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15 de janeiro de 2025

A vida é movimento: pessoas, design e mobilidade urbana

Imagem cedida por Gustavo Pedrosa (@guspedrosa) para ilustrar este ensaio da Recorte.

Uma mulher idosa precisa sair de casa para fazer compras em um hortifrúti a algumas quadras de casa. No entanto, ao pensar na calçada esburacada e no caminho irregular até a feira, acaba desistindo, por medo de sofrer uma queda, e pede para um parente buscar as compras para ela. Uma pessoa com deficiência física, usuária de cadeira de rodas, necessita se deslocar até outro bairro para fazer um exame médico, mas também opta por ficar em casa, pois a linha de ônibus de seu bairro está com o elevador de acessibilidade quebrado. Um ciclista, que diariamente passa por uma avenida mal sinalizada do centro da cidade, é obrigado a mudar de rota, adicionando 15 minutos a seu percurso, depois de saber que um amigo quase foi atingido por um carro no mesmo trajeto. Uma mãe demora mais de duas horas para chegar em casa após o trabalho, pois precisa fazer baldeações entre linhas de ônibus e metrô, e, ao retornar, sempre encontra seus filhos dormindo. Essas e muitas outras histórias, que se repetem diariamente no Brasil, possuem um denominador comum: elas retratam pessoas cujo deslocamento foi extremamente dificultado, ou que foram impedidas de se deslocar pela cidade.

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O site do Instituto Pólis contém uma vasta coleção de textos e discussões sobre direito à cidade, além de grande aproximação prática com diversos movimentos sociais no Brasil.

A mobilidade de péssima qualidade piora não somente a qualidade de vida, como também deteriora a relação e a conexão desses cidadãos com o espaço, perpetuando uma crise urbana e agravando desigualdades socioeconômicas. Esse deterioramento é resultado direto do reforço a modelos de desenvolvimento econômico e urbano implementados ao longo do século passado, tanto em nível local quanto global. No primeiro, destacam-se fenômenos conhecidos no Brasil, como a periferização e a precarização dos transportes públicos coletivos e demais equipamentos de infraestrutura de transporte ativo, como ciclovias, em favor da utilização de carros. No segundo, está a urbanização guiada pela especulação agressiva do uso do solo, como a gentrificação, a crise da moradia e o crescimento desenfreado do zoneamento urbano, que gerou impactos ambientais profundos e afetou diretamente o chamado “direito à cidade”1. O termo, cunhado pelo sociólogo francês e filósofo marxista Henri Lefebvre em 1968, fala justamente sobre o direito coletivo de transformar a cidade de acordo com necessidades, rotinas e desejos. Algo muito mais profundo do que apenas “acesso” a equipamentos ou “livre passagem”, pois diz respeito principalmente ao poder e à influência das pessoas e de seus cotidianos na organização do espaço urbano.

A mobilidade é um aspecto crucial da vida e afeta a todos. Nos organizamos, enquanto sociedade, em um perpétuo ciclo de ações de transporte [...].

Para que possamos alcançar nossos desejos e cumprir necessidades, quando associadas a um destino, é necessário nos empoderarmos da vontade de mudança entre estados no tempo (o antes e o depois) e exigirmos deslocamento com dignidade. A mobilidade é um aspecto crucial da vida e afeta a todos. Nos organizamos, enquanto sociedade, em um perpétuo ciclo de ações de transporte, representadas pelo alimento disponível no mercado; pelo exame médico no posto de saúde; pelo lazer em um parque público ou centro cultural; e pela casa e presença da família ao fim de um dia de trabalho. A vida é, portanto, movimento.

