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14 de junho de 2021

A aparência e através dela: um engajamento crítico do design gráfico

Não sei dizer o quanto eu aprendi de história do design na minha graduação. Quer dizer, eu lembro de tentar assistir aos seminários dos colegas (spoiler: não conseguia, estava muito nervoso de esquecer minha fala), mas não me lembro de ter consciência das relações entre design e tecnologia, economia, política e cultura ao longo do século 20. Ou seja, acho que não tinha consciência historicizada da história do design. Só mais recentemente, quando precisei ensinar isso é que isso se tornou palpável para mim. Há diferentes opiniões sobre qual é a importância da história do design; a minha é a seguinte: compreender como essa prática mudou ao longo do tempo deve nos ajudar a compreender como ela ocorre hoje. Isso, para mim, é um engajamento crítico do design. A seguir, vou fazer uma breve crítica a quatro artigos (três dos quais estão disponíveis gratuitamente online) escritos por designers entre 1990 e 2018, tentando historicizá-los. Ao fim, vou defender o que entendo como um engajamento crítico do design gráfico.

Conservadorismo e design hegemônico: Cult of the Ugly

Quem é Steven Heller na fila do pão? Se você costuma folhear livros de design gráfico, é impossível não ter visto esse nome. No início de sua carreira, nos anos 1970, Heller ajudou a conquistar território da opinião pública para o design gráfico comercial, particularmente na difusão do que pode ser chamado de Escola de Nova York. Essa corrente se distanciou do Estilo Suíço para fundar uma comunicação corporativa descolada usando, sobretudo, ilustrações – algo pelo qual Heller era particularmente ávido. Desde então, escreve incansavelmente para jornais, revistas e livros e edita mais um monte. Nesse processo, além de transformar alguns designers em celebridades, apadrinhou a carreira de tantos outros.

Em Cult of the Ugly (1993), Steven Heller discute a ideia de feio, provocado por um livreto que cristalizava o pós-modernismo da Escola de Cranbrook. Na primeira metade do texto, o feio, por oposição ao “design clássico”, “desafia crenças estéticas predominantes e propõe paradigmas alternativos”. Mas ele se pergunta se essa modalidade do feio pós-moderno não teria sido gentrificada e transformada num culto. Apesar de se esforçar nas ponderações, aqui e ali deixa passar a posição que fica clara na segunda metade do texto.

Aqui, Heller revela uma posição conservadora. Não porque se opõe à visualidade pós-moderna – nessa época, já era modinha mesmo. Mas sim pelo modo que se opõe: dá a entender que design só é design mesmo quando é praticado na esfera comercial pelo designer-celebridade. Isso fica claro quando exalta que Paul Rand “nunca teve a oportunidade de experimentar fora da arena dos negócios e, já que ele foi ostensivamente autodidata, virtualmente tudo que ele inventou foi ‘no trabalho’”. É daí que vem o seu receio com esses jovens de programas de pós-graduação, que “justificam sua multidão de pecados” descambando para o culto ao feio.

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bell hooks, Olhares negros: raça e representação. São Paulo: Elefante, 2019. No capítulo 2, “Comendo o outro: desejo e resistência”, hooks fala sobre a comodificação da cultura negra, cujo consumo excita o padrão hegemônico.

A contribuição de Paul Rand deve ser considerada – e problematizada – historicamente. Mas aqui, Rand é o totem que devemos reverenciar. Rand é o Cristóvão Colombo do design hegemônico, indissociável dos negócios e da gestão; Heller é seu emissário. É a palavra de Rand – e as de Heller sobre Rand – que conferem autoridade de apontar quando o feio é válido ou não: “feiura é válida, até refrescante, quando é chave para uma linguagem vernacular representando ideias e culturas alternativas”. Talvez não fosse fácil para Heller ter essa percepção em 1993, mas ler isso hoje soa muito mal. Hoje, estamos expondo as estruturas colonizadoras e racistas do design. Um dos mecanismos dessas estruturas é essa oposição entre o “belo” design hegemônico, e o “feio” vernacular e alternativo, que pode ser apropriado para “refrescar” o primeiro1.

