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19 de novembro de 2024

Assuntos palestinos, a oliveira e o direito à memória

O futuro desde então é o teu passado por vir.
Da presença da ausência, de Mahmud Darwich (Tabla, 2020)

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Em 2012, a Assembleia Geral da ONU votou a favor do reconhecimento da Palestina como “Estado observador não membro”, o que permite a seus representantes que participem de debates, mas sem direito a voto. [N.E.]

A palavra Nakba significa “catástrofe” em árabe, e foi designada pelo historiador sírio Constantin Zureiq para definir o conflito que teve início após a criação do estado de Israel em 1948, quando cerca de 700 mil palestinos foram obrigados a deixar suas casas. Em diversas ocasiões, o título de Estado foi negado à Palestina em votações da Organização das Nações Unidas (ONU)1 – países como Inglaterra, Estados Unidos e França, aliados políticos e econômicos de Israel, se recusaram a conceder à Palestina o status de país independente e soberano. Isso significa que, há 76 anos, os palestinos refugiados vítimas da Nakba são apátridas, ou seja, pessoas sem registro nacional reconhecido. São vistos pelo sistema como integrantes de um povo sem origem, cidadãos míticos de lugar nenhum.

Em 1964, há exatos 60 anos, a Organização para a Libertação da Palestina (OLP) foi fundada com o objetivo de representar o povo na luta pela independência diante do projeto colonialista representado pelo sionismo. Profissionais do campo das artes se juntaram à OLP com a difícil missão de unificar a linguagem artística da Palestina enquanto muitos de seus pares eram dispersos pelo mundo, forçados a emigrar para sobreviver. Segundo a historiadora da arte Samia Halaby, em seu livro Liberation Art of Palestine (H.T.T.B. Publications, 2001):

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Em casos em que a referência é mencionada em outra língua que não o português, a tradução foi feita livremente pela autora. [N.E.]

Os artistas estavam suficientemente organizados em 1964, de modo que, um dia após a reunião do congresso da Palestina para estabelecer a Organização para a Libertação Palestina (OLP), eles abriram uma exposição em Al-Quds (Jerusalém) para celebrar a ocasião. A exposição teve tanto impacto que as pessoas começaram a pensar na arte como parte do movimento de libertação.2

O uso de tecnologias de reprodução acessíveis e a ausência de direitos autorais ampliaram o alcance das obras [de artistas palestinos] e permitiram que elas fossem facilmente distribuídas e expostas em todos os cantos.

A linguagem apresentada em Jerusalém tinha apelo popular, porque combinava imagens cotidianas – ligadas ao artesanato, ao folclore, à música e à poesia – a símbolos da resistência palestina. O uso de tecnologias de reprodução acessíveis e a ausência de direitos autorais ampliaram o alcance das obras e permitiram que elas fossem facilmente distribuídas e expostas em todos os cantos. 

As artes e a expressão poética têm uma relação inseparável com a luta de libertação palestina, o que torna ainda mais bela a coincidência de que foi justamente um casal de artistas, que se conheceu e se uniu em meio à luta, o responsável pela construção de espaços dedicados unicamente às artes dentro da OLP: Ismail Shammout e Tamam Alakhal.

Ismail Shammout nasceu na cidade palestina de Lydda em 1930, onde foi treinado desde a infância pelo artista Daoud Zalatimo. Ele trabalhou como vendedor ambulante em um campo de refugiados em Gaza até conseguir frequentar uma escola de arte e desenvolver sua longa carreira como pintor no Egito. Ao contrário dos trabalhos de outros artistas de sua época, compostos por imagens sóbrias e estáticas, as telas de Ismail tinham um fluxo dinâmico, uma energia viva, e representavam cenas do cotidiano de resistência palestina.

Tamam, assim como Ismail, pintava histórias do patrimônio e da luta palestina, usava cores vivas e foi influenciada por vanguardas europeias como o impressionismo e o cubismo.