Entender o que possibilita esses diversos movimentos do cotidiano e reconhecer os aspectos críticos do transporte através de uma óptica que promova maior consciência dessas interrelações pode abrir caminho para discussões que ultrapassem a dimensão conjectural e levem à compreensão da mobilidade urbana e à análise dos sistemas em que ela se ampara. Como diz o teórico italiano Giulio Carlo Argan, autor de História da arte como história da cidade (Martins Fontes, 2019), “antes de considerar a cidade em relação a categorias estéticas, é preciso considerá-la em relação às técnicas que a tornam não apenas concebível, mas projetada, e, portanto, logicamente, em relação aos procedimentos e as técnicas do projeto”. O espaço urbano, assim como a mobilidade, é projetável e produto de um projeto.

Uma vez integrados ao pensamento sistêmico, e em contato com estruturas e ecossistemas, a pesquisa e o fazer em design podem resultar na compreensão holística das circunstâncias em que os deslocamentos ocorrem [...].

Por ocupar-se diretamente com as jornadas que indivíduos e grupos realizam no espaço urbano, o design, articulado de forma multi e transdisciplinar, pode oferecer uma óptica propositiva, que vai além de seu uso material e instrumentalizado. Enquanto ferramenta, ele influencia a interação das pessoas com o ambiente. Uma vez integrados ao pensamento sistêmico, e em contato com estruturas e ecossistemas, a pesquisa e o fazer em design podem resultar na compreensão holística das circunstâncias em que os deslocamentos ocorrem, identificando elementos, objetos, atores e contextos, observando e analisando estrategicamente as relações que se estabelecem entre esses agentes. Assim, é possível estabelecer conexões sem perder de vista os problemas que impactam a mobilidade, encontrar definições que nos ajudam a traçar as causas desses problemas, e a projetar/promover soluções de um futuro possível, no qual exista reconexão com o espaço. Futuro este concebido através da compreensão dos papéis das gestões políticas e das instituições, com foco na qualidade de vida, por meio de investimentos públicos mais eficientes, integrados a planejamentos de longo prazo voltados a pessoas/usuários. Em seu livro Marcas – Design estratégico: do símbolo à gestão da identidade (Blucher, 2015), a designer e professora doutora Cecilia Consolo afirma que:

O design, no sentido profundo da atividade, é sempre estratégico. […] o processo de trabalho envolve empatia com as necessidades dos usuários, metodologias para traçar o maior número de hipóteses possíveis, elaborar suposições, revogar parâmetros, explorar e analisar probabilidades para convergir em uma síntese. O projeto de design é a resposta a um problema apresentado com uma visão de um futuro possível.

A partir daqui, podemos pensar nas inúmeras definições e conceitos acerca deste tema através de diversos canais, debates e disciplinas. A palavra “mobilidade” deriva do latim mobilis ou mobile, que significa “móvel”. No dicionário Michaelis, é definida como “característica do que é móvel”. No entanto, a “mobilidade urbana” é inicialmente referida como “acesso ao transporte“ em definições regulatórias. Ela é um dos direitos sociais citados no Artigo 6º da Constituição Brasileira de 1988 e foi regulamentada no Código de Trânsito Brasileiro, de forma mais precisa pelos Estatutos das Cidades e das Metrópoles e pela Política Nacional de Mobilidade Urbana, em que é descrita como “a condição em que se realizam os deslocamentos de pessoas e cargas no espaço urbano”. Essas definições, apesar de bastante objetivas, não nos fornecem pistas quanto aos elementos decisivos do transporte e não revelam a natureza sistêmica de como ocorrem esses deslocamentos, aspectos fundamentais para conseguirmos definir um repertório de possíveis transformações relacionais.

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No mesmo artigo.

Encontramos no então chamado fenômeno do transporte, definido pelos pesquisadores Marcos Thadeu Queiroz Magalhães, Joaquim José Guilherme de Aragão e Yaeko Yamashita, como uma esquematização elaborada dentro do pensamento sistêmico que mapeia as principais relações e elementos para que a mobilidade ocorra, ou melhor, para que a mobilidade seja enfim uma “propriedade daquilo que pode ser transportado”2. Essa esquematização, que inclui de pessoas a objetos, é fundamental para a compreensão das relações que possibilitam os deslocamentos e, a partir dela, podemos construir um repertório: “um objeto é móvel (possui a propriedade mobilidade) se, e somente se, o sistema de transporte é acessível ao sujeito de transporte e ao objeto de transporte”3.

