entrada é uma rua antiga
Estreita e torta
E no joelho uma criança
Sorridente, feia e morta
Estende a mão
Caetano Veloso, “Tropicália”, 1969
Em 1961, estando Brasília recém-inaugurada, visitou-a também Max Bense, professor na célebre Escola de Ulm. Bense encontrou ali um objeto de fascínio. Para ele, Brasília era a realização de uma “inteligência brasileira”, ou seja, o grande indício de um Brasil profético, no qual uma nova sociedade finalmente poderia prosperar a partir de bases racionalistas intensamente adaptadas aos desafios dos trópicos. Brasília era definitivamente a capital do futuro.
Os comentários de Bense convergem para o pensamento de intelectuais como Mário Pedrosa — para quem Brasília representava a mais eficaz implementação da síntese das artes naquele momento. Pedrosa, aliás, crítico contumaz de Oscar Niemeyer — quem ele chamava de “playboy endiabrado” —, perdoaria todos os eventuais pecados do famoso arquiteto carioca em sua empreitada brasiliense: uma nova cidade, afinal, racional e bela, nascia no meio do sertão mais improvável.
Os candangos despejados, reprimidos e assassinados certamente pouco dizem a respeito dessa “inteligência brasileira” manifesta na “obra de arte total” que é a Brasília de Bense e de Pedrosa. Bense, por exemplo, a descreve como um sistema perfeito, quase como uma máquina cujo funcionamento prescinde da solução de problemas sociais. Uma cidade sem conflitos, sem atravessamentos raciais, de classe e de gênero.
Muito, aliás, já se falou e escreveu a respeito do quanto Brasília é uma cidade segregada e autoritária desde sua gênese. Há farta literatura sobre os violentos processos de segregação socioespacial e sua eventual vinculação ao desenho modernista da cidade. Contudo, como apontam historiadores como Adrián Gorelik, Richard Williams, entre outros, o que muitas dessas críticas talvez não consigam apontar não é propriamente onde Brasília teria falhado — enquanto experimento modernista que se revelara distante do povo —, mas onde ela efetivamente teve sucesso: enquanto perfeita representação monumental das estruturas de poder do país.
O texto “Nove pontos sobre a monumentalidade”, de José Luís Sert, Fernand Léger e Sigfried Giedion, publicado originalmente em 1943, é uma conhecida síntese desse debate.
“Monumental”, em princípio, diz respeito àquilo que faz referência à memória e, em particular, à memória de algo ou alguém. No mundo romano, são chamadas de “monumentos” as estruturas como os Arcos do Triunfo, construídos em memória de vitórias militares, ou as Colunas Triunfais, como a de Trajano, dedicadas à memória de imperadores e outros líderes. Por extensão, de modo geral, monumentos passaram a ser associados ao poder, por um lado, e à ideia de “grandiosidade”, por outro. Esse duplo caráter, como símbolo coletivo e como expressão de grandiosidade, constitui a tônica de um debate, que surgiu nos anos 1940, sobre uma “nova” monumentalidade desejada para as cidades do século XX, visto que o urbanismo moderno teria perdido, em sua monotonia, a capacidade de conceber espaços cívicos de forte caráter simbólico4.
Foi justamente a monumentalidade do plano de Lúcio Costa que, conforme o posicionamento oficial do júri do concurso de ideias, o destacou das demais propostas para a cidade. A Brasília costiana é dotada de uma dimensão monumental que se expressa de forma quase diagramática no desenho da cidade: o eixo da monumentalidade política atravessa o eixo da vida urbana cotidiana.
Nesse sentido, Lúcio Costa desenha em Brasília uma enorme esplanada — um gramado que desce na direção do lago — em cujas margens ficam distribuídos os edifícios laminares nos quais serão sediados os ministérios. O ponto focal dessa perspectiva é o edifício do Congresso Nacional, então pensado como um dos vértices da já citada Praça dos Três Poderes. Difícil negar a referência da Esplanada Nacional, a National Mall, da capital estadunidense Washington, onde o edifício do Congresso também serve de ponto focal na conformação desse desenho. Nos Estados Unidos, porém, o recurso à arquitetura neoclássica no início do século XIX pretendia reiterar a imagem de uma nova nação que teria herdado o legado da Antiguidade grego-romana e de seus “elevados” valores, como os da democracia e da república.