A artista e educadora Tamam Alakhal nasceu na cidade de Jaffa em 1935 e foi uma das primeiras mulheres palestinas a receber formação tradicional em artes visuais. Forçada a emigrar aos 13 anos, viveu em Beirute e depois no Cairo, onde se formou pelo Instituto Superior de Belas Artes em 1957. Tamam, assim como Ismail, pintava histórias do patrimônio e da luta palestina, usava cores vivas e foi influenciada por vanguardas europeias como o impressionismo e o cubismo. Entretanto, sua linguagem se distingue da de Ismail pelo estilo mais abstracionista com forte uso de elementos simbólicos. Entre eles estão o tatreez, conhecido bordado palestino, e o cavalo, um ícone da cultura árabe que representa força e rebeldia. 

Foi no Cairo que Tamam conheceu Ismail e, juntos, se tornaram figuras icônicas da arte palestina. Logo após a fundação da OLP, em 1964, Ismail foi responsável pela criação, em 1965, da Seção de Artes da OLP, que atraiu artistas de todos os movimentos de resistência da região. Ele também foi presidente da União Geral dos Artistas Palestinos (GUPPA) e da União dos Artistas Árabes. Na mesma época, Tamam assumiu a liderança da Seção de Arte e Patrimônio da OLP. Os dois tornaram possível a organização coletiva e ajudaram a direcionar a potência criativa dos artistas que lutavam para manter a história palestina viva na memória popular.

Assuntos palestinos

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O artigo foi publicado no periódico Journal of Palestine Studies (volume 13, número 3), em 1984.

O autor palestino-estadunidense Edward Said destacou em “Permission to Narrate”3 que um grande problema em estabelecer a história dos povos árabes palestinos é a dispersão. A maioria dos artistas e intelectuais palestinos mais importantes do século 20 ainda eram jovens quando precisaram emigrar e, por isso, passaram a maior parte de suas vidas no exterior. No entanto, o período de exílio e peregrinação não os fez esquecer suas raízes na Palestina e acabou, na verdade, produzindo o efeito contrário:

O sionismo mundial roubou a bandeira e a mudou, roubou o nome e o alterou, roubou nosso lugar nas Nações Unidas, falsificou mapas, enciclopédias e dicionários, e roubou a cultura popular palestina, exibindo-a como israelense. No entanto, não pôde roubar a consciência palestina viva, cuja produção sobreviveu na poesia, literatura e nas artes como um arquivo histórico que cresce a partir dessa terra.

De forma semelhante, o pesquisador Arthur Debsi destaca em um artigo publicado pela Dalloul Art Foundation em janeiro de 2024, intitulado “Safeguarding the Palestinian Collective Memory”:

A rebelião palestina vai além da reivindicação de recuperar um território; é também um grande esforço para evitar o desaparecimento da identidade palestina. É um desafio ainda maior, uma vez que é conduzido por uma população majoritariamente em exílio. Assim, em paralelo aos incontáveis massacres de populações, como é possível resistir à aniquilação de uma cultura, uma história e uma tradição? A arte e a literatura se tornaram ferramentas de mobilização, utilizadas para perpetuar uma narrativa que está em constante perigo de ser esquecida.

Nesse contexto, surge, em 1971, a revista Assuntos Palestinos – em árabe Shu’un Filastinyya –, que se tornou a principal publicação intelectual da OLP e um veículo de difusão de obras visuais criadas por artistas palestinos. Ela trata de temas relacionados à cultura, política, arte e economia da Palestina através de matérias, entrevistas e resenhas de livros e filmes. Logo após sua criação, a revista cresceu e ganhou influência rapidamente – chegou a ser editada por escritores internacionalmente conhecidos, como Mahmoud Darwich e Elias Khoury, ambos autores de produções literárias que já foram traduzidas para o português e publicadas pela editora carioca Tabla.

