O design de padrão é uma paixão de longa data. Me impressiona esse tipo de desenho que, efetivamente, configura um projeto sempre inconcluso: inacabado, pois nunca o apreendemos em sua totalidade. Talvez pelo fato de que sua principal característica seja a de extrapolar a imagem estática, constituindo uma imagem-viagem que nos propicia o contínuo mergulho num horizonte extenso. A expressão “construção no plano infinito” é aquela que, para mim, melhor alude ao design de padrão soviético: um autêntico projeto concebido para um plano potencialmente sem fim. Uma construção em estado bruto, um embrião de algo que pode vir a ser.
Essas reflexões são resultado dos estudos que conduzi acerca dos desenhos de padrão produzidos pelas vanguardas artísticas russas do período pós-Revolução Bolchevique — ou, como define o pesquisador Selim Khan-Magomedov, por parte dos movimentos de vanguarda do primeiro terço do século XX. Entendo o desenho de padrão produzido nesse período enquanto uma metáfora à própria ebulição ocasionada pelo movimento revolucionário de 1917, momento em que a Rússia se propôs a tarefa de desenhar um futuro a partir da transformação radical do presente.
Proponho aqui um recorte visual específico da produção das multiartistas Liubov Popova e Varvara Stepanova. Duas designers de superfície e professoras dos Ateliês Superiores de Arte e Técnica de Moscou (Vkhutemas), que fizeram parte do movimento construtivista e se engajaram nos muitos debates estéticos, sociais, políticos e econômicos que pairavam pelas ruas de Moscou na década de 20.
O Construtivismo está entre os muitos movimentos artísticos do período, não sendo o único.
Vale comentar aqui que a aproximação com o tema se deu nas oficinas livres do Sesc Pompeia com Celso Lima em 2014, e amadureceu no grupo de estudos “Guerrilha Estamparia” organizado por mim e Celso com alguns de seus alunos em 2017.
Propedêutico se refere ao ensino introdutório e básico. Essa palavra é fundamental para se compreender os Vkhutemas, uma vez que no movimento geral de construção de uma linguagem revolucionária, a escola e suas políticas educacionais figuravam como ferramenta essencial.
Reflexão derivada de conversas com o amigo e filósofo João Cortese.
Vale mencionar aqui que Malievitch se opunha ao movimento Construtivista. No entanto, leituras críticas posteriores aproximam o Suprematismo do Construtivismo, principalmente no que diz respeito à pedagogia.
Entrelaçando as arquiteturas de superfície dessas duas artistas com as críticas ao Construtivismo, notei como algumas pré-concepções não se encaixavam. Eu não enxergava — e ainda não enxergo — nesse conjunto de trabalhos os princípios utilitaristas e objetivistas que costumam ser atribuídos ao movimento construtivista russo.1 Seus desenhos carregam uma potência própria, e não se adéquam a uma leitura superficial. Por esse motivo, me impus a tarefa de conduzir um aprofundamento do tema.2
Os projetos de Popova e Stepanova são complexos, uma genuína investigação acerca do desenho de padrão. Abstratos e altamente inventivos, carregam consigo o caráter fundamental dos Vkhutemas: são propedêuticos.3 Para além de uma potência visual incontestável, o desenho de padrão soviético carrega consigo uma pujança transformadora própria da educação: a de informar e propor que é possível se pensar em um futuro comum. Não pela ótica da rigidez e do aprisionamento de suas grades, mas pelo exercício imaginativo de se pensar um desenho que configure um projeto-matriz. Justamente nesse momento entram em cena as grades e subgrades, como um ritmo, como o próprio tempo.
Gosto da palavra infinito, visto que ela se define por sua própria negação, o finito. Sua definição procede de sua oposição: aquilo que conseguimos tocar e dimensionar. Frequentemente, não há maneira melhor de se sentir ou dizer algo do que pela incorporação de seu antônimo.4 Tal mecanismo nos permite construir uma relação com o próprio conceito de futuro, que em si configura uma abstração, uma vez que o projetamos a partir daquilo que conhecemos: o presente. Esse futuro-abstração seria, talvez, mais abstrato até do que as composições de Malievitch, ou tão abstrato quanto a sensação que Malievitch traduz em suas composições antissimétricas.5
Os Ateliês Superiores de Arte e Técnica, fundados em 1920, se convertem, em 1926, no Instituto de Arte e Técnica Vkhutein, e são definitivamente encerrados em 1930.
Quão lúdico-ludibriante é a ideia de se pensar num desenho/projeto de sociedade/sonho coletivo que se estende indefinidamente em todas as direções? Estamos nos referindo ao início de uma nova era industrial pela construção do socialismo, e a um projeto de sociedade que buscou conceber um design que atendesse a todas e todos. Falar da Rússia deste período, especificamente entre 1920 e 19306, é falar de um momento político, social e econômico muito distinto daquele dos países da Europa ocidental capitalista, nos quais as escolas de design direcionavam esforços e demandas muito mais para clientes do que para cidadãos.