Arquitetura literalmente alienígena, aliás: imagens alusivas aos edifícios de Brasília foram utilizadas na série de ficção científica Star Trek, em 1966, como cenários de planetas alienígenas.
Em Brasília, nossa Esplanada dos Ministérios seria coroada por uma Praça dos Três Poderes — importando para cá a tripartição proposta pelos vizinhos do Norte —, na qual pousaria a aparentemente alienígena5 arquitetura moderna de Oscar Niemeyer. Com suas colunas delgadas e curvas como que apenas tocando o solo, seus panos de vidro transparente e suas estruturas revestidas com o melhor, mais nobre e mais alvo mármore disponível, Niemeyer cria palácios que metaforizam essa democracia liberal, abstrata e moderna, imposta a um país que mal havia abolido a escravidão. Seriam estes palácios apoiados sobre o solo, afinal, frágeis e instáveis como a democracia que eles representam?
“Eu inauguro o monumento no Planalto Central do país”
O monumento é bem moderno
Não disse nada do modelo
Do meu terno
E que tudo mais vá pro inferno, meu bem
Que tudo mais vá pro inferno, meu bem
Caetano Veloso, “Tropicália”, 1969
Há que se destacar, contudo, uma única manifestação sobre os acontecimentos que certamente está na esfera do surrealismo ou mesmo do dadaísmo — e nesse caso ela merece todos os aplausos. Trata-se de uma coluna publicada n’O Estado de S. Paulo, em que o autor sugere construir paredes de alvenaria no lugar das cortinas de vidro dos palácios de Niemeyer, assim como a instalação de caixilharia reforçada e grades para combater eventuais invasões. Diz ainda que os esquemas de segurança precisam ser reforçados para evitar ataques futuros. O artigo é hilário. Infelizmente, contudo, parece que o autor o leva a sério. Em casos como esse, o ditado diz que não se deve dar palco para maluco dançar, motivo pelo qual nós nos reservamos ao direito de não mencionar o autor nem o título dessa brilhante peça de comédia.
Trata-se do artigo “Arte, cultura e patrimônio para quem?”, publicado em 4 de fevereiro de 2023 no Correio Braziliense.
De volta aos acontecimentos do dia 8 de janeiro. Muito já se falou sobre eles desde então. Muito se alertou para a violência contra a democracia simbolizada nos ataques aos palácios-sede dos poderes da República e para o quanto aquela turba fascista desprezava o patrimônio cultural brasileiro ali presente e estava disposta a depredá-lo em sua fúria destruidora6.
Poucas, porém, foram as vozes que questionaram a própria representatividade daquele patrimônio — ou o quanto aqueles palácios e suas obras de arte refletem de fato as referências culturais da maior parte da população brasileira, sobretudo aquela excluída do acesso ao poder. Destaco apenas um texto, o de Bruna Ferreira7, servidora do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), que questionou a presença de símbolos coloniais da América Portuguesa em espaços representativos da República independente — como o famigerado relógio de dom João VI — e questionou o quanto aqueles palácios de fato estabelecem relações significativas com a maior parte da população. Tomando o patrimônio cultural por essa perspectiva, o que surpreende não é o fato de ele ter sido atacado, mas sim de permanecer em pé até hoje, sem nunca ter sido devidamente questionado.
Ocorre que no dia 8 de janeiro as pessoas que atacaram esses palácios não estavam minimamente interessadas em apontar seu caráter segregatório nem, em última instância, antidemocrático. Aquela falange enfurecida definitivamente não estava denunciando a fragilidade de nossa democracia: não lhes interessava nem um pouco atacar as graves desigualdades que caracterizam nossa instável democracia liberal. A intenção era simplesmente destruir tudo o que havia naquele espaço.