Da esquerda para a direita: uma das edições da Assuntos Palestinos de 1971 e duas de 1972. Artistas e designers não foram creditados.
Uma edição de 1973 e duas de 1973. Artistas e designers não foram creditados.

As capas da revista cumprem um papel importante no reconhecimento dos artistas palestinos e na representação da história da arte palestina, de forma não apenas estilística, mas também narrativa: através delas, suas histórias podem ser contadas. O ato de observar as capas lado a lado igualmente revela um processo de amadurecimento: os temas, estilos e símbolos mudam à medida que a linguagem, do ponto de vista mais amplo, se consolida. As primeiras capas eram literais, mas com o tempo se tornaram mais subjetivas e poéticas, até que as paisagens e combatentes de guerra foram substituídos por cavalos, pássaros, trabalhos caligráficos e pinturas abstratas. É possível que essa mudança gradual reflita a maneira como os palestinos viam na arte uma expressão de sua luta por direitos políticos: a criatividade que dá origem a outras formas de expressão depende da assimilação de um vocabulário simbólico elementar, da mesma forma como a liberdade depende da garantia de direitos civis básicos.

[Arthur Debsi afirma que] ao incorporar as inspirações modernistas em seus trabalhos, os palestinos o faziam a partir de um sistema de símbolos que compõe o idioma visual da revolução.

A autoria das imagens escolhidas para as capas também mudou com o tempo. Nas primeiras 27 edições, artistas e designers não foram creditados. Informações desse tipo continuaram escassas, com poucas exceções, até o fim dos anos 1970, quando a revista estreitou relações com a GUPPA e passou a usar obras de artistas de todo o mundo árabe, como Jumana El-Husseini, Mohammad Chabaa, Adnan Al Sharif, Ibrahim Hazimeh, Seta Manoukian, Natheer Naba’a, Diaa Al-Azzawi, Kamal Boullata, Sliman Mansour, Abdel Hadi, Mohammed Bushnaq e Emile Menhem. Além disso, as ações globais da GUPPA, como a International Art Exhibition for Palestine (1978), em Beirute, acabaram atraindo artistas estrangeiros solidários à causa, entre eles o pintor alemão Max Ernst, cujo trabalho aparece na capa de uma das edições de 1979. Arthur Debsi afirma, no mesmo artigo, que essa interação com movimentos artísticos como o surrealismo e o dadaísmo é menos uma ocidentalização da arte palestina do que uma “palestinização” da arte ocidental, pois, ao incorporar as inspirações modernistas em seus trabalhos, os palestinos o faziam a partir de um sistema de símbolos que compõe o idioma visual da revolução. Uma breve introdução a essa gramática visual pode ser encontrada no artigo “Symbols in Traditional and Contemporary Palestinian Art”, do pesquisador Kamal Zeidan (Universidade Nacional An-Najah, 2013):

A oliveira: a Palestina é um dos locais de origem biológica da oliveira. Além de sua importância comercial e de sua simbologia religiosa, ela é frequentemente usada para representar a resistência, por ser uma árvore imortal, cujas raízes profundas são capazes de renascer.

A Kufiya: lenço palestino que se tornou símbolo da revolução. Durante o domínio Britânico na Palestina, ele foi usado em manifestações, o que levou à sua proibição, servindo apenas para reforçar seu caráter revolucionário.

A pomba: símbolo universal da paz, da liberdade e do futuro, aparece frequentemente com sua delicadeza, quietude e suavidade; em seu bico, costuma carregar outros símbolos, como a chave e o ramo de oliveira.

A chave: representa o sonho palestino de voltar para casa. Embora boa parte das edificações palestinas tenham sido destruídas e demolidas, suas chaves foram guardadas pelo povo como um amuleto de determinação.

O cavalo: além de desempenhar um papel essencial nas atividades antigas árabes, também representa originalidade, força e rebeldia.