Vkhutemas
Krupskaia segue sendo uma referência até hoje, não só no campo da educação, mas também para o movimento feminista. Vale lembrar que a Rússia pós-Revolução foi o primeiro país a empreender conquistas no sentido da equidade de gênero, como a legalização do aborto, criação de creches e lavanderias comunitárias, entre outras.
Para maior aprofundamento na escola e no contexto social, político e econômico de sua criação, indico o livro Vkhutemas: desenho de uma Revolução (Kinoruss, 2020), de autoria de Neide Jallageas e Celso Lima. Vale destacar que o corpo docente da escola era extremamente diverso, contemplando diferentes correntes artísticas e políticas.
LIMA & JALLAGEAS. Vkhutemas: Desenho de uma Revolução. São Paulo, Kinoruss, 2020. p. 249.
Não podemos dar sequência a essa reflexão sem antes contextualizar brevemente os Vkhutemas, escola soviética de arte, design e arquitetura, mais comumente conhecida como a irmã distante da Bauhaus.
Os Vkhutemas foram uma escola-experimento criada por meio da segunda reforma educacional na Rússia soviética, em 1920. À frente do órgão estatal responsável por sua fundação — o Comissariado do Povo para a Educação — estavam Anatoli Lunatcharski e Nadejda Kruspskaia.7 Por meio de uma complexa política de reorganização educacional para as artes, foi fundado o Instituto de Cultura Artística. Esse instituto — à frente do qual estava o pintor Vassíli Kandinski — possuía, entre outras atribuições, a de conduzir a criação de uma escola de arte integrada que formasse artistas e artesãos capazes de dar conta das demandas de uma nova sociedade industrial. São criados, assim, pelo esforço conjunto de uma série de artistas, intelectuais e trabalhadores, os Vkhutemas, uma escola que compreendia a arte, o design e a arquitetura como profissões indispensáveis para a nova sociedade em construção.8
Na escola, o desenho e a composição de padrões integravam a cadeira da faculdade têxtil, uma das oito que compunham o currículo geral — junto com pintura, escultura, cerâmica, poligráfica, marcenaria e metalurgia, arquitetura e ciclo básico. Em 1923, Varvara Stepanova é convidada a conduzir essa disciplina, momento no qual a orientação pedagógica adere à linguagem construtivista. Junto com Liubov Popova desenvolve um novo programa para os estudantes com o objetivo de aproximar o ensino prático do ensino teórico, organizando aulas inteiras dentro da fábrica Primeira Estatal Têxtil de Moscou, na qual ambas trabalhavam. Segundo Celso Lima e Neide Jallageas, o programa se propunha a:
“… aprofundar o ensino das disciplinas de formação básica em composição e desenho para a criação de uma nova linguagem gráfica para a estampa, com estudos de grades e paletas de cores (…) Essa nova pedagogia artística rejeitava as antigas formas burguesas e propunha uma participação ativa e autoral na construção socialista.”9
Dois primeiros anos de estudos, comuns a todas as faculdades.
Relativo ao tato.
Popova era também professora da disciplina de Cores e Superfícies no curso propedêutico do ciclo básico10 da escola. O fato de Popova fazer parte dos dois departamentos (ciclo básico e faculdade têxtil) nos permite refletir sobre as artistas enquanto mestres e professoras dedicadas à formação visual básica de seus alunos, envoltas em esforços contínuos de sensibilização do olhar. Para ambas, o desenho de padrão era tratado como um autêntico estudo de design. Além da incorporação do caráter propedêutico, educativo e extremamente técnico e complexo, percebe-se a intenção de se jogar com a grade a ponto de suprimi-la das sensações ótica e háptica11, tamanho o domínio que se buscava das ferramentas de composição.
Vale lembrar, por fim, que se tratava de um ensino em larga escala. Grande parte dos alunos dos Vkhutemas provinha do operariado russo, estava ligado ao partido bolchevique e não possuía formação artística prévia. Ao todo, somavam aproximadamente 1.500 membros do corpo discente, o que nos dá a ampla dimensão da estrutura de ensino da escola moscovita se comparada com a Bauhaus — uma escola com cerca de 150 alunos no total.
Padrão
Como bem nos apresenta Ernst H. Gombrich em seu livro “O Sentido de Ordem”, 1979.
A característica construtiva do desenho de padrão não é exclusiva das pesquisas do design soviético, é uma qualidade inerente a essa técnica de tradição milenar.12 Frequentemente, e em diversas culturas, esse tipo de produção apresenta uma relação intrínseca entre a urdidura — seja do tecido, da palha ou da parede de tijolos — e o próprio padrão visual. No entanto, é possível afirmar que para o movimento construtivista soviético esse aspecto do desenho de padrão foi intensamente explorado enquanto motivo, configurando uma clara intenção de se criar os fundamentos de tal prática. Assim como os esforços de Malievitch, que buscou criar fundamentos para a construção espacial por meio de seus Arkhitektons — modelos de arquiteturas cegas e disfuncionais.