É justamente essa perspectiva sistêmica, na qual a acessibilidade está em jogo, que torna possível qualificar a mobilidade.

O ecossistema do fenômeno do transporte contém elementos para além da mobilidade em si, que são: sujeito do transporte (as pessoas), objeto de transporte (os veículos e demais modos de transporte), meio de transporte (meios de transporte e suas infraestruturas). Esses três fatores estão inter-relacionados como uma espécie de tripé, e o mais interessante é notar que o quarto elemento é a acessibilidade, como propriedade do meio de transporte, conectada às inter-relações de sujeito e objeto. 

É importante compreender como cada um desses elementos do fenômeno/sistema são definidos. Tomamos por exemplo um cadeirante (sujeito), que se desloca sob a calçada (meio) com a sua cadeira de rodas (objeto). Remova um dos elementos ou piore as relações entre eles – em especial as que dizem respeito ao meio e ao objeto – e o movimento será interrompido. É justamente essa perspectiva sistêmica, na qual a acessibilidade está em jogo, que torna possível qualificar a mobilidade.

Sujeitos do transporte são as pessoas: o indivíduo ou coletivo de indivíduos que possui alguma necessidade ou desejo, presente em um destino, seja longe ou perto de onde se localiza no momento do início do deslocamento, e cuja satisfação pressupõe o deslocamento de um objeto/modo de transporte. Existem muitos motivos pelos quais nos deslocamos: trabalho, educação, saúde, lazer. Porém, entende-se também que diferentes grupos de pessoas (idosos, crianças, mulheres, pessoas com deficiência, população negra e LGBTQIAPN+, entre outros) encontram particularidades quando se deslocam. Por conta disso, é imprescindível compreender o grau de inclusão desses sujeitos em seus trajetos diários, ou seja, quais fatores afetam, em cada caso, a acessibilidade. Nos estatutos da Criança e do Adolescente (1990), do Idoso (2003) e principalmente no da Pessoa com Deficiência (2015), existem dispositivos importantes que viabilizam alguns recursos de inclusão, como: os acessos prioritários com sistemas de comunicação e informação compreensíveis; a gratuidade no transporte; a reserva de vagas; a adaptação de equipamentos urbanos; a construção de infraestruturas; e o planejamento arquitetônico de edificações quando de uso coletivo, entre outros.

É imprescindível que os comitês e conselhos sejam ativos como meios para canalizar a luta e as reivindicações dos movimentos sociais pela qualidade da mobilidade, através de inclusão e acessibilidade nos meios de transporte.
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Trecho retirado do livro O design do dia a dia (Rocco, 2006), de Don Norman.

No entanto, ainda é necessário olhar mais a fundo. É fundamental estabelecer um paralelo entre a definição de sujeito do transporte e o que preconiza o design centrado no humano (ou humanidade) de Don Norman: “[…] As necessidades e exigências das pessoas devem constituir a força que impulsiona grande parte do trabalho ao longo de todo o processo […]”4. Uma vez que o processo projetual e o planejamento devem focar na ampliação, na inclusão e na acessibilidade, pessoas podem ser empoderadas tanto com instrumentos que as ajudem a superar dificuldades de deslocamento quanto com novas formas de atuação direta e democrática sobre as forças que influenciam e definem a mobilidade e a formatação dos sistemas de meios de transporte. Uma das ferramentas mais eficientes de participação da população e do pluriverso desses grupos na fiscalização das políticas de trânsito dos municípios de forma qualificada é a lei que institui a criação dos Comitês de Trânsito e Transporte e de Conselhos Municipais de Mobilidade Urbana. É imprescindível que os comitês e conselhos sejam ativos como meios para canalizar a luta e as reivindicações dos movimentos sociais pela qualidade da mobilidade, através de inclusão e acessibilidade nos meios de transporte.