O galo: está ligado ao amanhecer, ao futuro e à promessa de retorno ao território. O galo convida a começar um novo dia e, por isso, guarda a promessa de um amanhecer da liberdade.

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Intifadas são revoluções populares palestinas contra a ocupação israelense.

A pedra: representa a resistência desde a primeira intifada4 em 1987, chamada Intifada das Pedras, quando palestinos usaram pedras como arma contra a ocupação.

A mulher: geralmente mostrada com uma criança junto de si, a mulher representa a fertilidade apesar das duras condições e a gestação de um novo futuro.

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A edição estadunidense de 1977 foi traduzida para o inglês por Inea Bushnaq e seu prefácio foi escrito pelo linguista, filósofo e sociólogo Noam Chomsky.

Do ponto de vista editorial, os organizadores responsáveis pelo sucesso da Assuntos Palestinos e de outras publicações produzidas pelo centro de pesquisa da OLP foram Sabri Jiryis e Anis Sayigh. Jiryis é escritor e advogado, ativista pela causa palestina e autor de The Arabs in Israel (Monthly Review Press, 1977)4, uma publicação – até então sem tradução para o português – importante para o debate sobre a Palestina e o sionismo. Já Sayigh foi historiador, responsável pelo centro de pesquisa da OLP e também um dos criadores da Enciclopédia Palestina. Em 1948, durante a guerra árabe-israelense, a família de Sayigh fugiu para o Líbano, onde ele se formou. Mais tarde, foi professor no Centro de Estudos Orientais da Universidade de Cambridge, na Inglaterra. Em 1972, de volta ao Líbano, Sayigh foi vítima de um atentado israelense. Ele recebeu uma carta-bomba que tirou parte de sua visão e audição. Apesar disso, Sayigh seguiu trabalhando e coordenou mais três publicações, além de ter sido professor de pós-graduação em História na Universidade do Líbano e participado da produção de outras enciclopédias árabes.

Duas edições de 1973 e uma de 1974. Artistas e designers não foram creditados.
Uma edição de 1974 e duas de 1975. Artistas e designers não foram creditados.

Entre os demais escritores e colaboradores da revista, outras figuras notáveis são o jornalista Mahmoud Labadi e o poeta e novelista Ghassan Kanafani, assassinado em 1972, aos 36 anos. Atualmente, cinco dos livros de Kanafani estão disponíveis em português – todos publicados pela Tabla. Entre eles está O pequeno lampião, que o autor escreveu e ilustrou para presentear sua sobrinha Lamis em seu aniversário de oito anos.

[Em Beirute] foram publicadas 136 edições, até que, em fevereiro de 1983, o prédio que abrigava a Assuntos Palestinos sofreu um ataque com carro-bomba que matou oito funcionários da revista e mais dez do centro de pesquisa.

Assim como aqueles que trabalharam em sua redação, a Assuntos Palestinos também viveu como refugiada e habitou diversos lugares. Sua fundação aconteceu em 1971, em Beirute. Lá foram publicadas 136 edições, até que, em fevereiro de 1983, o prédio que a abrigava sofreu um ataque com carro-bomba que matou oito funcionários da revista e mais dez do centro de pesquisa. No artigo “18 Die in Bombing at P.L.O’s Center in Western Beirut”, publicado pelo The New York Times em 6 de fevereiro de 1983, o jornalista Thomas Friedman escreveu:

No momento da explosão, o centro de pesquisa estava em processo de reconstrução de sua biblioteca. Quando o Exército israelense invadiu Beirute Ocidental em setembro do ano passado, as tropas israelenses entraram no centro de pesquisa, desfiguraram seu interior e levaram toda a sua biblioteca, composta por 25.000 obras em hebraico, árabe e inglês sobre a história dos árabes palestinos e da Palestina. Era um dos maiores arquivos do mundo sobre a história palestina.

