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23 de novembro de 2023

Design/Escrita/Pesquisa: a escrita no design e o designer que escreve

Colagem cedida pela autora

Em 1996, Ellen Lupton e Abbott Miller lançaram a primeira edição do livro Design Writing Research: Writing on Graphic Design, pela editora Kiosk, nos Estados Unidos, e traduzido aqui no Brasil por Design/Escrita/Pesquisa: a escrita no design gráfico (Bookman, 2011). A publicação é o marco inicial das carreiras dos designers no escritório homônimo e consolida os interesses e as práticas de Lupton – pesquisadora, designer de exposições e curadora do Museu Cooper Hewitt de Nova York – e de Miller – então designer e diretor de arte responsável pelas criações do escritório – tanto individualmente quanto como casal. Ou seja, trata-se de uma época anterior ao Miller sócio da famosa Pentagram e à Lupton pesquisadora e autora consagrada de inúmeros livros de design. A fronteira entre teoria e prática, a reflexão crítica sobre a história do design gráfico e, principalmente, o “desejo de ‘tecer’ palavras e imagens”, como aponta Rick Poynor na introdução, são os eixos principais da obra que, na minha humilde opinião, é subestimada.

No sumário, nos deparamos com três seções: teoria, mídia e história. A primeira, e talvez a mais densa, é um mergulho no pensamento da tríade intelectual francesa dos anos 1960-1970: Derrida, Barthes e Foucault. Os autores apresentam uma reflexão crítica sobre alguns binômios – forma e conteúdo, significante e significado, materialidade e ideia –, sempre demonstrando a alta densidade das conexões existentes entre os sentidos visual e verbal. Para ilustrar o pensamento crítico, eles percorrem diferentes estilos tipográficos, refletem sobre pictogramas e hieróglifos, sobre a escrita oriental (com base em ideogramas) e a escrita ocidental (com base em logogramas) e encerram com uma reflexão importante – e diria inteligentíssima – sobre a disciplina do design, inspirada no pensamento de Michel Foucault em A arqueologia do saber (1969).

Capa da edição brasileira do livro Design/Escrita/Pesquisa: a escrita no design gráfico (Bookman, 2011)

Aqui me permito fazer uma pequena digressão para apresentar a premissa foucaultiana. O influente filósofo francês demonstrou que cada época e área do conhecimento ordenam sistemas de pensamento e regras subjacentes, aos quais ele se refere como “epistemes” ou “formações discursivas”. Essas formações moldam como as pessoas pensam, o que é considerado conhecimento válido e como a linguagem é usada para expressar ideias. Assim, as regras estabelecem os limites do que pode ser pensado e comunicado de maneira aceitável dentro de um sistema e influenciam, portanto, como as pessoas articulam suas ideias e se comunicam.

A premissa de Foucault destaca como o pensamento, o conhecimento e a linguagem são moldados por sistemas culturais mais amplos e que esses sistemas influenciam a maneira como percebemos o mundo e interpretamos a história.

Foucault argumentava que as narrativas usadas para interpretar o passado são ingênuas, pois projetam a consciência atual sobre eventos anteriores. Essa característica anacrônica faz com que tais narrativas sejam exclusivas e excludentes, uma vez que deixam de fora outras perspectivas e interpretações possíveis. Em resumo, a premissa de Foucault destaca como o pensamento, o conhecimento e a linguagem são moldados por sistemas culturais mais amplos e que esses sistemas influenciam a maneira como percebemos o mundo e interpretamos a história. Essas limitações têm implicações profundas na compreensão da construção do conhecimento e da subjetividade. Em um texto da Recorte Ano 2 – 2022, “Ferramentas e processos: expandindo possibilidades”, Guilherme Vieira descreveu como somos “moldados” pelas ferramentas que usamos, apresentando ao leitor uma perspectiva bastante interessante do design ontológico. É por aí que vai a premissa foucaultiana.

Voltando ao livro, a segunda seção aborda a mídia, ou seja, o suporte. Os autores apresentam como os diferentes meios influenciam na formação das imagens, a partir do ponto de vista técnico e da reprodutibilidade, inerentes às ferramentas de design. Os autores começam dissolvendo a fronteira entre a arte e o design por uma imersão na obra do artista (ou seria designer?) Andy Warhol, depois apresentam a parceria célebre entre Marshall McLuhan e Quentin Fiore em O meio é a massagem (1967), e, por fim, trazem reflexões importantes sobre o papel das imagens (ilustrações, fotografias) na história e produção do design gráfico. Essas reflexões, aliás, precisariam ser reformuladas para os tempos atuais de imagens geradas por inteligência artificial (IA). Diferentemente das fotografias, que têm suas limitações de espaço, cenário, luz etc., a inteligência artificial nos permite imaginar novas realidades e expandir os limites ferramentais da criatividade. Por outro lado, ela também é responsável por um esgarçamento de limites éticos: apesar da popularidade, a IA ainda não passou por nenhum tipo de regulamentação. Sobre esse dilema, recomendo o ensaio da Recorte Ano 3 – 2023 “A responsabilidade de um criador”, de Hele Carmona.