Entre arte e design, onde estão os cards de Instagram? Art’s Little Brother

Quem separa arte e design dizendo que “arte é expressão pessoal” e “design resolve problemas” claramente não entende nem de arte, nem de design. Rick Poynor, em Art’s Little Brother (2005), discute essa persistente dicotomia, oferecendo uma síntese mais produtiva: “arte e design existem em um continuum de possibilidades […] O trabalho mais interessante acontece nas lacunas onde há espaço para manobra e escopo para debate”. Talvez por ser britânico, talvez por não estar no calor do debate, Poynor é mais disposto a conciliar as questões em seu texto do que Heller, mas seus fins não são muito diferentes.

O fato de discutir exposições de artistas-designers mostra que o trabalho deles já dava fruto, porque o design passava a ter seu status reconhecido. Mas Poynor não se contenta e defende que “design está se tornando mais elaborado em camadas, mais espetacular, mais ubíquo em nossas vidas”, colocando-o como superior à arte. Ele explica o porquê: depois dos anos 1960, a arte passou a suspeitar do que é “meramente visual”, enquanto o design “se exulta na beleza”. O que rolou no design nos anos 1960? 

Lembra da Escola de Ulm, da Braun e do Estilo Suíço? Esses neofuncionalistas queriam criar coisas estritamente úteis, mas, no frigir dos ovos, tudo se tornava só mais um símbolo de status social. Vendo isso, os italianos do Memphis dobraram a aposta e se exultaram na beleza, como diria Poynor. Em oposição às ideias de função e utilidade, eles venderam seus móveis como obras de arte, cobrando muito por isso. Daí em diante, o design abraçou sua capacidade de agregar valor: hoje, branding é simplesmente o desdobramento disso na esfera corporativa. O “valor das marcas” é consequência do trabalho intensivo para transformar simples mercadorias – sandálias, smartwatches ou máscaras contra o novocoronavírus em objetos de luxo.

Quem não leu o texto até o fim, pode ter perdido o momento em que Poynor declara qual é seu objetivo: ele quer mais atenção da mídia, para que o design seja mais valorizado. Você provavelmente já chegou a essa conclusão no dia a dia também; eu mesmo cansei de reclamar que se os clientes “entendessem melhor” o que é design e o que eu faço, tudo seria mais fácil. Mas será? 

Em termos práticos, qual é o objetivo do departamento de marketing quando contrata um estúdio para fazer os cards de Instagram? Acumular valor, seja ele monetário – vendendo os produtos – ou simbólico – associando-se a pautas quentes e ganhando engajamento. É sobretudo no acúmulo de valor simbólico que eu vejo a exultação da beleza. Então, o marketing com certeza entende a importância do design nesse processo. Mas, mesmo assim, querem saber das sutilezas da nossa atividade (“mas a altura-x dessa tipografia…”) tanto quanto nós queremos saber como são feitas as salsichas. 

Para historicizar a história do design gráfico: Good History/Bad History

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Sempre leia as notas de rodapé!

É um passo determinado em direção a um design gráfico historicizado, situado, contextualizado. Kalman, Miller e Jacobs, ainda em 1990, apresentaram Good History/Bad History em um simpósio e o publicaram em 91 com as notas de rodapé2. A tese provocativa é que existem histórias do design boas e ruins, tanto na sua produção quanto na reprodução. As ruins, todos conhecemos: fabricar categorias e estilos que se sucedem “naturalmente”, transformando seus aspectos gráficos naquilo que podemos baixar no FreeVectors.com. É o que chamam de descontextualização, que desistoriciza a história. 

As boas, por outro lado, são mais raras. São as historicizadas; aquelas que delineiam a realidade a partir da qual as formas surgiram, esmiuçando os valores que elas cristalizam. Pairamos sobre uma discussão profunda de história (“a lente histórica é tanto um modo de ver […] quanto de não ver”) e do próprio design gráfico (“design se torna a composição de elementos puramente pictóricos em vez da manipulação de imagem e linguagem”).

O “cancelamento do futuro” implementado pelo neoliberalismo nos faz apenas revisitar nostalgias e repetir gestos, mas sem o espírito, sem o otimismo e sem a convicção; isso é o que faz a história ruim.
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Ele compara a memória pós-moderna à do protagonista da trilogia Bourne, que “carece de memória narrativa, mas conserva aquilo que se pode chamar de memória formal: uma memória (de técnicas, práticas, ações) literalmente encarnada em um conjunto de tiques físicos e reflexos condicionados”. Mark Fisher, Realismo capitalista. São Paulo: Autonomia Literária, 2020.