Após a destruição causada pelo ataque, a revista foi transferida para a Nicósia, no Chipre, e retomada no verão de 1985. Lá, ela seguiu até a edição 245, publicada em agosto de 1993, quando, por razões financeiras, precisou ser fechada. Em novembro de 2011, retomou novamente em Ramallah, cidade na Cisjordânia que é considerada a “capital provisória” da Palestina – para o povo palestino, Jerusalém ainda é a capital a ser reivindicada. A revista existe até hoje, porém não há muitos registros disponíveis on-line sobre as edições mais recentes.

Edições de 1977 por Kamal Boullata e Seta Manoukian. Edição de 1978 por Mohammed Chabâa.
Edição de 1978 por Natheer Naba'a, de 1982 por Bashir Sinwar e de 1986 por Abdel Hadi Shala.

A oliveira

Perguntas: o que quer dizer refugiado?
Dirão: é quem teve as raízes arrancadas da terra
Perguntas: o que quer dizer a “terra”?
Dirão: a casa, a amoreira, o galinheiro, o cheiro de pão, o céu primeiro.
Perguntas: como uma única palavra, de cinco letras, consegue suportar
tudo isso, mas não suporta a gente? 

Da presença da ausência, de Mahmud Darwich (Tabla, 2020)

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Os dados estatísticos foram extraídos dos seguintes veículos, comitês e agências de comunicação, respectivamente: NBC News, Washington Post, Committee to Protect Journalists, Andalou Agency e Middle East Monitor.

Arthur Debsi, autor de “Safeguarding the Palestinian Collective Memory”, afirma que mesmo que a Palestina seja uma terra com milhares de anos de história e habitada por inúmeras civilizações sucessivamente, o ano da Nakba é o mais importante de sua história, a ponto de ser chamado de ano zero. Para o autor e seus conterrâneos, é como se o passado pré-1948 tivesse desaparecido completamente. O trauma da destruição atravessa gerações e precisa ser processado por artistas capazes de transformar fragmentos em história. No dia 8 de outubro de 2024, o início dos ataques à Gaza, que já passou a ser chamado de Segunda Nakba, completou um ano. Os números são aterradores: 186 mil palestinos foram mortos; 1,9 milhão de pessoas foram evacuadas (cerca de 90% da população palestina atual); 129 jornalistas e profissionais de comunicação foram assassinados; 75 toneladas de bombas foram lançadas; 902 famílias foram inteiramente destruídas e tiveram seus registros civis apagados5.

Na década 1960, tomou força na Palestina o conceito de sumud, […] que representa a obstinação no ato de narrar uma história tão difícil de ser contada, que exige novos idiomas, novas formas de escrever.

Se 2023 é um novo ano zero, a nova história a ser contada a partir dele é ainda mais complexa. Ela necessitará de mais mãos, mentes e pincéis, pois os fragmentos de 1948 foram destruídos novamente, antes mesmo que fosse possível recolhê-los e reinterpretá-los. Na década 1960, tomou força na Palestina o conceito de sumud, que significa “perseverança”, uma palavra que se converteu em ideologia e a partir da qual foram criadas estratégias políticas, culturais e artísticas. O sumud representa a obstinação no ato de narrar uma história tão difícil de ser contada, que exige novos idiomas, novas formas de escrever. 

Mas o que acontece quando uma história é contada por uma árvore? O biólogo italiano Stefano Mancuso fala da característica de longevidade nas árvores em seu livro A incrível viagem das plantas (Ubu, 2022). Ele chama as plantas de “cápsulas do tempo”, pois são seres vivos capazes de viver por milênios, sendo as mais importantes espectadoras da – frágil, mortal e efêmera – vida humana.

As árvores são testemunhas da (nossa) história, e a história da Palestina tem como testemunha uma das árvores mais antigas e duradouras do mundo, a oliveira.