Por fim, a última seção do livro, sobre história, é a mais sucinta. Ela é apresentada como linha do tempo, em contraponto ao caráter discursivo das seções anteriores. Ou seja, os autores brincam com a própria estrutura deflagrada anteriormente: texto (teoria) e imagem (mídia) se combinam neste outro formato narrativo, muito usado, inclusive, pelo design. Do início das primeiras campanhas políticas norte-americanas no século XIX, passando pelos primeiros jornais impressos nesse continente, pelos designs corporativos das décadas de 1950 e 1960, chegando até o início do design digital, alguns exemplos gráficos são acompanhados por ensaios breves publicados anteriormente no livro Graphic Design in America (Harry N Abrams Inc.,1989), editado por Mildred Friedman.

Lupton e Miller, já no título, estabelecem seu ponto de vista sobre o design: está sempre em contexto e é concebido-percebido em relação às diversas estruturas que antecedem a criação.

De certo modo, o título Design/Escrita/Pesquisa pode parecer estranho e até mesmo fora da “ordem natural” de um projeto de design, no qual se espera que a pesquisa anteceda a criação. Mas não é. Lupton e Miller, já no título, estabelecem seu ponto de vista sobre o design: está sempre em contexto e é concebido-percebido em relação às diversas estruturas que antecedem a criação. Para compreender essas estruturas, é necessário remeter ao pensamento de Ferdinand de Saussure (1857-1913), que foi um linguista suíço considerado pai do estruturalismo. Em seu Curso de linguística geral (1916), Saussure afirma que um signo é composto de um significante – aspecto material – e de um significado – seu referencial –, e que esses dois elementos têm uma relação arbitrária. Ou seja, não há ligação natural entre a palavra “árvore” em português (ou “tree” em inglês) e seu referencial, a própria árvore. Para Saussure, ainda, o signo em si é vazio, mas adquire valor na sua relação em sistema, ou seja, na cadeia de significantes que produz uma estrutura.

O pensamento de Lupton e Miller é permeado pelo pós-estruturalismo francês – belissimamente explicado e ilustrado ao longo da primeira parte do livro – que, por sua vez, é um desdobramento das propostas de Saussure. No pensamento estruturalista e pós-estruturalista, design, escrita e pesquisa são práticas que acontecem dentro de uma estrutura discursiva cultural. Para os pós-estruturalistas, como Roland Barthes (1915-1980), Michel Foucault (1926-1984), Jacques Derrida (1930-2004), Lupton e Miller, o cidadão/artista/produtor/designer não é o mestre dominador da linguagem, da mídia, da educação ou mesmo dos costumes. Em vez disso, todos nós só conseguimos operar dentro das possibilidades que os códigos, os signos, nos oferecem enquanto sistema.

Daí a importância de uma prática reflexiva de escrita e pesquisa não apenas como etapas precedentes à criação, como também decorrentes do próprio fazer.

Em O mundo codificado (Ubu, 2018), o filósofo Vilém Flusser (1920-1991) recorre às origens etimológicas da palavra “design”: em sua raiz latina, designum, está contido o termo “signum”. O designer seria então um cofabricante de signos, um de-signador, dentro de uma estrutura maior da qual ele participa, mas onde também constrói outras subestruturas, que, por sua vez, carregam em si discursos próprios, dentro do sistema cultural. Com Saussure, aprendemos que as relações significante-significado são arbitrárias – e, segundo os designers modernistas, poderiam até mesmo ser “universais”. Daí a importância de uma prática reflexiva de escrita e pesquisa não apenas como etapas precedentes à criação, como também decorrentes do próprio fazer.

Aqui, é importante demarcar uma diferença sobre o termo “pesquisa” de acordo com Lupton e Miller. Ao longo do livro, em nenhum momento se fala de uma pesquisa instrumentalizada, “objetiva”, ou seja, que traga soluções ou respostas para um problema. Nada de pesquisa com “usuário”, NPS, teste A/B, focus group, brand lift etc. Ao contrário, os autores apresentam uma possibilidade bem diferente da qual muitos de nós, designers, estamos acostumados. Eles propõem pensar a pesquisa – e consequentemente o design – com uma perspectiva mais humanista (do inglês “humanities”).

Nesse sentido, o design estaria muito mais próximo de saberes como filosofia, antropologia e sociologia do que da engenharia, da matemática ou da estatística. Opa! Isso pode ser novidade para muitos de nós que estamos acostumados a usar resultados estatísticos de questionários para defender propostas criativas. E, para mim, é isso que torna o convite dos autores muito mais interessante.

Muitas vezes, na loucura do dia a dia da criação, esquecemos que trabalhamos no topo de uma pilha de conhecimentos, conceitos e técnicas estabelecidas muito antes da nossa própria existência – mas que determinam crucialmente nossas subjetividades e nossa coletividade. Entender, olhar e indagar essas estruturas nos traz a possibilidade de buscarmos outras aberturas, novas reflexões e múltiplas formas de pensar – e fazer – design. No fim, o que Lupton e Miller propõem é uma forma sem começo ou fim de teorizar e projetar a prática cotidiana, tecendo e retecendo novos significantes na cadeia cultural do design gráfico e da cultura material contemporânea.

A tag “Clube do livro” é um desdobramento do projeto Clube do livro do design, idealizado por Tereza Bettinardi, que promove debates a partir da literatura do Design.

é designer, colagista amadora e uma eterna estudante/pesquisadora. Possui pós-graduação em Semiótica Psicanalítica pela PUC-SP, atua há treze anos com branding e estratégia de marcas e de vez em quando se aventura na escrita. Queria mesmo é ser artista, mas esse dia ainda não chegou.
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