Meio de transporte é o conjunto de infraestruturas de transporte que possibilitam o deslocamento de fato. É por onde os sujeitos e objetos do transporte se deslocam, como os sistemas rodoviário, cicloviário, ferroviário, hidroviário, aeroviário, e, no caso dos pedestres, as calçadas. O meio de transporte é também proprietário da acessibilidade e, por ser o espaço do deslocamento, seu nível de inclusão na acessibilidade é ditado pelos níveis de planejamento do desenvolvimento urbano e por como ele opera nos sistemas de transportes.

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Definição encontrada no livro Transporte urbano nos países em desenvolvimento (Annablume, 2003). Eduardo Alcântara Vasconcellos é também assessor na Associação Nacional de Transportes Públicos, pesquisador e autor de uma vasta bibliografia sobre mobilidade urbana no Brasil, sistemas de transporte e políticas para transporte público.

Acessibilidade pode ser definida, segundo o engenheiro, sociólogo e doutor em ciência política Eduardo Alcântara de Vasconcellos5, como a facilidade de circular e ter acesso ao espaço urbano, atingindo os destinos desejados. Além disso, pode ser medida pelo número e natureza desses mesmos destinos. A acessibilidade é propriedade do meio de transporte, mas também é determinada pelas relações do sujeito e do objeto com o meio. Afinal, retornando a Magalhães, Aragão e Yamashita, a mobilidade só ocorre se “o sistema de transporte é acessível ao sujeito de transporte e ao objeto de transporte”. Essas relações, por sua vez, podem ser tipificadas. Vasconcellos nos apresenta duas subcategorias: micro e macroacessibilidade.

Microacessibilidade é a facilidade de acesso aos equipamentos, oportunidades e destinos, determinados pelo indivíduo. Isso vai desde o seu ponto de partida aos diferentes tempos encontrados durante o deslocamento. Alguns deles, por exemplo, são: o tempo até alcançar um veículo; o tempo em trânsito; o tempo parado; o tempo de transferência entre veículos e nas baldeações entre linhas; e o tempo do veículo até o ponto de chegada. Por mais que a microacessibilidade seja desempenhada pelo indivíduo, ela é completamente determinada e englobada pela macroacessibilidade, em uma relação de direta dependência.

Macroacessibilidade é a facilidade de cruzar o espaço. Ela é determinada pelas decisões de órgãos específicos e alheios ao indivíduo, que atuam sob os sistemas e infraestruturas dos meios de transporte, por políticas públicas e por decisões de mercado, em relações institucionais que fazem prevalecer os modelos de desenvolvimento urbano e econômico vigentes. No Brasil, a macroacessibilidade é regulada em três níveis. No primeiro, pelo planejamento urbano estabelecido pelos estatutos das Cidades (2001) e das Metrópoles (2015); no segundo, pelo planejamento de transportes configurado hoje no Plano Nacional de Mobilidade Urbana (2012); e em terceiro, pelo planejamento de circulação no Código Nacional de Trânsito (desde 1997- até hoje) junto de companhias e órgãos de Engenharia de Tráfego. Podemos então concluir que é nesse conjunto que se encontram os aspectos mais críticos e estratégicos para que prevaleçam os problemas de mobilidade e exclusão.

Objeto do transporte ou modo/modal de transporte é o veículo. E são modais os diferentes tipos de veículos que transportam pessoas ou coisas de uma origem a um destino. No caso do deslocar sob a calçada, por exemplo, o pedestre é duplamente objeto e sujeito do transporte, proprietário direto da mobilidade, porém dependente da acessibilidade e do meio de transporte. Essa definição nos alerta para o quão pouco acessíveis são as calçadas no Brasil se considerarmos as necessidades de pessoas idosas ou com deficiência, por exemplo. Os modais variam conforme os sistemas de meios de transporte e, segundo a Lei da Política Nacional de Mobilidade Urbana, são definidos por diferentes tipos de: tração (não motorizados: animal, humana; motorizado ou autopropelido); classificação (de passageiros ou cargas); natureza do serviço (público ou privado); característica do serviço (individual ou coletivo). Podemos nomear e categorizar cada tipo de veículo dentro dessa sistematização. Lembrando sempre que, se a acessibilidade é considerada um fator determinante da mobilidade, a acessibilidade, por sua vez, também é impactada pela relação entre meio e objeto de transporte.