Ainda está em pé a macieira da qual caiu a maçã que acertou a cabeça de Isaac Newton (1643-1727) e o ajudou a formular a teoria da gravidade. Estão vivas as árvores que Charles Darwin (1809-1882) observou para escrever A origem das espécies (Ubu, 2018). As árvores são testemunhas da (nossa) história, e a história da Palestina tem como testemunha uma das árvores mais antigas e duradouras do mundo, a oliveira.

A origem da oliveira é tão antiga que se dissolveu no espaço e no tempo. Registros fósseis indicam sua presença em diferentes períodos geológicos e em diversas regiões, que traçam uma longa linha por toda a costa do Mar Negro e do Mediterrâneo. Mas a oliveira como a conhecemos, a versão que é cultivada hoje, tem origem na Síria e na Palestina: seu exemplar mais antigo está localizado em Al-Walaja, uma aldeia palestina, atualmente sob ocupação.

A oliveira não chora e não ri.
A oliveira é a modesta dama da encosta.
Sombra cobre sua única perna,
e ela não tira suas folhas diante da tempestade.
De pé, ela está sentada, e sentada, de pé.
Ela vive como uma irmã amigável da eternidade, vizinha do tempo
Isso a ajuda a estocar seu óleo luminoso
Esqueça os nomes dos invasores, exceto os romanos,
que coexistiram com ela, e tomaram emprestados alguns de seus galhos
Para tecer coroas. Eles não a trataram como uma prisioneira de guerra
Mas como uma avó venerável, diante de cuja calma dignidade
Espadas se despedaçam. Em seu reticente verde-prateado
A cor hesita em dizer o que pensa, e em olhar o que está por trás
O retrato, pois a oliveira não é verde nem prata.
A oliveira é a cor da paz, quando a paz é necessária.
Mahmoud Darwich

A oliveira é simultaneamente símbolo da paz e da resiliência. Na história da arca de Noé, presente tanto na Bíblia quanto no Alcorão, a pomba branca que sai da arca para procurar terra em meio ao dilúvio retorna com um galho de oliveira no bico. O achado do pássaro é um sinal de terra, mas também de trégua: chega ao fim a guerra entre Deus e a humanidade. Incorporada à identidade nacional, a oliveira está gravada na memória coletiva palestina enquanto metáfora de um enraizamento profundo no solo. Mahmoud Darwich e Mahmoud Awad Abbas são apenas alguns dos poetas que escreveram sobre a oliveira. A artista Tamam Alakhal pintou a oliveira em diversos quadros, assim como Khalil Rabah, artista palestino contemporâneo, usa oliveiras em instalações artísticas no deserto. O galho da árvore representa a longa espera pela paz e pelo fim da ocupação, aparecendo com frequência nos cartazes de protesto e na arte de guerrilha. Uma das texturas presentes do Kufiya, lenço palestino que se tornou símbolo de resistência, é formada por folhas da oliveira.

Se as Oliveiras conhecessem as mãos que as plantaram, o seu azeite se transformaria em lágrimas.
Mahmoud Darwich

A raiz da oliveira é o que sustenta o misticismo ao redor de sua sobrevivência. Mesmo quando o tronco é serrado por inteiro, ou até incendiado, a raiz ainda é capaz de fazer brotar um ramo novo.