Para demonstrar isso, eles discutem o que chamam de jive modernism e eu traduzo como modernismo zoado. O diagnóstico deles é brilhante: “como um parasita de verdade, o modernismo zoado não se importa […] com a política ou a filosofia ou qualquer outra coisa que esteja embaixo da superfície aparente do modernismo”. Não posso deixar de endossar isso com a análise de Mark Fisher da cultura pós-moderna3. O “cancelamento do futuro” implementado pelo neoliberalismo nos faz apenas revisitar nostalgias e repetir gestos, mas sem o espírito, sem o otimismo e sem a convicção; isso é o que faz a história ruim. 

A boa história nos faz estranhar nosso próprio mundo e, assim, transformá-lo. E isso não é possível se vamos apenas criar catálogos de estilos, livros de centro e abstrair elementos gráficos para usar como stickers. Kalman, Miller e Jacobs acreditam que boas histórias surgem da “escrita ambiciosa sobre design”. Por “ambiciosa”, entendo uma escrita deliberadamente historicizada, não no sentido acumular capital social – como fizeram Heller e Poynor.

É que Narciso acha feio o que não é espelho: O design que o design não vê

O design que o design não vê (2018), de Mário Moura, é uma dessas iniciativas. Sucintamente: o texto demonstra como os atravessamentos da sociedade – raça, gênero e classe – se reproduzem no design gráfico e depois discute como o discurso do próprio campo opera para apagar essas distinções e fabricar uma identidade hegemônica. A escrita dele é fluida, mas nada linear, o que torna difícil depreender uma estrutura; eu dei o meu melhor.

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No capítulo 2 do Discurso sobre o colonialismo (São Paulo: Veneta, 2020), Aimée Césaire demonstra que discursos eugenistas como os do nazismo passeavam livremente pelos intelectuais europeus do século 19.

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Jorge Francisco Liernur, Ornamento e racismo: preconceitos antropológicos em Adolf Loos, Arqtexto, n. 13, 2008.

Despretensiosamente, Moura parte da análise de um diagrama de Walter Crane – um dos primeiros a escrever sobre design gráfico, ainda no século 19, no movimento de Artes & Ofícios. A árvore de Crane mostra que as formas geométricas estariam nas raízes de todos os padrões gráficos – incluindo os da América e os de África, que estavam sendo brutalmente colonizados em 1898, quando o livro foi publicado. Naquele ambiente intelectual da Europa, o racismo colonial era regra4.

Dito isso, Moura aponta que mesmo em Crane – que não era ativamente racista como Adolf Loos5 – “o design produzia não apenas modos de [1] representar graficamente o racismo, mas maneiras de [2] articular racialmente decisões formais”. O passo [1] indica que podemos comunicar ideias “externas”, mas o passo [2] demonstra que nossas escolhas nesse processo são indissociavelmente políticas. A consequência disso é que a dimensão do design está imbricada politicamente tanto em o que se comunica quanto nos processos e contextos pelos quais se comunica.

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J. Dakota Brown, Typography, Automation, and the Division of Labor: A Brief History, 2019.

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Estamos falando dos profissionais das artes gráficas que precedem a fotocomposição. Ao evidenciarmos esse recorte de classe, caberia discutir o anacronismo de chamar os type designers contemporâneos de tipógrafos.

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Se você tem dúvida de como os “homens de negócios” adoram design gráfico, recomendo assistir Psicopata americano (2000) ou ainda Parasita (2019).

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Ver “Reprodução e luta feminista na nova divisão internacional do trabalho (1999)”, de Silvia Federici, O ponto zero da revolução. São Paulo: Elefante, 2019.

Esse mesmo princípio é levado para o recorte de classe. Aquela revolução estética cristalizada pela Nova tipografia de Jan Tschichold não é só estética. Tem bases muito materiais: o design gráfico veio para desmantelar todo processo produtivo da indústria gráfica e, com o apoio das tecnologias de impressão ao longo do século 20, levar a classe dos tipógrafos impressores à obsolescência. Esses artífices eram necessariamente alfabetizados e tinham uma formação multidisciplinar6 – isso os tornava politicamente articulados para firmar acordos de classe. Entretanto, com a divisão do trabalho implantada com novas tecnologias financiadas pelas corporações de comunicação, o design tomou esse lugar de assalto. Hoje, achamos que dar o título de designer para tipógrafos é algum tipo de honraria7.