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Rafael Cardoso no livro Design para um mundo complexo (Ubu, 2022).

Essa relação de complementaridade pode significar que alguns tipos de veículos podem ser mais ou menos inclusivos. E quais seriam esses veículos mais inclusivos? Ou ainda estão para serem criados? Encontramos aqui o terceiro paralelo, também contido no campo design, que abre um amplo espectro de desdobramentos e possibilidades de soluções, algo que o escritor e historiador Rafael Cardoso6 compreende no questionamento de “[…] quais seriam os sentidos possíveis do objeto dentro de um sistema complexo, abrangendo um leque mais amplo de usuários e situações, abriremos a possibilidade de pensar o projeto de modo plural e polivalente”. Podemos aqui considerar a natureza projetual das soluções, mas também é preciso partir do pensamento sistêmico, da ideia de integração, seja por meio de contextos diversos que contribuam para o surgimento de novos artefatos – ferramentas, fontes de energia e sistemas que ajudam as pessoas –, seja de outras estruturas e organizações capazes de regenerar o ambiente e favorecer a interface de novas relações sociais do espaço urbano e além, superando os modelos existentes.

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Paris Marx é escritor canadense, autor do livro Estrada para lugar nenhum: o que o Vale do Silício não entende sobre o futuro dos transportes (Ubu, 2024), onde revisita a história das cidades estadunidenses e dos avanços tecnológicos nos transportes e serviços de deslocamento para criticar a visão de futuro, no que diz respeito à mobilidade, das big techs. Também é apresentador do podcast Tech Won’t Save Us.

O modelo estadunidense de planejamento urbano rodoviário do início do século 20, depois consolidado e difundido através da Highway Act de 1956 – lei de auxílio federal para investimento e construção de rodovias e um dos maiores projetos de infraestrutura pública dos Estados Unidos, que foi implementado em grandes metrópoles como Nova York, Detroit e Chicago –, abriu caminho para projetos audaciosos nas cidades e nos subúrbios. No entanto, as ações de “renovação” urbanas, como as do engenheiro e planejador urbano Robert Moses, que, segundo Paris Marx7, provocaram a demolição de bairros pobres e vizinhanças de comunidades negras, são um grande exemplo de como o racismo também faz parte de estruturas de segregação e inacessibilidade.

O modelo europeu moderno de cidades planejadas no século 20, que inspirou gerações de projetos de desenvolvimento urbano e de transportes, teve desdobramentos semelhantes. Não à toa, processos de projeto que geram desigualdades de oportunidades e socioeconômicas, fragmentação do espaço urbano e gentrificação, também acarretam impactos ambientais extremamente negativos. Portanto, o paralelo que podemos estabelecer aqui é na urgência de que esses modelos, tanto o americano quanto o europeu, sejam superados e substituídos. E a insatisfação coletiva é a faísca para o surgimento de movimentos sociais que reivindicam melhores modelos.

Não à toa, processos de projeto que geram desigualdades de oportunidades e socioeconômicas, fragmentação do espaço urbano e gentrificação, também acarretam impactos ambientais extremamente negativos.

Entre eles, podem-se destacar as atividades da campanha Mobilidade Sustentável nas candidaturas em eleições municipais de todo o país, encaminhando e colhendo assinaturas em cartas propostas com diretrizes para transportes mais sustentáveis e melhor desenvolvimento urbano. Também estão em linha as resistências de coletivos de bicicleta e mobilidade ativa, e os importantíssimos movimentos pelo passe livre e as ações pela tarifa zero no transporte público – que ganharam força a partir dos anos 1990 nas propostas da então prefeita de São Paulo Luiza Erundina e do secretário de transportes Lúcio Gregori, cujo trabalho ainda inspira e ecoa na luta dos dias de hoje. 