Em termos botânicos, a força da oliveira é extraordinária. Sua madeira é resistente à decomposição, o formato e a espessura das suas folhas fazem com que elas aguentem ventos fortes, secos e salgados, mas o fenômeno mais notável relacionado a ela é a sua habilidade de renascer. Quando pensamos na imagem de uma árvore, geralmente visualizamos a parte que fica acima da terra, mas do ponto de vista estrutural, a raiz é que é a parte mais importante. Ela coleta nutrientes e informações do solo e indica o caminho – quando e como a planta deve crescer. Além disso, a raiz é o que permanece: durante o crescimento, o tronco e as folhas se regeneram e são substituídos, mas não a raiz. A raiz permanece; ela alarga e alonga, mas seu material vegetal mais acrescenta do que substitui. A raiz da oliveira é o que sustenta o misticismo ao redor de sua sobrevivência. Mesmo quando o tronco é serrado por inteiro, ou até incendiado, a raiz ainda é capaz de fazer brotar um ramo novo. Quando nos conectamos a formas de conhecimento antes não tão considerados, como a cosmologia indígena e a história árabe, esbarramos no princípio de que as árvores podem nos ensinar a contar histórias; e a oliveira, coincidentemente a árvore símbolo da Palestina, conta uma história sobre renascimento, tal qual a fênix mitológica, descrita pelo poeta sufista Farid Ud-Din Attar, no clássico da literatura árabe A linguagem dos pássaros (Attar, 2015):

A Fênix vive cerca de mil anos e sabe exatamente o dia em que vai morrer. Chegada a hora da morte, reúne a sua volta grande quantidade de folhas de palmeira e, desvairada entre as folhas, desfere gritos merencórios. Pelos furos do bico, emite notas variadas, e a música lhe sai do fundo do coração. Suas lamentações expressam a tristeza da morte, e ela treme igual uma folha. Ao som de sua trombeta, os pássaros e animais se aproximam para assistir ao espetáculo, desnorteados, e muitos morrem por lhes faltarem as forças. Enquanto ainda respira, a Fênix bate as asas e eriça as penas, e, com isso, produz fogo. O fogo se espalha pelas copas das palmeiras, e tanto as frondes quanto o pássaro são reduzidos a carvões acesos e, logo, a cinzas. Mas depois que a derradeira chama tremeluz e se extingue, uma nova e pequena Fênix surge das cinzas. Nunca sucedeu a ninguém renascer após a morte?

Quando uma história é contada por apenas uma pessoa, seu alcance é limitado e sua vida relativamente curta, porque acompanha a vida de quem a conta. Para crescer e ir mais longe, histórias precisam de outras pessoas que as recontem e as compartilhem, como as árvores de uma floresta, que compartilham entre si nutrientes e informações através de uma rede que conecta as suas raízes e, pela colaboração, sobrevivem. 

Sobre referências e pesquisas contínuas

Realizei um esforço extra para incluir neste ensaio uma boa quantidade de nomes de pesquisadores e artistas que transformam este material em um bom ponto de partida para novas pesquisas. Então, convido você a deixar-se levar pela curiosidade: pesquise na internet os nomes citados, leia os livros e conheça as imagens. Este texto é uma semente que você pode plantar e, assim, dar continuidade à nobre intenção da revista Assuntos Palestinos: o que é visto, é lembrado, e o que é lembrado, sobrevive.

Todas as imagens e informações principais sobre a revista foram retiradas do site Palestine Poster Project, um projeto on-line que disponibiliza materiais excelentes e livres de direitos autorais. Vale a nota de que, durante a pesquisa para este projeto, parte do site foi derrubada.

Este ensaio foi composto a partir de fragmentos de diversas fontes que não foram citadas diretamente, mas precisam ser reconhecidas. São elas: o projeto de divulgação da cultura islâmica no Brasil História Islâmica, coordenado por Mansur Peixoto; o periódico sobre cultura gráfica e política internacional Signal, do projeto cooperativo de design JustSeeds; e o Centro de Estudos Árabes da Universidade de São Paulo (CEAR-USP).

é designer, artista, pesquisadora cultural e arquivista; mas sua auto-classificação favorita é polímata. Brasiliense do interior do Paraná e formada em design gráfico pela UFSC. A estrada de carreira multidisciplinar a levou à direção de arte, mas sua estrada do coração a faz caminhar sempre em direção à arte e à educação. Seu projeto de pesquisa gráfica, o Index Votos, reúne referências imagéticas de origens diversas em um perfil no Instagram.
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