O princípio da economia de esforços foi enfatizado ao longo do século XX em diferentes áreas da tecnologia e do design. Observamos esse princípio em declarações de artistas como Malievitch e Rodchenko, mas também na teoria do design do historiador Ernst Gombrich, a artista Bridget Riley, Buckminster Fuller, e outros designers, engenheiros e arquitetos.
Palestra com Monica Rizzolli, no Processing Community Day 2021.
O desenho de padrão acontece apenas no momento de sua repetição, tornando impossível escapar da lógica da grade, a primeira regra do jogo. Em grande parte da produção industrial e artesanal, há a limitação dos maquinários (quiçá, no futuro, novas tecnologias possam suplantar essa restrição). Há também — e talvez acima de tudo — a necessidade da chamada “economia de esforços”: energia, tempo, trabalho e matéria.13 Trata-se de pensar a sustentabilidade de uma produção, bem como a rápida assimilação de seus fundamentos — um dos pilares para a execução e o desenvolvimento coletivos.
Mesmo quando falamos de um design de padrão gerativo, que funciona, por exemplo, para a produção das texturas de fundo de videogames — o algoritmo Wave function Collapse, ou “Colapso de Função de Onda” —, só é possível por meio de uma linguagem de programação extremamente complexa. Nem mesmo muitos daqueles que a utilizam são capazes de compreender o código em sua totalidade.14 São linguagens ainda restritas ao meio digital, mas possivelmente, e em breve, se tornarão modos de impressão industrial.
Percebo, no entanto, que mesmo ao utilizarmos esse tipo de ferramenta é imprescindível a compreensão do estudo introdutório de padrão, que na matemática é chamado de tesselação — uma lógica de cobertura de superfícies por meio de polígonos sem buracos ou superposições. Tal estudo não só reflete princípios arquitetônicos básicos — do assentamento de pisos a treliças espaciais — como também se converte num sistema de leitura aplicado a qualquer tipo de construção, desde as estruturas celulares até a própria configuração do sistema planetário.
Conclusão
O conhecimento propedêutico dos princípios básicos do design de padrão se revela extremamente agregador, uma vez que manifesta um desejo de compreensão fundamental desse sistema construtivo. Do contrário, se tornaria uma mera imersão em um grande e belo caleidoscópio aleatório, do qual nos cansamos após alguns minutos de brincadeira, sem desenvolver a capacidade de criar qualquer tipo de relação ou vínculo simbólico com as imagens produzidas. Por fim, vale destacar que a capacidade de transgressão de um método se fundamenta sempre no domínio e no conhecimento pleno de seus processos e modos de funcionamento, o que nos revela como o ensino propedêutico carrega em si um caráter efetivamente revolucionário.
Em entrevista recente por mim realizada com a pesquisadora e historiadora russa Anna Bokov — autora do livro Vkhutemas: Avant Garde as method (2020) —, debatemos o fato de que o design soviético anteviu a linguagem de código, e que ainda hoje poderia assumir um caráter propedêutico frente a esse sistema que gradualmente domina nosso modo de construir, produzir e pensar. Muito do conhecimento básico produzido pelas vanguardas revolucionárias no início do século XX na Rússia soviética pode contribuir com o nosso momento atual, de novas revoluções linguísticas que se desenham no horizonte.
Essa imagem-movimento do desenho de padrão soviético nos ensina sobre a própria ideia do fazer colaborativo. Projetada para se estender no plano infinito e transbordar a superfície, mergulha na dimensão do tempo. Assim como na música, o desenho de padrão é rítmico, tem pulso, cor e textura. É resultado do acúmulo de conhecimento prático e coletivo; configura uma técnica de construção em estado bruto, não figurativa, na qual a própria grade dentro da linguagem nos dá a dimensão de que é possível haver entre nós alguma espécie de medida comum.
É por meio de reflexões como essas que descubro e produzo sentidos no processo de pesquisa de mestrado que atualmente conduzo na FAUUSP. Nele, busco sistematizar exercícios introdutórios dos Vkhutemas, colocando em paralelo o design de padrão e outros estudos básicos de desenho. Tais esforços carregam o intuito de tornar o aprendizado técnico-construtivo e sensitivo do design e da arquitetura cada vez mais acessível e, acima de tudo, desmistificado.
Os textos que integram a coluna Design Radical são co-editados por Rafael Bessa e são complementares ao artigo homônimo publicado na Recorte em maio de 2021. Os autores convidados por ele exploram as diferentes formas em que o design se relaciona com as condições de produção, as outras áreas do conhecimento e a conjuntura política de seu contexto histórico.