Até 2023, a Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU) constatou que cerca de 67 municípios no Brasil já adotaram o passe livre. Atualmente, está em discussão no Congresso Nacional uma proposta de emenda à Constituição (PEC), de coautoria de Luiza Erundina, hoje deputada pelo Partido Socialismo e Liberdade (Psol-SP), e de Jilmar Tatto (PT-SP), para a criação do Sistema Único de Mobilidade (SUM), um programa de gratuidade nos transportes nos mesmos moldes do Sistema Único de Saúde (SUS).

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David Harvey é geógrafo britânico, autor de textos fundamentais sobre geografia crítica e o desenvolvimento geográfico sob a óptica marxista, na produção do espaço a partir da dialética entre capital e trabalho.

David Harvey8 explicita esse fenômeno no importantíssimo livro Cidades rebeldes: do direito à cidade à revolução urbana (Martins Fontes, 2019) e comenta sobre o andamento de um “grande e diversificado número de lutas e movimentos sociais urbanos […]. Em muitas partes do mundo, são abundantes as inovações urbanas acerca da sustentabilidade ambiental, […] da incorporação cultural […], e do desenho urbano dos espaços”. No campo da sustentabilidade, temos como possíveis alternativas aquelas que nos são indicadas como metas nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Organização das Nações Unidas (ONU), especialmente os ODS 11 – Cidades e comunidades sustentáveis e 3 – Saúde e bem-estar. Já o arquiteto e urbanista dinamarquês Jan Gehl, autor de Cidades para pessoas (Perspectivas, 2013) e fundador do Gehl Institute, contribuiu significativamente para a discussão ao propor diretrizes para o desenvolvimento de cidades vivas, sustentáveis e saudáveis. Proposta essa que pode favorecer o surgimento de projetos nos mais diversos níveis, além de motivar as lutas já existentes.

Entender as definições da mobilidade a partir da acessibilidade pode nos ajudar a atuar de forma mais apropriada na promoção de soluções e perspectivas de mobilidade mais focadas nas pessoas [...].

Entender as definições da mobilidade a partir da acessibilidade pode nos ajudar a atuar de forma mais apropriada na promoção de soluções e perspectivas de mobilidade mais focadas nas pessoas, construindo aos poucos as bases e os valores que, mais uma vez, retornam à visão do design. Isso, segundo Cecilia Consolo, se fundamenta principalmente na busca da premissa da “facilitação e da interação ágil entre os indivíduos por meio do desenvolvimento de novos sistemas, ou dispositivos, que frente às constantes inovações tecnológicas e midiáticas são repensados sistematicamente”. 

Assim como as definições de mobilidade ainda não foram encerradas, o debate aqui introduzido pode servir de guia a todos que desejam cidades, transportes e relações no espaço urbano mais saudáveis, além de uma vida urbana mais integrada, inclusiva e conectada. O projeto e a implementação de futuros humanos e de qualidade ainda estão em aberto e são um movimento coletivo.

Este ensaio foi baseado e adaptado do artigo “Design for new perspectives in urban mobility”, que o autor escreveu, com orientação e coautoria da designer e consultora Profa. Dra. Cecilia Consolo, para o oitavo volume e edição da revista Base Diseño y Innovación, da UDD Diseño, do Chile, sobre Cidades Sustentáveis, Humanas e Inteligentes.

é designer graduado pela Faculdade de Campinas (Facamp) e pós-graduado em gestão de empresas. Dedica sua formação holística para desenvolver produtos, ferramentas e sistemas voltados à Mobilidade, Sustentabilidade e Inovação, com experiência em agências de design, startups de mobilidade e tecnologia, indústria eletro automotiva e aeronáutica. Participa de coletivos cicloativistas e contribui em debates da área por meio de palestras, fóruns e artigos.
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