Voltemos às praças triangulares citadas no início deste texto. A primeira delas, a dos Cristais, se revela na prática um verdadeiro oásis paisagístico em meio a um deserto democrático. A praça está encravada no Setor Militar Urbano, em frente ao Quartel-General do Exército desenhado por Oscar Niemeyer. Com exceção dessas instalações vizinhas, trata-se de uma antipraça: não há espaços construídos que a limitem nem a evidenciem numa relação de figura-fundo. Ao contrário, a praça, uma das mais belas criações de Burle Marx em Brasília, é antes um jardim desenhado no meio de um grande descampado. Isolada do restante da cidade e tão protegida por seus vizinhos militares, revelou-se o local perfeito para receber o acampamento fascista. O triângulo equilátero com lados medindo 500 metros praticamente desaparece neste jardim militar: na ausência de uma cidade ao redor da praça, seus limites se confundem com o horizonte do Cerrado, tornando-a um descampado propício à tutela e à disciplina militar. Não por acaso, desde os acontecimentos do dia 8 de janeiro, surgiram inúmeras evidências de envolvimento de militares e seus familiares na organização do acampamento fascista.
Já a segunda praça, a dos Três Poderes, pensada como ponto focal do Eixo Monumental no desenho de Lúcio Costa, se revela, na prática, uma grande mesa triangular escondida pelos palácios que ela abriga. Com efeito, a praça acaba se resumindo ao retângulo, ainda assim gigantesco, localizado atrás do Congresso Nacional e entre os Palácios do Planalto e do Supremo Tribunal Federal. Os lados desse triângulo — cada um com cerca de 700 metros, um pouco maior que a Praça dos Cristais — também desaparecem em função de todas as construções e anexos que se instalaram junto aos palácios, de forma que o grande terrapleno imaginado por Lúcio Costa praticamente deixa de existir. Mais do que praça — espaço apropriado pelas pessoas para o exercício das mais variadas atividades, sejam ligadas ao ócio ou ao trabalho —, a dos Três Poderes parece pensada como uma plateia para os discursos feitos na tribuna do Palácio do Planalto ou como um local voltado exclusivamente para a apreciação dos monumentos ali presentes.
Na primeira praça, nosso melhor arquiteto-paisagista entrega espaços dedicados ao prazer e à fruição — espaços, no entanto, tolhidos, tutelados, controlados e vigiados pelos militares vizinhos. Na segunda, em vez de se dedicar ao prazer do ócio ou ao exercício do poder, resta ao povo apenas o espetáculo da democracia: o papel que lhe cabe é meramente o de espectador em uma democracia cujo exercício pelos cidadãos se limita, quando muito, ao voto.
De uma praça a outra, a falange fascista percorreu cerca de oito quilômetros, escoltada por forças militares. O percurso se deu ao longo da Esplanada dos Ministérios, expressão material da burocracia republicana e do poder civil, mas sonhado como local de manifestações populares nos croquis de Niemeyer.
Se a lógica é a do espetáculo, o comportamento de manada do dia 8 de janeiro se explicita não como legítimo protesto democrático — ocupação política das ruas na forma de ação popular direta. Em vez do exercício da política no espaço público tendo por finalidade o bem comum, o que se deu na Praça dos Três Poderes naquele dia foi uma transmissão espetacularizada pelas redes sociais da própria tentativa de negação do espaço público. Ninguém se preocupava com as consequências penais dos atos ali cometidos: sem qualquer cuidado em não produzir provas contra si mesmos, os verde-amarelos transmitiam orgulhosamente por mensagens de WhatsApp e lives no Instagram sua tentativa de destruir até mesmo o arremedo de democracia liberal representado naqueles monumentos.
Se o que nos resta nesses espaços, portanto, se limita a uma apreciação tutelada de uma democracia meramente espetacular, cabe-nos talvez subverter essa lógica controlada de apropriação do espaço. Diferentemente daquele grupo para quem tudo deveria ser reduzido a terra arrasada, é fundamental, mais do que nunca, ocupar esses espaços rompendo com a tutela e o controle. Os fascistas não gostam de gente feliz nas ruas. Seguindo, então, o exemplo dos parangolés de Hélio Oiticica, ocupemos com alegria e irreverência as ruas, parques e praças do país.