Ao tratar de gênero, Moura mostra como os espaços do estúdio e o discurso do design foram “masculinizados” a fim de cortejar os “homens de negócios”8. Para demonstrar isso, cita Rand, que é contra a “efeminização” do design gráfico no contexto pós-guerra. Se articularmos isso à produção feminista de Silvia Federici, perceberemos que a divisão do trabalho desse novo arranjo geopolítico global buscou confinar as mulheres ao espaço doméstico9; e isso ajuda a explicar a fala de Rand. Moura aponta ainda que até o modelo de prestação de serviços e, por conseguinte, a noção de autoria – tão cara a nós – ganharam força nesse movimento. Além disso, distanciou o design das práticas de ofício e o aproximou da gestão; terreno em que hoje estamos ideologicamente emperrados.

Um engajamento crítico do design gráfico tem um único pressuposto: o nosso trabalho é consequência de uma realidade material. É da realidade material que surgem as demandas a que respondemos com o nosso trabalho.

Finalmente, onde chegamos?

Embora possa parecer óbvio que devemos olhar o que está à nossa frente e daí formar ideias, isso é surpreendentemente raro. O mais comum é invertermos as prioridades e achar que as ideias que internalizamos são mais reais que a própria realidade. Um engajamento crítico do design gráfico tem um único pressuposto: o nosso trabalho é consequência de uma realidade material. É da realidade material que surgem as demandas a que respondemos com o nosso trabalho. Aqui, trabalho diz respeito tanto ao processo quanto ao produto; ambos estão imbricados nas relações sociais, culturais, econômicas, de poder e interpessoais que dão as condições para produzir o que produzimos. 

Para evitar confusões, quero elaborar dois aspectos disso: 1) agência dos indivíduos e 2) aparência como cristalização de valores. 

Se o que fazemos é consequência dessas condições – desse contexto –, não podemos fazer nada enquanto indivíduos? Não temos agência sobre nossa realidade? Essa é uma falsa dicotomia. Nossa agência também é posta a partir das condições materiais que nos são dadas no nosso tempo histórico. Um exemplo bem direto: precisamos pagar boletos. Nossa agência (nossa “liberdade”) é sempre relativa; o que podemos fazer é jogar com as possibilidades que temos para conseguir pagar esses boletos. Compreender isso demonstra que podemos intervir na realidade, mas também dissolve a noção infantil e liberal de “liberdade”. 

Jogar com as possibilidades requer leitura de contexto e decoro. Requer lidar com os signos e as aparências. Em última instância, esse é nosso ofício. Então, por que tentamos tanto justificar aquela cor da identidade visual ou colocar a proporção áurea naquele layout? Somos muito desconfiados da aparência e precisamos revestir aquela decisão com um “argumento”. Não deveríamos. A aparência é a consequência direta das condições de sua produção. O que aparece no layout é simplesmente a cristalização dos valores imbricados nas suas condições de produção. Para ficarmos numa linguagem mais familiar: forma não se opõe a conteúdo; é sua consequência.

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Como também não está dada, por exemplo, na economia. A ideia de valor de face ou valor nominal (de um título) não corresponde ao seu poder de compra. Também não posso deixar de remeter ao conceito de typeface.

Entretanto, essa relação quase nunca está dada de cara10, porque aparência é retórica: pode servir para redirecionar nossa atenção, como num truque de ilusionismo. Mesmo assim, tudo o que experienciamos, experienciamos por meio das aparências, no domínio da estética. Então, para compreendermos o que vemos na superfície, precisamos ver, ao mesmo tempo, através dela. O engajamento crítico aprecia a aparência, mas desconstrói suas engrenagens; a historicização reconhece o vínculo indissociável entre as superfícies e as estruturas.

Este texto foi publicado originalmente como leitura complementar do mês de março de 2021 do Clube do Livro do Design. O Clube, realizado por Tereza Bettinardi, promove debates mensais a partir da literatura do Design. A ilustração de capa pertence ao livro Les phénomènes de la physique (1868), livro de Amédée Guillemin.

é designer e professor no IFPE – Recife. Doutor em Design, relatou as práticas pedagógicas junto aos estudantes na tese intitulada “Compartilhar experiências e aprender coisas”. Também investiga as articulações entre texto e imagem para a experiência estética dos livros ilustrados. Além disso, compartilha seu trabalho com desenho, pintura, ilustração e design gráfico no Instagram e discute design criticamente no Twitter e no Medium (@souzaeduardo em todos).
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